Maria Helena Rocha Pereira
Nasceu em casa, num tempo que já não se respira. Um tempo em que as meninas tinham preceptoras que iam a casa, diariamente, dar a lição. A casa era um palacete, no meio de um jardim grande e bonito, no Porto. Quando aos 18 anos se mudou para Coimbra, sentiu falta do jardim. E hoje, à entrada da porta, há «um jardim de vasos», que é seu.
A casa é recatada, tem as paredes revestidas de livros, algumas prateleiras abrigam uma segunda fila. Os Livros, o Saber, são a sua vida.
Maria Helena da Rocha Pereira tem 78 anos. Foi a primeira professora catedrática da secular Universidade de Coimbra. A primeira em 666 anos. A primeira a prestar provas. Carolina Michaelis tinha sido convidada.
Viveu sempre com os antigos. Abraçou o estudo dos gregos e latinos como se abraça o sacerdócio. Não casou, não teve filhos. Tem quatro sobrinhos que adora.
É por causa dessa dedicação exclusiva que podemos ler em português a «República» de Platão ou «As Bacantes» de Eurípides, por exemplo. Elaborou a «Hélade», antologia da cultura grega, porque os alunos provenientes dos mais diversos cursos nem sempre sabiam grego. Traduziu a «Medeia» ou a «Antígona» a pedido do grupo de teatro da universidade. Mas diz que detesta traduzir. Gosta muito de estudar e ensinar e a isso votou a sua existência. Ensinou durante quarenta anos, é professora jubilada desde 1995. Deixou de dar aulas, mas continua a orientar mestrados e doutoramentos.
Tem uns olhos muito azuis que ainda sorriem e se emocionam.
Aos seis anos já ensinava as empregadas a ler.
A maior parte das empregadas, ou quase todas, não sabiam ler. Gostavam de trabalhar na cozinha e eu lia-lhes poemas simples. Fazia-me confusão que alguém não soubesse ler. Considerava o saber ler, não direi um privilégio, mas uma vantagem. Aprendi muito cedo, aos quatro anos. Quem andava a aprender, era a minha irmã, mais velha dois anos. A minha mãe ensinou-me as letras, e depois fiz o resto. A leitura foi pouco menos que automática. Portanto, ensinava-as. Isto mais ou menos até aos onze, doze anos; de maneira de ensinei muitas. Nesse tempo era frequente que uma casa tivesse duas ou três empregadas.
A sua mãe tinha uma formação académica?
Tinha estudos, mas não como hoje é corrente. O pai sabia e naturalmente tomava decisões, mas quem se ocupava de perto da nossa educação era a mãe. Este tempo é-lhe totalmente alheio, mas vou dizer-lhe: foi um certo escândalo que a minha mãe quisesse matricular-nos no liceu. Porque as meninas bem iam para o colégio. Foi uma escolha de qualidade, o ensino no liceu era infinitamente superior ao do colégio. Segundo escândalo: irmos para a universidade.
Foi para o liceu com que idade?
Fiz exame com nove anos. Estava preparada aos oito, mas não era permitido entrar quem não completasse dez até ao final ano civil. Tive de esperar um ano. O que não foi mau, porque fiz uma quarta-classe extremamente sólida, que é fundamental para a continuação dos estudos, e está na base do insucesso de hoje. Depois andei no Carolina Micaelis, do primeiro ao sétimo ano. Havia o inconveniente de o liceu ser gelado... Eu era o que se chama uma criança fraca, débil; doenças do frio, anginas, gripes, eram umas atrás das outras.
Depois do liceu, vem estudar para Coimbra. Era claro que queria seguir a carreira universitária?
Nesse tempo a carreira universitária era impensável para uma rapariga. Havia duas ou três senhoras assistentes em Ciências; mas estavam um tempo e depois iam embora. A minha faculdade era totalmente avessa à contratação de senhoras. Isto não me impedia de estudar! Porque eu queria saber. Embora nunca o dissesse, tive sempre o plano de seguir uma carreira universitária. A minha mãe e a minha irmã sabiam. Mais tarde, os meus condiscípulos diziam que sempre tinham percebido que eu queria seguir a carreira.
