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Anabela Mota Ribeiro

Michelle Brito

26.06.13

“Gosto de pensar que sou uma miúda normal. Ao mesmo tempo é difícil pensar que sou uma miúda normal por causa da vida que tenho”.

Que vida é que ela tem?

A de uma tenista profissional. A primeira portuguesa a estar entre as cem melhores do mundo. A primeira a estar na terceira ronda de Rolland Garros e na segunda de Wimbledon.

Tem apenas 16 anos. Encontramo-nos em num hotel de Lisboa, quando ela está de férias. Está sentada com os ombros ligeiramente curvados. Responde com um fio de voz, quase infantil. É surpreendente que não exibe o corpo possante que vemos nos courts. Que do outro lado da mesa ela seja o que na verdade é: uma miúda.  

A partir de uma conversa com Michelle Larcher de Brito, elaborei um glossário essencial. Para a conhecer e compreender o seu sucesso.

 

 

IDENTIDADE

Quem sou eu? Sou divertida. Gosto de fazer as coisas que as raparigas da minha idade fazem, de estar com pessoas, com o meu cão. E posso ser faladora!

 

FAMÍLIA

Tenho dois irmãos gémeos, quatro anos mais velhos do que eu. O meu pai nasceu em Angola e a minha mãe é sul-africana. Na minha família, se tomamos uma decisão, todos são envolvidos nela. Mudar de casa, mudar de cidade – vamos todos. Quando se falou da minha ida para os Estados Unidos, os meus pais disseram: somos uma família, vamos para os Estados Unidos como uma família.

 

INFÂNCIA

Do que mais me lembro é de ter ido para os Estados Unidos quando tinha nove anos. Do fazer as malas. Da despedida da minha família (tenho muitos tios e primos) em Portugal. Foi o acontecimento mais marcante da minha vida. Implicou começar de novo. Entrei numa escola americana, não sabia escrever nem ler inglês. Mas fiz amigos logo nos primeiros dias.

Eu precisava de patrocínios. Finalmente encontrámo-los; o meu tio, que trabalha numa empresa de químicos, ajudou-nos. Mudámos-mos de Portugal para os EUA por causa do meu ténis. Recebi uma bolsa para a Academia Bollettieri, que é uma das melhores do mundo. Lá há mais competição.

 

PAI

O meu pai acreditou muito em mim. Não eram tanto as conversas, o que dizia. Era mais a maneira como trabalhava comigo no campo. Nunca disse: “Paramos, que isto não nos leva a nenhum lado”.

Sempre foi o meu treinador. Desde as primeiras bolas que bati.

Esteve num colégio interno, na África do Sul, onde o desporto era obrigatório: correr, natação, râguebi, ténis. O ténis foi sempre o desporto preferido.

Transferiu para mim o sonho que não conseguiu concretizar.

Ser profissional era o sonho dele, mas nunca teve o apoio que eu tenho. Tenho sorte! Os pais dele não o apoiaram assim. Viajar e jogar torneiros não era tão fácil como é hoje. E era preciso dinheiro para viajar, hotéis, comer fora, raquetes…

 

MÃE

Não sei a história do meu pai e da minha mãe. Conheceram-se na escola. Casaram. A minha mãe trabalhava numa companhia aérea. Quando os meus irmãos nasceram, ainda na África do Sul, parou de trabalhar. Eu já nasci em Portugal.

Em casa falamos inglês porque o português dela não é famoso.

 

ATLETA

Aprendi a andar e a apanhar bolas ao mesmo tempo! Com dois, três, quatro anos, andava pelo campo a apanhar bolas dos meus irmãos. E queria jogar. Comecei aos cinco anos. O meu primeiro torneiro foi aos sete. O meu pai decidiu fazer de mim uma atleta. Melhorei bastante rápido. E aos oito já ganhei o primeiro torneiro.

 

DERROTA.

No meu primeiro torneio, perdi nas meias-finais. Foi a primeira vez que perdi. Corri do campo a chorar e fui esconder-me. Estava mesmo zangada! A minha mãe veio à minha procura, e gritei: “Nunca mais quero perder!

No torneio seguinte, ganhei.

 

PERDER

É duro, sobretudo nos grandes torneios. Mas pode-se aprender mais do que se se ganhar. Quando perdemos, visionamos o que fizemos num DVD e no dia seguinte vamos para o campo melhorar. Por exemplo: se perdi por causa do serviço, vou para o campo trabalhar o serviço, trabalhar o serviço, trabalhar o serviço. Na vez seguinte não perco por causa do serviço.

