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Anabela Mota Ribeiro

Ângela Crespo e Eugénio Lisboa

25.10.13

Eugénio Lisboa tem 83 anos. É poeta, ensaísta, foi conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Londres. Ângela Crespo tem 33 anos. É formada em Psicologia, trabalha na área dos recursos humanos numa multinacional. Não são “bichos políticos”. Mas quando o Governo anunciou a mexida na TSU, escreveram cartas iradas, pungentes, interpeladoras, que se tornaram virais nas redes sociais. Foram cidadãos que intervieram no espaço da política. A carta de Ângela Crespo começava assim: “Vão-se foder”. A de Eugénio Lisboa era dirigida ao Primeiro Ministro.

O recuo na medida da TSU não altera o essencial do conteúdo das suas cartas, que se prende com uma análise do país e do momento que atravessamos. O Negócios decidiu juntá-los e perceber que leituras fazem duas pessoas, que têm 50 anos de diferença entre si. Conhecer o diagnóstico que fazem, a inquietação e o sonho que têm.

 

 

O Eugénio Lisboa diz na sua carta que há momentos em que “nós não vamos ao encontro da política, mas ela, irresistivelmente, vem ao nosso encontro”. Começo pela Ângela: é a primeira vez que toma uma posição política?

Ângela Crespo – Sim. Não sou uma pessoa alheada da política, mas desta vez ela veio mais ao meu encontro do que eu ao encontro dela. O normal na minha geração.

 

O relativo alheamento da sua geração resulta de não haver nada por que lutar? A democracia, certos direitos estão como um pano de fundo. Adquiridos.

AC – O alheamento tem que ver com uma coisa diferente. Há duas fases na política: a fase pré-eleições, e o que dizem então, e a fase pós-eleições, e o que fazem então. Não me lembro de uma coisa bater certo com a outra. De quatro em quatro anos vemos acontecer a mesma coisa. Sempre votei, nunca abdiquei do meu direito de voto. Uma vez fui de muletas. Mas à medida que os anos passam, faço o caminho para a junta de freguesia ou para a escola onde voto a pensar que vou lá pôr mais uma cruz.

Eugénio Lisboa – Não sou um animal político, os meus interesses estão noutras áreas. Mas em situações de extrema provocação – como foi o caso do Estado Novo – [intervim]. Senti-me obrigado, dada a situação a que o país chegou. E muita gente como eu. Por razões de consciência. Quando veio a democracia, respirei de alívio. Posso voltar a ser aquilo que sou – pensei. Recolhi-me à minha tebaida. Pela primeira vez, sinto-me de novo obrigado a intervir.

 

Vivemos momentos de crise desde 74. Porque é que desta vez, mais do que outras, quis intervir?

EL – Estamos à beira de o país entrar num retrocesso de tal magnitude que nos faça voltar aos tempos [da pobreza do Estado Novo]. Vim em 1947 de África para tirar o curso de Engenharia no Instituto Superior Técnico. Vi a profunda miséria em que as pessoas viviam. Era uma pelintrice tremenda. Saímos disso. As pessoas não imaginam quão diferente é o Portugal de hoje. Esse fantasma em mim está muito presente. Nunca esteve tão presente, apesar de a nossa democracia ter tido altos e baixos. Nunca estivemos numa situação como esta.

 

Estamos assim, porque, como diz numa das cartas que escreveu ao Primeiro Ministro, existe um “fundamentalismo ideológico” em Pedro Passos Coelho? É isso que nos faz estar na iminência de regressar ao quadro que encontrou em 1947?

EL – Acho que sim. Esse fundamentalismo ideológico é muito sério. Quando ouvimos dizer: “Só há uma saída, este é o único caminho, o Governo não tem margem de manobra”, fico aterrado. O Victor Hugo, nas suas intervenções no Parlamento, dizia: “Aquilo a que esses senhores chamam o único caminho é este: compressão e repressão”. Eles apertam os cintos de tal maneira que as pessoas explodem, e depois há a repressão. Nem a compressão nem a repressão levam a algum lado.

 

O que é que nos pode fazer encontrar uma saída?