Era o afinco com que estudava?
Comecei a estudar a fundo, a estudar noite e dia. Na universidade, se uma pessoa se limitar às aulas, por muito bons que sejam os professores, sabe muito pouco. Estudei nos anos da Guerra. Lembro-me muito bem porque era dificílimo conseguir os livros, que eram todos estrangeiros. Mas tarde, acabei por ir estudar para Inglaterra.
Já lá vamos, a Oxford. Antes, deixe-me perceber porque é que foram as letras que exerceram fascínio sobre si. Na família havia um pendor para as ciências: a sua irmã formou-se em matemática, o seu pai era médico e professor de medicina.
Estudou medicina, mas era do tempo em que se tinha sete anos de latim do liceu. Gostava muito das coisas latinas e dizia versos da «Eneida» de cor. Há um verso do canto primeiro, que um professor dizia ser o verso mais sonoro de toda a latinidade; o meu pai gostava muito de o repetir: «Nimborumque facis tempestatumque potemtem».
O que é que significa?
«Fazes-me rei das nuvens e das tempestades». É muito sonoro, de facto. A deusa Juno vai ter com o rei dos ventos para que desencadeie uma tempestade que faça naufragar Eneias; quando lhe dá esta ordem, ele responde, satisfeito: «Fazes-me rei das nuvens e das tempestades».
O seu interesse pela cultura clássica radica aí?
Tive sempre a ideia de que o latim era uma língua excepcional, que seria maravilhoso estudar. Grego não sabia ainda, aprendi-o em condições particulares a partir do sétimo ano. E gostava muitíssimo de português. Digamos que os valores estéticos, incluindo os da linguagem, me eram extremamente gratos. Aprendi as línguas como acesso às respectivas literaturas: era para ler os grandes autores no original. Não há nada que substitua o original, por muito bem feita que seja a tradução.
Na universidade começa a estudar noite e dia. Porquê?
Para saber, tinha de estudar muito. Fui estudando, fui sempre estudando ao longo dos anos. Mas quando cheguei ao fim do curso ainda era tudo muito insuficiente. Regressei a casa dos meus pais, cheguei a ensinar algum tempo no Centro de Estudos Humanísticos. Passaram-se três anos e foi mesmo a minha mãe que viu que aquilo não era futuro. Se queria doutorar-me... Porque isso estava assente na minha vida: que ia doutorar-me.
Já sabia o que queria fazer à vida? Ainda era pensável o mais previsível dos futuros para uma menina do seu meio, que era constituir família?
Não se proporcionou ocasião de resolver essa questão tão difícil. Tão difícil porque eram pouco compatíveis as duas situações: uma dedicação total ao estudo e a vida de família, que eu entendia também como uma dedicação total. Não cheguei ao ponto de ter de optar. A minha ideia era, contra tudo e contra todos – sabia muito bem o que pensavam aqui na Universidade de Coimbra – fazer o doutoramento.
Não havia ninguém a estimular o seu propósito?
Havia aqui um professor de grego que considerava, talvez por ser casado com uma mulher muito inteligente, que as mulheres, se tivessem mérito, deviam seguir a carreira. Mas era só ele. Ele mesmo me deu o conselho de ir estudar para o que era então o melhor centro de estudos clássicos: a Universidade de Oxford. E foi isso que fiz. Pedi uma bolsa de estudo, deram-me uma bolsa que não chegava..., o meu pai punha o que faltava.
Que vida era a da sua irmã?
A opção dela tinha sido outra. Queriam que ficasse na faculdade de Ciências do Porto, ela é que não quis. Casou pouco depois, teve aqueles quatro filhos seguidos [aponta para a fotografia sobre o móvel].
Não teve pena de não conhecer aquela dimensão, a da família e dos filhos?
Ajudei muito no que pude na educação dos meus sobrinhos. A minha irmã acompanhava-os na parte das ciências e eu na parte das letras.
Isso é o contacto com as matérias. Outra coisa é o amor e a dedicação.
Ah, era total. Era e é. Tenho uma grande afeição pelos meus sobrinhos, eles também a têm por mim.
Então não lamentou não ter tido filhos?
