Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Pedro Adão e Silva (2012)

24.06.13

Pedro Adão e Silva nasceu em 1974. Licenciou-se em Sociologia, doutorou-se em Ciências Sociais e Políticas. É professor universitário. Colabora regularmente com o Expresso, SIC Notícias e TSF. 

 

“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?

Estamos a falar da mesmíssima coisa, mas “a vara na mão”, como instrumento metafórico do exercício do poder em Portugal, diz muito sobre o país de pequenos poderes que continuamos a ser. Há, entre nós, uma espécie de autoritarismo de vão-de-escada, assente em micropoderes, que aliás são contraditórios com alguma democratização das relações de poder ao nível macro.

 

Explique melhor isso.

Se pensarmos bem, em Portugal, não é necessário um incitamento activo vindo de cima (por exemplo, do poder político) para que nas mais diversas esferas se assista ao exercício de autoridade com escassa cultura democrática.  Temos uma rede de micropoderes difundida na nossa sociedade, sem nenhum centro.

 

O autoritarismo de vão-de-escada é ainda herança do salazarismo?

É herança, mas o próprio salazarismo também emanou deste autoritarismo de vão-de-escada. Uma espécie de baixo-autoritarismo, em que os micropoderes existem enquanto cada um vai tratando da “vidinha”. Um mundo de coisas pequenas e rasteiras produz também um poder baseado nas coisas pequenas e rasteiras.

 

Entretanto, vivemos em democracia há quase 40 anos...

As relações de poder em Portugal democratizaram-se muito, mas mantêm um subtexto autoritário que é resiliente e que nos empurra invariavelmente para a pequenez, também no autoritarismo. A mediocridade de Salazar – inclusive intelectual, ao contrário do que se faz crer – radicava nesse poder de “porteira”, da coscuvilhice e da devassa da vida privada, como mecanismo de controlo político.

 

Como é que se urdiu a teia de micropoderes?, como é que se instalou este esquema da “palavrinha”, que protege a casta dos privilegiados e discrimina todos os outros? 

O autoritarismo só se “dança” a dois. É preciso que uma parte exerça activamente o poder, mas necessita que haja uma predisposição social e individual para aceitar a autoridade, mesmo a não-legítima. Esse é o lado particularmente sinistro dos autoritarismos baseados em micropoderes: enraízam-se, são potenciados por quem detém o poder – os privilegiados – mas cultivados passivamente por quem é oprimido.

 

“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?    

Até o Nelson Rodrigues se enganava: nem o dinheiro nem o poder compram amor verdadeiro. O amor é bastante democrático e imune a influências exógenas.

 

“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?

Acredito que conheço bem os meus amigos. Com os inimigos faço exactamente o contrário de Vito Corleone – mantenho-os bem afastados. Não vá acontecer, como com o Michael Corleone, mais tarde, quando procurou afastar-se, eles quererem “puxar-me” e levar-me com eles.

 

“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?

A política é uma conversa que temos uns com os outros em público, pelo que é natural que quem fale bem saia vencedor. Até porque, como lembrava um exasperado Michele Apicella no “Palombella Rossa” [Nanni Moretti], “quem fala mal, pensa mal. É preciso encontrar as palavras adequadas: as palavras são importantes”.

Ao contrário do que se quer fazer crer, em política nunca há problemas de comunicação. Os problemas políticos, quando não estão resolvidos, é que se tornam incomunicáveis. Em política, a força das palavras não é separável da capacidade para ganhar. 

 

Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?

O poder dos políticos em Portugal é fungível e tenderá a tornar-se cada vez mais irrelevante. Aliás, os políticos portugueses não têm perdido uma oportunidade para reproduzir os preconceitos existentes em relação à classe política, contribuindo activamente para a sua própria irrelevância.

 

Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?

O meu poder resulta de expressar opinião e a opinião em Portugal é consumida essencialmente por quem à partida já formou a sua. O realismo está aí para me revelar que só tenho poder num quintal, bem circunscrito.

 

O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?

O verdadeiro poder não precisa de agenda telefónica, nem é convidado para almoçar. Pelo contrário, é telefonado e convida. Talvez o primo da mulher do assessor do ministro tenho uma agenda repleta: não lhe servirá de muito.

 

Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?

O politólogo Karl Deutsch tem aquela que é para mim a mais convincente das definições de poder: a possibilidade de não precisar de aprender. Está bem para além de mandar prender, contratar, despedir, saber mais ou ter as relações certas. No fundo, é não precisarmos de “nortear a nossa vida pela busca permanente de conhecimento”, para citar um “poderoso” pensador da actualidade em português.

 

A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?

Nada disso, o verdadeiro poder é silencioso e fático, não precisa de visibilidade e só ambiciona reconhecimento de proximidade.

 

Quando é que o poder se torna perigoso?

O poder torna-se perigoso quando deixa de ser escrutinado e sujeito a contrapoderes. A política é, ainda assim, mais escrutinada do que outras áreas, verdadeiramente poderosas. É esse o poder que é ameaçador: silencioso, não-transparente, que escapa ao nosso controlo, mas que no fundo é mais determinante no nosso dia-a-dia.

 

Que forma assume (ou pode assumir) esse poder? Como é que se detecta? Está no dinheiro, essencialmente? Na assinatura que desbloqueia? Na pressão que funciona?

É polimórfico, mas o poder financeiro é o mais poderoso dos desbloqueadores. Os últimos anos estão aí para mostrar a impunidade reinante, os comportamentos desviantes e a sua capacidade de destruição. A desinstitucionalização do poder financeiro e a sua autonomização face à política são as transformações sociais mais revelantes das últimas décadas e um processo sistemático de acumulação e consolidação de poder que tem poucos paralelos. De tal forma que, mesmo quando abalado – como tem acontecido – , é reconstruído, com o auxílio das próprias vítimas dessa capacidade hegemónica: os Estados e os cidadãos.

 

Ter poder é poder escolher não ter patrão?

Sim e nisso sinto-me muito poderoso. Como tenho vários patrões indeterminados, acabo por poder fazer o que quero do meu tempo. Essa liberdade talvez seja ainda mais importante do que não ter patrão. 

 

O poder, como a política, produz sempre inimigos?

Nada disso. A política faz-se com inimigos. A ideia de que se tem de agradar a todos e ser reconhecido por todos é perversa. Convém escolher-se um lado e representar esse lado. Há interesses inconciliáveis que não resultam nem de inveja, nem de insubordinação.

 

Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?

Claro que não. O mundo está cheio de pessoas que não se movem pelo interesse próprio, logo não têm preço.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012