EL – O que leva a algum lado é um estudo racional e alguma coragem para enfrentar os problemas. Não há dúvida que temos de pagar a dívida, mas arguir que o Estado tem esse compromisso e tem que o cumprir leva-nos a perguntar: e o Estado não tem também compromissos com os seus cidadãos? Não tem compromissos com o serviço social, com os salários que paga, as pensões que paga? Os únicos compromissos que o Estado tem são para com os credores? É esse o compromisso prioritário? É preciso um Estado que pense poliedricamente e não monoliticamente. A Europa começa a estar atenta de outra maneira à situação. É necessário um Governo e um PM que vá falar como adulto para outros adultos, negociando condições aceitáveis de sobrevivência.

 

A Ângela concorda com o diagnóstico do Eugénio?

AC – Concordo com tudo.

 

Acha que é por fundamentalismo ideológico? Há quem ache que é pura incompetência.

AC – Isso assusta-me, ainda que seja uma hipótese que eu coloco, também. Assusta-me que não se veja caminho. O único discurso que se ouve desde que este Governo tomou posse é o do pagamento da dívida à troika. Não se vê um projecto, uma esperança, uma ideia, uma outra forma de fazer as coisas. Vivemos todos com este peso, que o Governo nos pôs em cima, e que sei que é real. O problema é que não se vê mais nada. O Governo fez um acordo com a troika e esqueceu-se que há um país para governar. Como se tivesse um objectivo único. Mas as pessoas têm de ser cuidadas. Não se podem divorciar de nós.

EL – Há outro problema grave: não pedi um cêntimo de crédito a ninguém.

AC – Eu também não.

EL – Tenho vivido da minha pensãozinha. Porque é que hei-de andar a pagar uma factura pesadíssima? Porque uns senhores do BPN, que todos conhecemos, criaram um buracão de todo o tamanho, que nós agora temos de pagar. Esses senhores, que receberam milhões que não pagaram ao banco: o Estado já foi atrás deles para recuperar esse dinheiro? A nossa justiça nunca encontra razões suficientes para fazer nada.

 

A justiça é o calcanhar de Aquiles do país? É o cerne do problema?

AC – A percepção de falta de justiça social, é o problema.

EL – No outro dia o Dr. João Salgueiro dizia uma coisa verdadeira: há muito dinheiro nesse mundo. Ao dinheiro, não lhe apetece vir para Portugal. Quem é que investe? Um empresário investe numa empresa, existe um conflito, laboral ou outro; vai para tribunal e as coisas arrastam-se anos e anos e anos. Quem é que quer ser empresário num ambiente jurídico deste género? Essa reforma da justiça devia ter sido uma das prioridades de qualquer Governo.

 

Todos os Governos falam da necessidade de fazer a reforma da justiça. Há anos que esse discurso acompanha os sucessivos governantes. A percepção que os portugueses têm do funcionamento da sua justiça é que nada de substancial muda. Porque é que acha que não se faz a dita reforma?

EL – Receio que a resposta seja subversiva. Mas vou dá-la. Não fazem porque nos lugares de poder executivo e de poder legislativo há imensa gente a quem essa reforma não convém. Deve ser tão simples como isto. Entregam a reforma da justiça a escritórios de advogados que fabricam as leis com os buraquinhos necessários para elas [leis] serem furadas; e [os escritórios de advogados] vendem depois às sociedades, que precisam desses furos, os seus serviços, para as ensinarem a furar... É um problema de corrupção generalizada.

 

Muitos portugueses, não só da sua geração, têm a ideia que contraímos crédito, vivemos acima das nossas possibilidades e que, mesmo que não sejamos culpados de igual modo, todos temos de nos empenhar para pagar a dívida. A Ângela escreveu que durante muito tempo aceitou este discurso, como uma punição, e que depois se deu o corte.

AC – A sensação que tenho é que a culpa raramente está só de um dos lados. É um facto que o país se endividou muito para além do que podia pagar.

 

Mas alguém deixou que o país se endividasse. Toda a gente?

AC – Esse alguém vem de muito longe. Vem do tempo em que eu era criança e Cavaco Silva era Primeiro Ministro. Vem de muito longe e serviu vários interesses. Interessou a vários países que nos endividássemos. Por algum motivo, e ainda no Governo do Eng. Sócrates, houve um incentivo ao investimento. Percebo que não estamos sozinhos ou isolados do mundo, que estamos inseridos em vários sistemas, e que, se contraímos a dívida, temos que a pagar. Como fazer? Eu, Ângela Crespo, não tenho de ter respostas para o país. Sou uma cidadã de 32 anos, se tivesses respostas estava na política. Mas espero que quem está no Governo tenha respostas. E a resposta que eu esperava não era aquela. Que iam subir a minha TSU em 7%, e descer a taxa das empresas, para criar emprego. Sou relativamente bem informada, faço parte da classe média, tirei um curso de Psicologia, sei que aquela era uma medida estúpida.