Não. Digamos que tinha a compensação dos meus sobrinhos, que iam muito para casa dos meus pais.
Mas nunca é a mesma coisa.
É claro. Senão, é porque a mãe não presta.
Quando chegou a Londres a Guerra tinha acabado há cinco anos. Vivia-se ainda o racionamento dos bens de consumo.
O racionamento estava ainda no máximo. Quando cheguei tinham acabado de se tornar livres o leite e o sabão. Tudo o resto era com pontos, cumprido fielmente e muito bem pensado. Dietistas estudaram o racionamento com o mínimo necessário com o que uma pessoa podia andar em pé. E havia pontos extra, «Old age tea» por exemplo, para as pessoas de idade que estavam habituadas ao seu chá. É uma coisa muito bonita, não é?
O que foi para si Oxford em 1950?
Foi uma oportunidade única. Tinha professores de uma qualidade extraordinária, mundialmente conhecidos, entre os quais dois alemães que tinham fugido ao nazismo, notabilíssimos. E ao mesmo tempo... Eu tinha estado em França nas férias grandes, a estudar, a ler livros na biblioteca nacional. Cá não havia nada. E era um país caído. Em Paris havia por todos os lados raminhos de flores: «Aqui caiu fulano, lutando pela liberdade». Aqui caiu. A Inglaterra era um país de pé. Era extraordinária a consciência cívica, o espírito de resistência e de vitória.
A ocupação em França foi sentida como uma faca no peito.
Pois foi. Mas também foi o país que se rendeu. A Inglaterra foi o país que nunca se rendeu. Até à entrada dos Estados Unidos, lutaram sozinhos, com Londres a ser bombardeada – na cidade ainda havia marcas disso.
A sua tese de doutoramento é sobre o conceito de Felicidade no Além. Porque é que escolheu este tema?
Acho um tema sedutor: o que é que um homem entende por Felicidade. E neste caso, transposto para o Além.
O primeiro elemento que destaca é Felicidade. Aparentemente o mais sedutor seria o Além, por ser a incógnita absoluta.
A minha primeira ideia era o quadro do Além em geral, incluindo os Infernos – que os gregos chamavam de outra maneira: Hades. O que levaria a um trabalho sobre a estética do horror. Na literatura latina (eu tinha começado por aí), havia várias descrições do Inferno, do Além. A mais famosa e extraordinária é a da «Eneida». É a tal estética do horripilante. Do medo, também. Depois verifiquei que o tema era inesgotável. Acabei por ficar com a Felicidade no Além, de Homero a Platão, e o que isso implica na ideia de julgamento moral.
Pode explicitar a noção de julgamento moral?
A noção vai-se formando aos poucos. Em Homero não existe. Todos vão para o Hades, incluindo Aquiles, que Ulisses encontra. Encontra-o e diz-lhe que ele é feliz, porque é rei no Hades. E Aquiles diz que mais vale ser servo da gleba na Terra do que ser rei de todos os mortos. A vida no Além é imaginada como compreendendo uma série de sombras. Todos continuam as actividades que tinham, mas numa terra triste. Aquiles, como era rei em vida, continua a ser rei no Além.
Na «Odisseia», Ulisses encontra no Hades um dos seus homens, que tinha morrido sem que este o soubesse. Aparece a Ulisses porque não tinha tido rituais fúnebres. Porque é que estes rituais eram tão fundamentais para os gregos?
Em todos os povos existe a ideia do ritual fúnebre. A ideia de que a alma (não ainda no sentido filosófico, mas a tal sombra), não terá descanso se não tiver os rituais fúnebres. Isto tem um pouco que ver com a necessidade de nos separarmos materialmente dos mortos. Não só a necessidade de marcar esse afastamento, mas também a de que é preciso dar-lhes sepultura. Na «Ilíada» há momentos em que a acção guerreira é suspensa para cada um dos povos em confronto sepultar os seus mortos.
A pessoa não tinha honra se o ritual não fosse prestado?
Não tinha honra, não tinha descanso.
O que é que se pode entender por descanso?