É difícil ver o que fiz, especialmente quando perdi por um ponto… E é duro psicologicamente lidar com a derrota. Mas sou jovem. Estou a aprender. Sei que não é a última derrota, que vou sofrer muitas mais.

 

LUTADORA

Acredito que sou uma pessoa forte. Sou naturalmente forte porque cresci com dois irmãos mais velhos. São queridos, adoro-os, mas às vezes são brutos comigo. Isso ajudou-me a crescer e ensinou-me a defender-me a mim própria. Sou forte porque sei defender-me. Se tenho uma opinião, luto por ela. Não deixo as pessoas dizerem-me tudo sem levarem na volta. Não deixo que me pisem.

Não sei onde arranjei isto, isto de ser tão forte. É a minha personalidade. Isso é ser eu: lutar pelo que acho que está certo.

Sou lutadora.

 

QUARTO

Se os meus pais me mandam fazer alguma coisa, faço. Mas se é limpar o meu quarto, posso demorar uns dias até o fazer… [risos] O meu quarto pode ficar numa confusão! A minha cor preferida é azul bebé e o edredon é às riscas azuis. As paredes são brancas; mas já foram azuis. Pintámo-las, a minha mãe e eu, e foi divertido. Tenho muitos peluches, ursos, tigres, cães. Tenho um armário com os meus bonecos e uma caixa extra de bonecos no sótão. As mesinhas de cabeceira são de madeira e é lá que tenho as colunas do ipod. Tenho um armário muito grande porque gosto muito de sapatos e vestidos.

O meu pai não entende o fascínio das senhoras com os sapatos! Vou às compras com a minha mãe. É um mundo à parte onde não entram os homens.

 

VONTADE

Os meus irmãos estavam no mesmo ponto de partida do que eu. Ainda jogam, treinam comigo, e jogam bem. Mas não tinham a mesma vontade. Preferiram estudar a estar horas e horas no campo. Desde o princípio, dei 110% no treino.

O que define um grande tenista é o trabalho nos treinos, a determinação e os sacrifícios. Sou jovem e não posso sair, não posso ir para a cama tarde… Sabia que os sacrifícios faziam parte da escolha.

 

FAMÍLIA E TRABALHO MISTURADOS

Pode ser uma confusão! Mas ao mesmo tempo ajuda. Muitas raparigas viajam apenas com os treinadores. Os meus pais e os meus irmãos vão sempre comigo. (Agora vai mudar, porque os meus irmão vão para a universidade). É como estar em casa, mas no hotel. Estamos juntos, almoçamos juntos, treinamos juntos.

Em Wimbledon (Londres) alugámos uma casa, em Rolland Garros (Paris) um apartamento. Nos torneiros mais pequenos ficamos num hotel. Tenho o meu quarto e a minha casa de banho. Tenho que estar sozinha um bocado.

 

LER

Gosto de ler. Gosto da série Twilight da Stephenie Meyer e gosto muito do Dan Brown. Nesses momentos desligo completamente e só penso no livro que estou a ler.

 

ESCOLA

Aos 13 anos, quando comecei a viajar, ficou difícil frequentar a escola normal. Faltava duas e três semanas. Arranjei um professor que me desse aulas privadas. Temos duas, três horas por dia. Um dia Matemática, outro Inglês, História, Geografia. Essa é a minha outra vida: a escola e os exames. Para a semana, quando voltar aos EUA, vou fazer exames.

 

FUTURO

Não penso no meu futuro. Gosto de viver o dia a dia, não gosto de olhar tão para a frente. Nunca sei se me vou lesionar…

O que pretendo fazer depois do ténis? Gosto muito de animais. Não quero ser veterinária, mas gostava de fazer alguma coisa com os bichos. Talvez um refúgio, dar-lhes uma casa onde viver.

 

CORPO

Não penso no meu corpo. Felizmente não ganho peso, sou do tipo magrinho. Dieta? Não! Outras jogadoras, sim, e têm dieta prescrita pelo médico. Claro que não posso comer MacDonalds todos os dias. Basta-me fazer uma alimentação saudável. Quando estou de férias posso comer chocolate!

No meu corpo, tudo tem de estar em forma. Senão a máquina fica enferrujada. Todos os anos faço exames. Tiro sangue e fazem um mapa, com imagens de todas as partes do corpo, de todos os músculos.