 

Foi essa medida que a levou a escrever um texto que afixou numa rede social. Quer contar o que a levou a isso?

AC – O comunicado de Passos Coelho foi numa sexta feira ao fim do dia. Estava em viagem, numa daquelas magníficas auto-estradas onde se encontra um carro de 20 em 20 quilómetros, e que também contribuíram muito para esta dívida. “Não posso ser eu que está a ver isto mal.” Na segunda feira seguinte percebi que dos mais novos aos mais velhos, dos mais informados aos menos informados, dos que estudaram a vida toda aos que estudaram muito pouco, ninguém conseguia entender aquilo. Em que país estamos? Da extrema esquerda à direita mais liberal ninguém consegue concordar com a medida, à excepção do Sr. Borges, do Sr. Passos e do Sr. Gaspar. O grande divórcio acontece aí. Com o descrédito. Quando nos perguntamos: “Estamos nas mãos de quem?”. Tenho-me perguntado recentemente: “Aquela medida alguma vez existiu? Ou souberam antecipar o que ia acontecer para poder voltar atrás? Será a sério?”

 

Acreditou que a medida da TSU era para ser implementada? O que é que acha que passou pela cabeça dos nossos governantes para avançarem com uma medida que unanimemente foi rejeitada e em relação à qual recuaram?  

EL – Tenho dificuldade em não ver aqui um fundamentalismo religioso. É tão cego... Quando estive em Londres como conselheiro cultural tive uma polémica com um poeta português que se converteu ao islamismo e que a certa altura dizia: “O Corão permite toda a liberdade de investigação científica desde que os resultados não ofendam os princípios do Corão”. É uma estranha liberdade de investigação científica, não é? A posição deste Governo faz-me lembrar essa história.

Em ciência quando uma hipótese é contrariada por um facto, arranja-se uma nova hipótese. É a humildade do cientista. O grande cientista do século XX, Einstein, ia mais longe. Não se punha na posição defensiva de dizer: “Esta minha hipótese é verdadeira até que apareça um facto que a contrarie”. Dizia: “Se aparecer um facto que contrarie a minha hipótese, ela deixa de ser verdadeira”. Esta é que é a verdadeira atitude científica. Não é um tipo entrincheirar-se atrás de uma hipótese como se fosse uma verdade sagrada e receber com relutância os factos que a contrariem.

 

A propósito deste Orçamento de Estado, Ferreira Leite disse que não tem execução possível, Silva Lopes diz que as previsões do Governo são uma coisa imaginária, Oliveira Martins diz que é o exercício orçamental mais difícil da democracia, os sindicatos clamam que o OE é desumano. Parece uma amostra contundente. Como compreender, então, esta cegueira (para usar a vossa expressão)?

EL – O ministro das Finanças está agarrado àquilo. Aplicaram um tratamento em doses moderadas. E o resultado foi calamitoso. Agora acham que esse mesmo tratamento em doses reforçadas vai ser virtuoso. Bagão Félix falava em napalm fiscal. Não estou longe de lhe subscrever os termos. Tirei um ano de economia no Instituto Superior Técnico. Basta o bom senso e saber fazer contas para ver que não se esmaga uma economia em recessão com medidas de austeridade violentas como estas. É a destruição de um país.

 

Como olham para o silêncio do presidente?

EL – A explicação que dou, e espero que seja verdadeira, é que a apatia não existirá, mas que ele terá optado por actuar nos bastidores, e não em público, por receio de matar o bebé.

 

“Matar o bebé” é deitar o Governo abaixo?

EL – Exactamente. Não acredito na inactividade do PR. Seria demasiado extraordinário pensar que isso se está a passar assim. Espero que o presidente tenha uma intervenção forte. Escrevi uma segunda carta ao PM e mandei uma cópia ao PR. Com uma intenção só: para ele saber que pessoas que normalmente não intervêm politicamente estão suficientemente aflitas para o estar a fazer.