Uma ideia primitiva da morte é a de que ela representa o descanso. O nada. Dizendo o nada estou a importar uma ideia que é posterior. Os vivos consolam-se um pouco com a ideia de que aqueles que lhes eram caros estão em descanso. Ainda hoje está nas fórmulas da Igreja Católica: Descanso Eterno. A aparição dos mortos sob a forma de fantasmas está ligada a isto: vêm atormentar os vivos porque não estão em descanso eterno.
Aquiles diz que preferia ser servo da gleba na Terra do que ser rei de todos os mortos. Isto não pressupõe uma inquietação ou tristeza que contraria o que se imagina que seja o descanso eterno, a paz definitiva?
Digamos que a ideia está ainda em formação. Voltando a Aquiles, há depois a tradição de que vive na Ilha dos Bem Aventurados, um lugar de delícias, com clima privilegiado, e atrás dele vão outras figuras. Começa a noção, que poderá ter vindo da ilha de Creta, de que há um lugar melhor para pessoas muito valentes, como ele. Aos poucos, essa noção vai sendo substituída pela noção de superioridade moral. Isso consubstancia-se nos mitos escatológicos de Platão: há um julgamento post-mortem com destinos diferentes de acordo com o comportamento moral em vida.
Temos ainda uma herança disso quando pensamos que vamos pagar depois de mortos o que andamos a fazer em vida.
Pois temos. Essas ideias gregas passam aos romanos, estão na «Eneida». Na «Eneida», ao lado do Hades, há já os Campos Elísios, que nesta altura não são ilhas distantes mas uma parte privilegiada do Hades. A «Eneida» tem uma influência incomensurável. Não é por acaso que Dante escolhe Virgílio para o guiar [«Divina Comédia»].
Como pai espiritual.
Não só como poeta, mas como pai espiritual. Está a ver os pontos de passagem?
Quando fez a tese qual era o seu conceito de felicidade?
Pessoalmente? Não arranja uma pergunta mais difícil para me fazer? [risos]
Porque é que é tão difícil?
Naturalmente que fazia parte a noção de felicidade familiar, que era e continua a ser fundamental. E particularmente, para mim, a felicidade no saber, no estudo. Essa nunca a perdi.
A felicidade são momentos fulgurantes?
É mais isso. Posso dar-lhe um momento fulgurante, muito curtinho: quando subi as escadas da Via Latina da Universidade pelo braço do meu pai para fazer concurso para Professora Catedrática.
Porque é que esse momento foi tão mais significativo que o do doutoramento?
Para aquele momento, queria ter a felicidade de ter o meu pai, ainda.
E quando foi à Grécia pela primeira vez e se abraçou a uma coluna?
Ah, eu nem acreditava! Nesse tempo ia-se de barco para Atenas. Tinha havido grandes tremores de terra e por isso não se podia passar o canal de Corinto. Demos a volta toda ao Peleponeso e chegámos a Atenas ao entardecer. Ao entardecer os últimos raios de sol brilham sobre o Pártenon numa luz mais ou menos rósea – as colunas de mármore vão mudando de cor conforme a hora. É uma vista!, é um deslumbramento!... É uma colina íngreme, a colina da acrópole. Quando cheguei à base, quase não podia andar.
De?
De emoção. E depois acaba no abraço à coluna! Nessa altura podia entrar-se no Pártenon, agora não – já estaria destruído por tantos pés.
Ao abraçar a coluna pôde experimentar a mesma emoção que se tem quando se abraça um pai, alguém que se ama muito?
Talvez fosse parecido. Só que a coluna é tão larga, tem um diâmetro tão grande, que não dá para abraçar tudo ao mesmo tempo.
Chorou?
Não. Tanto não!
Não chora?
Habitualmente não. Às vezes acontece. Eu não era o género de lágrimas... Talvez porque fosse predominantemente intelectual a alegria desse encontro.
Quando subiu as escadas com o seu pai chorou?
Não. Ia felicíssima. Contra tudo e contra todos tinha chegado onde queria.
A tenacidade que a levou a subir degrau a degrau até ser professora catedrática, sente orgulho nela?
