Sangue do Meu Sangue
Cenas da vida no bairro Padre Cruz: paredes verde alface, espaço exíguo, um filho que dorme no sofá, uma natureza morta emoldurada. Objectos baratos, vozearia que chega das casas contíguas, vizinhas que vão alegremente de soutien ao quintal. Uma pobreza que não é sórdida; talvez só inestética. Noções particulares do que é o pudor ou a privacidade.
Ali vive uma mulher, cozinheira, com os dois filhos e a irmã, cabeleireira de bairro (daquelas que andam sempre com uma mola no cabelo). A filha estuda enfermagem e trabalha como caixa de supermercado. O filho é um pequeno delinquente (daqueles que oferecem à mãe um fio e uma medalha com o dinheiro de uma golpaça). Uma família como as outras. Poderiam comer spaghetti com molho de tomate, quando os encontramos pela primeira vez; mas não comem. Poderiam usar palavras como “abnegação”, porque é isso que fazem – entregam-se abnegadamente – o tempo todo; mas o palavreado é outro.
“A família é um lugar muito estranho, é”, começa por dizer João Canijo. “Não há nenhuma família que não seja psicótica. A estranheza advém da incomunicação. Que é geral, mas que na família se torna mais estranha. Mas a ideia não era essa. A Electra, de que fiz uma versão literal no filme Mal Nascida, é uma história sobre a falta de amor. Ou sobre a incapacidade de demonstrar amor. O filme seguinte teria de ser sobre o amor incondicional.”
O centro de Sangue do meu sangue, o filme de que se fala neste Outono, é uma família que permitia a Canijo responder à questão: como é que um amor incondicional sobrevive em condições difíceis? “As pessoas que têm vidas difíceis passam o tempo a lutar pela sobrevivência. Não têm tempo para elaborar sobre os seus sentimentos.” Tudo está mais à flor da pele. Tudo é mais irreflectido. Nos antípodas da personagem de Beatriz Batarda, uma senhora elegante, destroçada emocionalmente, e que, mesmo assim, se dirige nestes termos à empregada: “Tamara, passe-me o azeite e o vinagre, se faz favor”. João Canijo, nascido numa família bem, do Porto, nunca quis fazer um filme que se passasse num meio de ricos. “Os pobres são muito mais interessantes do que os ricos. Se calhar porque estão mais próximo da Humanidade. Se calhar porque não têm tempo para reflectir sobre a existência. Vivem, simplesmente.”
Apresentemos a família Fialho. Márcia é interpretada por Rita Blanco. O retrato pintado pela própria: “Prática. Não sofre dos medos urbanos, de insegurança. Está ali para tratar dos filhos que teve. É discreta. Não tem nenhum acto heróico. Mas sabe muito bem quando actuar. Não é amarga porque as pessoas que têm capacidade para dar dificilmente caem na amargura. Sofrem, mas não amargam. Viver com amor é muito compensador.” Márcia é uma mulher que diz à filha, como se fosse tudo a mesma conversa: “Também tens que ir à tua vida, assim é que está certo…. Não sei que sopa é que hei-de fazer amanhã.”
Cláudia Filipa, nome de uma balada de subúrbio, é a filha com quem a mãe tem uma relação de profunda intimidade. Dormem na mesma cama. “Elas fazem aquilo que os psicólogos dizem que não se deve fazer. A mãe é a melhor amiga dela. O ídolo, a confidente. Ela não quer ser como a mãe. Quer ter mais dinheiro, mais oportunidades. Quer ter uma vida burguesa. Mas sabe que a mãe sofreu muito para a ter, sem a presença de um homem. Se tivesse havido um pai…”, define Cleia Almeida.
O pai que ela nunca conheceu. Que reencontra no início da idade adulta. Sem saber que é o pai. Como nos melodramas. Como na tragédia grega; embora este filme de Canijo não tenha a estrutura de uma tragédia grega, nem se aproxime de personagens de Eurípedes. Apesar dos temas, do incesto, da vingança.