 

O que aconteceu em relação à TSU, e que agora acontece em relação ao OE, é que lhe sucede uma crise na coligação. No caso da TSU, Cavaco convocou um conselho de Estado, esvaziado no próprio dia quando o PR disse que seria trágico para o país se resultasse dali uma crise política. Acreditam que ainda pode acontecer alguma coisa substantiva do ponto de vista político?

AC – Tem havido alguns sinais, do FMI, da troika. “Se calhar não previmos isto bem. Esta austeridade extrema não nos vai levar ao sítio que queremos”. O que eu sinto é que ninguém está a pegar nisso. Continuam com uma atitude profundamente autista. Mesmo depois de o FMI ter dito que tinha errado as previsões. Se calhar, era o argumento que faltava para irmos lá falar com eles. “Agora temos ferramentas para renegociar.”

Até percebi o “bom aluno”. E concordei [com a estratégia]. Nunca achei que devêssemos ter a postura da Grécia. Mas isso tinha de nos valer de alguma coisa. Até agora, não me pareceu que valesse de nada. Não vejo qualquer vontade do Governo de aliviar, nem vejo qualquer acção do senhor presidente da República. Poderá estar a fazer trabalho de bastidores, mas o povo português precisava que ele viesse dizer alguma coisa. Precisávamos de perceber o que se passa naquela coligação.

 

Alexandre Soares dos Santos pedia a semana passada um Governo de salvação nacional. Mário Soares escreveu no Diário de Notícias: “Quando os governantes manifestam medo do Povo – e fogem dele – algo vai muito mal. (...) É próprio de uma ditadura”. O PR pode destituir este Governo e nomear um outro, do PSD. A hipótese de eleições parece mais longínqua. O que é que acham mais provável que aconteça?

EL – Quando se fala do receio de uma crise política: não é o receio, estamos no meio de uma crise política, de todo o tamanho! Apostaria num governo de salvação nacional, embora consciente de que é uma situação escorregadia. Exigiria um compromisso muito forte dos três principais partidos do arco da governação – um compromisso para ser cumprido. No outro dia estive a ouvir o frente a frente de Passos Coelho e António José Seguro na campanha eleitoral e chega a ser doloroso ouvir o que diz Passos... É exactamente o oposto de tudo o que fez. Até agora, que eu saiba, não deu a mais pequena explicação para ter feito esta viravolta.

Um governo de salvação nacional, que se faz muitas vezes em situações de guerra – fez-se em Inglaterra –, é um governo em que se assumem compromissos duros para serem seguidos. Com estes protagonistas que temos, que confiança podemos nós ter na solidez de um governo de salvação nacional? Mas acho que é uma ideia a considerar.

AC – Um governo de salvação nacional com outros protagonistas, vejo. Com estes, não. O Passos não consegue governar em coligação. Muito menos governaria com Seguro.

EL – Que o ministro das Finanças seja um indivíduo teimoso – basta olhar para ele: tem aquele perfil de cera astral; não é deste mundo – é um dado da vida, a gente aceita. Mas naquele executivo não há gente sensata? Estão todos submetidos ao pseudo-cientifismo de Gaspar? Um cientifismo que mete água por todos os buracos.

 

O cientifismo é também de Borges? Estou a perguntam se consideram António Borges uma pessoa especialmente poderosa neste Governo?

EL – Se Borges tem esse poder todo, também é grave. Quando um conselheiro é quem governa, estamos mal. A sabedoria do Dr. Borges é mítica. O facto de ter andado por uns bancos [Goldman Sachs], de ter sido reitor de uma universidade lá fora [INSEAD] não prova nada. Deve ser testado em função das coisas que diz cá. Os conselhos que dá, até agora, não foram convincentes (para nos ficarmos pelos eufemismos).

 

Quem manda? Relvas?

AC – Relvas manda pouco. Eu dizia que o Governo não tem outra agenda além do pagamento da dívida; infelizmente tem: Relvas, os casos do ministro Relvas.

EL – Relvas está morto, acabado.

AC – Mas ainda não deu conta. Borges é poderoso neste Governo. As declarações que vem fazer sobre a TSU, e a arrogância com que o faz, deixam-nos perceber que a ideia foi dele. E Portugal está cheio de ignorantes que não perceberam a sua brilhante ideia.