Tenho gosto em tê-lo feito. O meu doutoramento foi o primeiro de uma senhora numa universidade que tinha 666 anos, na altura. Eu queria atingir essa meta, indispensável para poder continuar e para ensinar. Gosto muito de ensinar.
A sua ambição era Saber.
Mas isso não é orgulho.
Sente orgulho em Saber?
Não! Até porque nunca se sabe tudo, nem coisa que se pareça. Somos sempre uns ignorantes e temos de ter consciência disso.
«Só sei que nada sei», parafraseando Sócrates?
É isso que acontece. Estamos sempre a verificar os limites do nosso saber. E à medida que aparecem novidades, e há muitas relativas à Antiguidade Clássica, trazidas sobretudo pela arqueologia, está sempre tudo a alterar-se. A procura do saber é constante. Não somos senão uns humildes aprendizes. Eu costumava dizer no começo das aulas: «Vou ensinar aquilo que sei. Em muitos casos vamos ficar na dúvida. A dúvida é científica. Às vezes é mais científica que a verdade». Muitas vezes fazia uma exposição o mais completa que podia, chegava ao fim e dizia: «Daqui para diante não sabemos mais».
Na sua tradução da «Antígona», de Sófocles, pode ler-se o seguinte: «O homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente». O que é que se pode saber? O que é que significa queimar os pés no fogo ardente?
Penso que esse fogo ardente simboliza a dor, o sofrimento. Na «Oresteia», de Ésquilo, está dita em duas palavras apenas: «Pathei Mathos». Isto é, «No sofrimento está o aprendizado». Por outras palavras, o homem aprende sofrendo. Aprende as suas limitações.
Escreve-se na «Antígona»: «Não se pode ter a grandeza sem a desgraça».
É. Nas tragédias gregas, quando menos se espera, desencadeiam-se desgraças sobre o homem, que ele muitas vezes provocou sem saber. Isto tem que ver com um dos conceitos mais discutidos na «Poética» de Aristóteles: «Hamartia». Discute-se, e discutir-se-á, e há livros só sobre o assunto, o que é que ele entende por «Hamartia». Muitos pensam, e eu também penso, que esta «Hamartia» é um errar por desconhecimento. É o que acontece particularmente no «Rei Édipo», de Sófocles. No fundo, é sempre a ideia das limitações do homem, que não pode ultrapassar a sua medida e tentar igualar-se aos deuses.
Por isso é que o pecado maior é o do orgulho e soberba, a «Hybris»?
Exacto, a insolência, a «Hybris». Geralmente diz-se que os deuses eram muito vingativos. Um conceito muito primitivo. O que está por detrás disto é a ideia de que há uma entidade superior que castiga os homens se eles tentarem ultrapassar a sua condição. Portanto, a condição humana é frágil, é sujeita a errar e todo o orgulho é punido.
A primeira limitação do homem advém do horizonte da morte? «O Hades é insaciável» («Antígona»). Todos podem escapar a todo o tipo de infortúnio, mas ninguém escapa à morte.
Ninguém escapa a esse.
Nesse sentido, a morte é o primeiro sinal da nossa limitação.
É.
O que é para si o Saber?
Há bocado perguntei se não tinha nenhuma pergunta mais difícil... Faz-me outra! O Saber não se pode atingir. Identifico-me bastante com a Teoria das Ideias que está exposta na «República» e noutros diálogos [de Platão]. As ideias puras, não as atingimos. Atingimos reflexos dessas ideias. Geralmente os caminhos do saber não chegam lá. E quanto mais a ciência avança, mais vemos até onde vão as nossas limitações. É um pouco paradoxal, mas é o que acontece.
Deixe-me voltar ao excerto «O homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente». Tanto quanto percebo, resguardou-se sempre de queimar os seus pés no fogo ardente.
Fiz o possível!
Mas então, se não nos expusermos ao sofrimento, não podemos conhecer deveras. Uma exposição à vida.
Eu acho que me expus bastante. Não é muito fácil a uma pessoa que teve uma vida e uma educação no género que descrevi, ir sozinha estudar para Oxford, sem conhecer as pessoas, com hábitos diferentes. Nos países latinos há uma solidariedade maior, por exemplo, quando uma pessoa está doente e todos à volta procuram ajudar. Na Inglaterra não é assim, e experimentei isso. Houve um longo período em que estava débil, uma ciática muito forte, provavelmente provocada pelo clima. Quase não podia andar, para poder ir às aulas tive de ir e vir de taxi. Mas nunca deixei de ir.