 

DIÁRIO

Quando era pequenina, tinha sete ou oito anos, tive um diário oferecido por uma tia. Foi no primeiro torneio fora de Lisboa, em França. Reli-o agora, antes de vir para Portugal, porque o encontrei no sótão. A minha letra era tão engraçada. Escrevi coisas assim: “Acordei às oito e comi um croissant. A seguir fui jogar o meu ténis”.

Não escrevi sobre o que senti. A minha tia disse-me: “Quero saber tudo o que fizeste”.

 

ARAVANE REZAI

No jogo em Rolland Garros, fiquei irritada com o que a Rezai fez: queixar-se ao árbitro dos meus gritos. Não porque eu a estivesse a distrair, mas porque queria distrair-me a mim. A verdadeira razão foi essa.

Eu estava a jogar bem, mas quando fui falar com o árbitro distraí-me e o meu jogo foi ao ar, completamente. Era a táctica dela.

Já tinha feito isso em Miami. Foi a segunda vez que joguei com ela. I hate her, actually I do. [risos] Nem posso olhar para ela.

Tenho de arranjar uma maneira de não ficar distraída e zangada por causa disto. Tenho de relaxar e continuar a jogar como antes.

A próxima vez que a encontrar vou fazer tudo e tudo para lhe ganhar! Perder duas vezes com ela, já chega!

 

RAIVA

A raiva e a zanga são um capital importante. Fico emocional em campo. Mostro as minhas emoções. Jogo com raiva. Estou ali para ganhar. Tenho essa vontade e essa determinação: de avançar para a próxima ronda.

 

ROTINA

Acordo às cinco, cinco e 15. Estou na escola das seis às oito. Treino três horas de manhã e mais três horas à tarde. É um full time job. Vou para cama, e no outro dia é igual.

 

DINHEIRO

Não costumo pensar em dinheiro. Não cresci numa família rica.

 

RECOMPENSA

Se faço um bom torneio, vou a uma loja comprar coisas para mim. Um reward. Mas é claro que não gasto fortunas. Compro um fato, uns sapatos, um vestido. Em Rolland Garros, correu muito bem e fui à Louis Vuitton.

Cresci a ter de merecer, trabalhar, fazer bem. Os meus pais nunca me compraram uma coisa só porque a pedi. Tinha de a merecer.

Acho isso bem. Ter as coisas facilmente, sem ter de lutar por elas, é aborrecido. Se assim for, nada tem significado.

Como o wild card [convite para estar presente] que recebi em Wimbledon. Tive de mostrar que o mereci.

 

SERENA WILLIAMS

As pessoas perguntam-se se fiquei com medo dela! Eu sou pequenina e ela é mesmo grande. Grandes músculos. Mas olhei para ela como uma jogadora. Como eu. Isso é o que ela faz: jogar ténis. Foi um jogo incrível! Os pontos eram tão compridos.

O estádio estava completamente cheio e o no fim levantou-se em peso para aplaudir.

Ela disse-me: “Muito bom jogo. Bem jogado. Boa sorte para a tua carreira”.

 

ZANGA

O meu pai zanga-se comigo por eu ter perdido. É claro que não diz: “Pára de jogar ténis, que não sabes jogar!” Não se pode chatear por eu não ter tentado. Dou sempre o meu melhor. O que acontece é que a minha concentração não está ali. E estou mais lenta.

Zanga-se, grita um pouco. Mas no dia seguinte estamos a treinar outra vez e a melhorar.

 

SONHO

Às vezes, antes de dormir, imagino que estou no campo principal de um torneio e que ganho. É bom. Mas não quero sonhar tanto. Quero fazer coisas na vida real.

 

SOZINHA

Quando estou a jogar sou só eu. Mesmo que a família esteja a apoiar, ninguém me pode ajudar no campo. Posso não me sentir sozinha, mas estou mesmo sozinha.

 

GRITAR

Não é uma coisa que se aprende, é uma coisa que se faz. É parte do jogo. As pessoas dizem que nos ensinam a gritar na Academia Bollettieri. Mas eu grito desde pequena, antes de saber o que era a Academia Bollettieri. Se o meu corpo sente necessidade de gritar, grito”.

 

SORTE

Quando o vice-presidente da Bollettieri veio a Portugal ver miúdos, em Monsanto, eu não fui convidada. Os meus irmãos, sim. A pessoa que organizou o evento disse: “Tenho esta rapariga, que joga muito bem. Gostavas de a ver?”

Viu-me a jogar, gostou e convidou-me para ir aos Estados Unidos. Se não fosse esta pessoa, não estaria no lugar onde estou. Não me lembro do nome dele, mas os meus pais sabem.

Foi sorte.

 

 

Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em Julho de 2009