EL – É preciso ver que esta ideologia fundamentalista de Passos Coelho não é coisa nova. Já há muito tempo, antes de ser Governo, defendia que o importante era alterar a Constituição. Alterá-la no sentido de utilizá-la para estes fins. Este neo-liberalismo não caiu do céu recentemente.

 

O que é certo é que as pessoas votaram nele.

EL – Isso é que me espantou. Os votas contra são perigosos.

AC – Algumas pessoas votaram em Passos. A grande maioria [votando em Passos] não votou em Sócrates. O discurso de Passos era agradável, com laivos de humildade. Conseguia chegar às pessoas. Quando cai no exagero deste discurso compreensivo, condescendente, a mim ofende-me. Fala como se nós todos – jovens, classe trabalhadora, reformados – não entendêssemos nada do que se está a passar. Mas nas eleições o discurso era conciliador, de esperança; tinha outras soluções além do PEC IV, que chumbou. Lá está: temos um “antes das eleições” e um “depois das eleições”.

EL – A tragédia começou antes. Quando foi a escolha do líder do PSD, entre todos os candidatos que havia, terem escolhido o Passos foi inacreditável. Era um menino do aparelho. Era o menino do Relvas. A ligação dele ao Relvas tem menos que ver com as empresas em que estiveram ligados do que com o trabalho de mão que o Relvas fez para Passos vencer a eleição do partido. Lembro-me de uma entrevista em que o Relvas dizia: “Isto deu-me um trabalhão... É a última vez que me meto numa coisa destas”. Ele a valorizar-se..., com aquele ar modesto. O Paulo Rangel, o Aguiar Branco não nos teriam metido nesta embrulhada.   

 

Uma pergunta sobre nós, portugueses: porque é que, repetidamente, nos deixamos ludibriar, aceitamos pessoas consideradas impreparadas, cujo exercício se revela o contrário do que foi prometido em campanha eleitoral? O que é que nos faz adiar reformas de fundo e escolher pessoas erradas?

AC – Não sei se alguma vez nos deram a opção de escolher a pessoa certa.

 

Porque é que nunca apareceu a pessoa certa?

AC – A questão é mais essa. Olhando para trás: houve uma pessoa que podia ter sido a certa? Não sei se consigo encontra-la. Quando tudo está bem, calmo, estamos ainda mais desligados da política.

 

Ou seja, nos anos do dinheiro.

AC – Exactamente. Os senhores estão em campanha e nem os ouvimos.

EL – Há no nosso temperamento um laissez faire. Um deixa andar. Não fazer é definitivamente menos perigoso do que fazer alguma coisa. Nota-se isso em tudo. Quando assistimos a uma burocracia eficiente como é a dos ingleses, a nossa é pesada, lenta e ineficaz. Quando estava em Londres e precisava de uma informação de um ministério, chegava a esperar 18 meses por uma resposta! Estávamos proibidos de contactar directamente com os diferentes ministérios; tínhamos de comunicar através do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Escrevia uma carta, não havia resposta... Eu tinha o pudor de não responder aos ingleses. Agarrava no telefone, ligava, não para o MNE mas para o departamento, e fazia a pergunta directamente. Quando vinha a resposta [formal] era para arquivar, porque o problema estava resolvido. Fui sucessivamente repreendido por contactar directamente os ministérios. É claro que me fazia de parvo. “Tem razão. Foi uma pressa”. Continuei a pecar as vezes que foram necessárias e a fazer meas culpas as vezes que foram necessárias – para não ficar envergonhado e não deixar envergonhado o meu país. Somos muito burocratas, muito legiferativos (fazemos muitas leis, que toda a gente ignora, e umas contrariam as outras). É o paraíso dos advogados. Nenhum cidadão consegue resolver a sua vida sem o auxílio de um advogado.

 

Sabemos que temos como características identitárias o desenrascanço e o chico-espertismo. Todos gostamos de fugir um pouco à lei, de a contrariar – o que mostra como somos expeditos (sobretudo se podemos lesar alguém mais poderoso do que nós).

AC – Se for o Estado, então... Já havia muita economia paralela. Com algum pudor. Hoje em dia as pessoas quase se vangloriam quando conseguem fazer alguma coisa que engana o Estado. As pessoas sentem: “Se o Estado me anda a enganar a mim, à vista de toda a gente, eu não posso fazer o mesmo?”