Essa tenacidade, já é o tipo de coisa de que se orgulha?
Eu acho que fiz bem, tornava a fazer o mesmo.
Porque é que o mito de Orfeu e Eurídice é um dos seus preferidos?
Não é meu preferido, é dos poetas. Eles é que andam sempre com o mito de Orfeu e Eurídice. Tem uma grande beleza, sem dúvida.
O que há neste mito é o amor de Orfeu por Eurídice, tal que tenta vencer a morte.
Tenta vencer a morte, mas depois não é capaz de se vencer a si próprio.
É vencido pela curiosidade?
Olha para trás. Há quem tenha encontrado outras motivações, além da curiosidade. Os mitos vão recebendo adições e tratamentos diferentes. Na sua formulação que se tornou mais conhecida, que é a das «Geórgicas» de Virgílio, Orfeu não resiste mais e esquece por momentos a condição que a rainha dos mortos lhe tinha tornado obrigatória: não podia olhar para trás antes de chegar à luz do dia. Ele olha e ela desaparece. E depois, em Virgílio, há aquelas últimas palavras de Eurídice: «Não mais tua»...
Posso perguntar-lhe se alguma vez amou?
Eu? Que pergunta tão indiscreta! [risos] Que pergunta tão indiscreta!
Se este mito não é o seu preferido, é qual?
Não tenho uma preferência. Estes mitos que mostram a limitação e ao mesmo tempo a persistência do humano... Como o mito de Sísifo. A pedra cai, mas ele volta a rolá-la. Está na parte final do canto XI da «Odisseia». Em grande parte traduz a condição humana, é por isso que tem um apelo tão grande em todas as épocas.
No mesmo canto há outro mito famoso, o de Tântalo.
O mito de Tântalo tem mais do que uma versão. Uma delas é esta: ele está morto de sede e mergulhado na água que não pode beber; está morto de fome e vê frutos ao alcance da mão, se tentar tocar-lhes, eles desaparecem. Mas há outra forma do mito: tem uma pedra suspensa sobre a sua cabeça e essa pedra ameaça cair a todo o momento. É só isso. A pedra de Tântalo. É uma versão completamente diferente, que aparece já em Píndaro, por exemplo.
Numa e noutra há qualquer coisa que pende. Há sempre a dúvida.
Num caso há, não direi a angústia, porque a angústia existencial é uma noção moderna, mas o terror de ver cair a pedra, que não se sabe como é. Este mito, nesta versão, reflecte, talvez como nenhum outro, a condição humana.
Não sabemos nunca quando a morte impende sobre nós.
E as catástrofes. Muitas são previsíveis, mas a maioria não. A outra versão do mito de Tântalo, a da fome e da sede, é outra maneira de mostrar as limitações do homem. Parece que tudo está ao seu alcance, e não está.
Nos gregos a questão da sepultura é fundamental. Como é que gostaria de ser lembrada?
Gosto da imortalidade à moda de Platão. Isto é, é só a «Psyche», a alma, com o sentido que já tem nele. A «Psyche» em Homero é a vida, a respiração; tanto assim que o que está no Hades é a «Psyche», o corpo ficou na Terra. A alma será algo de imaterial. Nos mitos platónicos, a alma é o que sobrevive e é feliz porque contempla as ideias puras, o Saber, ao qual, em vida, não podemos aceder.
Os antigos escolhiam os seus epitáfios. Se escolhesse o seu, o que seria?
Nunca pensei fazer o meu epitáfio! Agora nem se põe! [pausa] Julgo que é inseparável o gosto do magistério e o estudo. Não tenho a noção antiga do suposto sábio na torre de marfim. Um professor que não crie discípulos não é completo. Bem, estamos outra vez no «Fedro» de Platão, quando diz que o livro diz sempre a mesma coisa... O que interessa é o mestre vivo.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias em Dezembro de 2003