O nó do problema é o pai. “Porque é que eles se apaixonaram? Ela não é mais bonita ou mais inteligente do que qualquer outra aluna… Partimos daquilo a que podíamos chamar a força do sangue. A atracção física é inexplicável.”
A relação incestuosa que Cláudia mantém com o pai é o excurso usado por João Canijo para falar do amor incondicional da mãe pela filha. Márcia, uma personagem “muito leve apesar do peso da vida que tem”, diz a actriz, descobre que o homem por quem a filha está apaixonada é o último dos homens. E uma noite, em desespero, vai ao seu encontro. Enquadra-os uma luz bruxuleante, um silêncio que o bairro Padre Cruz não conhece. Márcia profere a sentença: a relação que aquele homem, que um dia ela conheceu intimamente, mantém com a filha é impossível.
Mas à filha, a mãe omite a razão da impossibilidade. “Quando ela descobre que a filha anda enrolada com o pai, porque é que não conta? Demorei 15 dias a perceber isto. Um gajo não chega lá”, diz o realizador. Mas uma gaja, Rita Blanco, aquela mãe que ama incondicionalmente, Márcia, chega. Porque só existe o que os nossos olhos vêem. Para Rita, a resposta é muito clara. “Se ela nunca souber, não há incesto. Apaixonou-se por um homem, correu mal, adeus. E não foi uma tragédia”. A tragédia é a de saber. “Assim ela pôde sobreviver. A outra dor, a mãe temia que a destruísse como mulher. Que destruísse as possibilidades que ela ainda tinha de ser feliz”.
Outro núcleo, a mesma família. Uma tia e um sobrinho. A tia diz a um homem que é a encarnação do Mal: “Tenho muita pena dos bacanos que têm de pagar para conseguir dar uma foda.” (Na vida como ela é, no bairro Padre Cruz, recorre-se ao vernáculo para dizer coisas banais como o céu estar carregado). Anabela Moreira interpreta esta tia, voluptuosa, que se sacrifica para salvar o sobrinho (a barreira do incesto não é transposta, apesar de uma quase promiscuidade carnal entre os dois).
Quando vemos Ivete pela primeira vez, à mesa, ela não faz declarações sobre o amor sacrificial. Veste uma combinação transparente, tem uma toalha enrolada na cabeça, bebe chá rooibos. “Não casou, não teve filhos. Sente-se a mais numa casa que é dela e da irmã. Sente que é invisível”. A actriz tem cadernos que escreveu em nome de Ivete que falam da frustração que a personagem sente. Do Vazio. Da contradição. Do falhanço. Diários que a ajudaram a compor aquela mulher que passou há pouco dos 30, envelhecida, sem futuro.
A relação umbilical de mãe e filha exclui-a. Os homens olham-na com luxúria. Resta-lhe Joca, o sobrinho, interpretado por Rafael Morais. Porque é que se sacrifica? “Há um agir pelo outro. Mas não é só pelo outro. Não é um acto completamente altruísta. É um acto que está relacionado com o nosso ego. Ivete não consegue imaginar o que seria não corresponder à ideia que tem do que é o amor.”
O final do filme coincide com a sua submissão a um homem que é o big boss da zona, um quase diabo, o bacano que pergunta “quanto levas?”. Uma cena de uma violência inexcedível. Física, emocional, sexual. Não é a nudez que incomoda Anabela Moreira. A facada em Ivete é a frase que diz que está velha, que tem o peito descaído. “Obviamente não foi real. Mas a cena foi tão vivida que o Nuno Lopes me abraçou, no final, e pediu desculpa.”
Às gajas – provocamos – custa ver esta cena final… “Diz que custa.” Risos. Na filmografia de Canijo as mulheres são as heroínas de noites escuras, mas são também as crucificadas. “Porque na vida fodem-se sempre. São mais disponíveis, são mais vulneráveis. Talvez por isso. Mas o filme era para acabar bem.” Rita Blanco declara: “Batalhei muito para que o fim fosse feliz”.