EL – É também a consequência da falta de educação cívica e falta de educação tout court

AC – Fazemos uma escolaridade obrigatória sem ter a noção de uma coisa tão básica quanto direitos e deveres que temos para com o Estado.

 

Insisto na pergunta: porque é que somos assim?

EL – É uma questão temperamental. Vou dizer uma coisa que não é bonita, mas digo-o sem malícia: os árabes estiveram 700 anos na Península Ibérica. A nossa herança árabe é muito pesada. É próprio desses povos do Médio Oriente o deixar andar. “Amanhã o problema resolve-se.” “O problema que eu não resolvo, a minha gaveta o resolverá.” Mas até contra o nosso temperamento, pela educação, podemos lutar.

 

Os políticos falam da necessidade de apostar na educação. Mas isso não tem resultados visíveis no imediato, nas próximas eleições. É uma aposta para daí a duas gerações. Como resolver isso?

AC – Gostava que alguém me apresentasse uma visão estratégica para o país. Nunca acontece. Mesmo em campanha, do que se fala é do que se vai fazer nos próximos quatro anos. À semelhança de um governo de salvação nacional, do que precisávamos era de um entendimento sobre o rumo para o país nos próximos 20 anos. Se estamos constantemente a trabalhar para ser eleitos daí a quatro, e passados quatro vem outro, e outro, e não há uma orientação comum... Independentemente de estarmos mais à esquerda ou mais à direita. O que me assusta é nunca ter ouvido falar disto. Não perceber qual é o rumo.

EL – Concordo inteiramente consigo. Há um aspecto grave: vivi numa época em que praticamente não havia investigação científica em Portugal; hoje há, e de topo. É um crime entregar nas mãos de um contabilista o esmagamento daquilo que levou tanto tempo a construir. É o que se faz com cortes cegos. Temos belíssimos cientistas, acreditados lá fora, a produzir obra, e é facílimo destruir isto. Com esta situação que estão a criar, vão promover a emigração dos nossos cérebros. Os melhores não têm dificuldade em encontrar trabalho lá fora. Na Física, na Matemática, na Biologia. O que vai emigrar primeiro é a nossa nata. O que leva mais tempo a emigrar são os menos qualificados.

AC – Sair? À minha geração já pouco mais resta do que ponderar essa hipótese.

 

Em 1974, teve esperança em relação ao país? Viu estratégia? É uma surpresa que passados 40 anos estejamos nesta situação agónica?

EL – Tive esperança, como toda a gente. Infelizmente veio a desilusão depressa. O que nos falta é a capacidade de gerir, com cabeça e integridade, a boa matéria prima que temos.

 

Diz numa das suas cartas: “As revoluções surgem nestes momentos”. Podemos assistir a uma revolução?

EL – Estamos a aproximar-nos muito de condições em que possa estalar um tumulto forte na nossa sociedade. Em momentos de muita emoção, as pessoas podem deixar de equacionar os inconvenientes de uma revolução dessas no contexto da União Europeia. Não quero dizer que a revolução seja uma solução boa. Mas pode ser uma solução que tente as pessoas. Há esse risco.

 

Fala também de se sentir exilado no seu país.

EL – Ah, sem dúvida. Quando os poderes públicos deixam de ouvir, de dialogar e usam o discurso monocórdico do “esta é a única via”... Esse era o discurso corrente do Estado Novo. Aquela via, a da União Nacional, a daquele partido único, era a única que convinha ao país. Ouvi isso durante 40 anos. Estou cheio. Mas estou a voltar a ouvir isso.  

 

Nas vossas cartas há um aspecto comum. Ambos falam de uma ausência de futuro. De formas diferentes, ambos dizem que mataram a esperança. Podem falar disto?

AC – Foi conseguida uma coisa fantástica neste Governo: unir o povo como nunca, na minha curta vida, vi. Dos 20 aos 80, de ricos a pobres, de ideologias contrárias. O ponto comum é este: olhar para a frente e não ver nada. Sempre acreditei no mérito, que trabalhando chego lá (e foi isso que aconteceu). De repente, até isso me tiram. Tiram-me a motivação para continuar a ser assim. Se não temos esperanças, se não temos sonhos, vamos viver do quê?

EL – Em relação a pessoas da minha idade, a não ser que vivamos num egoísmo obturado, o facto de estar na recta final não quer dizer que me conforme com a falta de esperança. Temos prolongamentos, temos filhos, temos netos, temos amigos e filhos de amigos. Não consola pensar que a mim me vai atingir pouco tempo; sabemos que vai atingir pessoas que para nós são importantes.

 

O que está a acontecer em Portugal é um crime?

EL – Acho que sim. Mais do que a destruição da vida material das pessoas, a destruição da esperança é um crime sem redenção.

AC – A culpa morreu solteira numa série de processos. O Eugénio já falou aqui num [BPN]. Não!, a culpa morre casada connosco, contribuintes!, ainda que não tenhamos contribuído para isso. Isto traz-nos um sentimento de injustiça adicional. Se houvesse a percepção de que se fez justiça em relação a uma série de acontecimentos, e se ainda assim tivéssemos que fazer este esforço, provavelmente a maioria das pessoas entenderia. Mas quem lesou desta maneira o país está em casa, neste momento, provavelmente a beber um chá. É o sentimento de injustiça, aliado à falta de esperança, que nos põe às portas de uma revolução iminente. Pode ocorrer. Falta uma gota. Resta saber que gota é que vai ser.

EL – É difícil prever. Quantas pessoas se suicidaram e que meia hora antes não sabiam que se iam suicidar? Uma revolução, meio dia, um dia antes, ninguém sabe que ela vai acontecer. Mas depois explode. Andar pela rua e ver a miséria é penoso. Não gosto de ser feliz numa rua em que todos os outros são infelizes. 

 

Para terminar, gostava de lhes pedir que fizessem uma interpelação. A quem quiserem. A Passos, a Cavaco, ao FMI, ao cidadão português... A razão por que estamos aqui é porque as cartas que escreveram tocaram milhares de pessoas, e se tornaram virais. E já percebemos que apesar dos 50 anos que há entre os dois, a leitura que fazem do país é coincidente.

EL – Quer fazer a Ângela primeiro?

AC -  Tenho que pensar. Não sei se tenho várias opções ou nenhuma opção. Poderia dirigir-me ao povo e dizer que não podemos entrar numa guerra com o Estado, que também nos protege. Não podemos entrar numa guerra do tipo: quem é que vai fazer mais mal ao outro? Nenhum de nós, nem mesmo eu, que não era nascida no 25 de Abril, achava que um dia ia ver na mesma rua pessoas desesperadas. Isto é tristíssimo. Não vou fazer uma interpelação, vou contar uma história que deixa perceber o enquadramento da minha carta. Naquele fim de semana, falei com uma amiga nutricionista que recentemente acompanhou os processos de alimentação nas escolas. Contou-me que havia crianças, no interior de Portugal – e quando digo interior não é preciso ir muito para dentro – que chegavam à escola sem comida. Zero, nem um pequeno almoço. Nessa escola eram servidas refeições com um custo médio de 70, 80 cêntimos. Foi a minha gota. Foi o que me levou a escrever a carta. “Eu não quero estar a viver neste país.” Causou-me um desconforto enorme.

 

Muita zangada, começou a sua carta com um “Vão-se foder”.

AC – Foi uma catarse.

 

Passo seguinte, qual é?

AC – Muita gente me perguntou isso. “Escreveste este texto. E agora, vais fazer o quê?” Vou continuar a fazer aquilo que sempre fiz. Trabalhar, tentar ser muito boa naquilo que faço e contribuir para a sociedade. Mas ninguém pode esperar de mim, do Eugénio, de cidadãos que então se manifestaram, soluções para o país (como disse no início da entrevista). Gostava de acreditar que as pessoas que estão à frente do país sabem o que estão a fazer. Ninguém acredita nisso.

EL – A minha carta seria muito curta. Pediria aos poderes que nos governam (todos eles, não só o Governo) que admitissem, por um minuto que fosse, que podem estar errados. Esta atitude de humildade científica é a única que tem feito avançar o pensamento humano. Discutam em diálogo aberto com os parceiros, ouçam as propostas alternativas, excluam de vez a ideia do caminho único e procurem dialogar de adulto para adulto com uma Europa que já parece demasiado preparada para nos ouvir.

AC – Nós é que ainda não falámos.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2012