Um dos núcleos da história acaba bem. O outro, nem por isso.
Nuno Lopes engordou dez, quinze quilos para compor este traficante que se sentiu demasiado tempo um dejecto da sociedade. Inesperadamente, trata as filhas com carinho. “O Nuno Lopes e a Anabela Moreira são os actores portugueses que conheço com maior disponibilidade de entrega. São capazes de fazer tudo pelos papéis, à americana. A Anabela engordou 25 quilos para o Mal Nascida. Isto pode parecer uma coisa histérica, mas não é. Exprime uma disponibilidade para fazer as coisas. E é rara”, diz João Canijo.
Descrição sumária daquele a quem Nuno Lopes dá corpo: Cabelo rente, um casaco de cabedal, um olhar de pedra. “A obsessão da minha personagem é o dinheiro. A única maneira que tem de não se sentir renegado é sair ou ser o dono do subúrbio. O seu tom fundamental é o de vingança em relação ao passado.”
É uma personagem masculina forte. Uma excepção na galeria de Canijo. “A gaja, em geral, é melhor actriz do que o gajo é actor. Depois de anos a pensar nisto cheguei à conclusão de que é biológico. Porque ela é receptiva, e portanto está disponível. Ele é competitivo, agressivo. São elas que me dão aquelas personagens. São raríssimos os actores que me dão o mesmo que elas.”
Em Sangue do meu sangue Canijo teve condições (leia-se: de produção) para usar uma metodologia invulgar. O documentário Trabalho de actriz, trabalho de actor resume o modo como tudo se passou. Foram dois anos de criação. “O argumento foi sendo escrito. Evidentemente não foi escrito pelos actores… Manipulei-os o mais possível. A densidade psicológica é toda deles. O processo era simples: eu filmava tudo o que diziam nas discussões e improvisações. Sempre com a noção de que tinham total liberdade. E tinham. Como é que eu os dirijo? Não dirijo! Isso era quando era novo. Não tem graça nenhuma, dirigir actores. Como é que os manipulo? Seleccionando entre aquilo que eles dão. Como um maestro, sou eu que tenho a noção do conjunto. Nem podia ser de outra maneira. Senão seria uma coisa caótica.”
Nuno Lopes, que trabalha pela primeira vez com o realizador neste filme, dá um exemplo de como as coisas se passavam: “O guião tinha indicações gerais. “Ele bate nela”. A proposta era construir connosco as personagens e criar o diálogo baseado nessa discussão. Quando chegávamos à mesa de ensaios, o João perguntava: “Mas porque é que bate? Porque odeia?, porque gosta?”. John Cassavetes ou Mike Leigh, cineastas que Canijo admira especialmente, experimentaram processos semelhantes no passado. “O João parte de um pressuposto, que é raro num realizador: o de que os actores são inteligentes. A ideia que vigora é a do actor-marioneta. Mas nas sessões de trabalho ele pedia: “Quando me falares da tua personagem, fala-me também de ti”. Quando chegámos à rodagem, com este trabalho de ensaio e de participação no guião, as palavras que digo no filme são as palavras que inventei”.
João Canijo frequentou o bairro Padre Cruz. Uma imersão num Portugal profundo, que lhe aparece em todo o lado, que percorre filmes como Noite Escura (inspirado no caso Mea Culpa, passado em Amarante), mas que ali estava circunscrito. Frequentou um bairro onde há facadas, pedradas, pessoas acossadas, pessoas desconfiadas, pessoas extenuadas. “Durante dois meses, fui todos os dias. Ao fim da tarde, porque era quando as pessoas regressavam a casa do trabalho. O bairro foi-me fácil. É onde vive a minha mulher a dias. Entrevistava pessoas, falava com elas. O foco principal do que diziam era a dificuldade em sobreviver. O resto vinha por acréscimo. Ao falarem, naturalmente percebiam-se as suas relações familiares.”
Cleia trabalhou num supermercado, Anabela pintou unhas num cabeleireiro. Pretendia-se que o espectador visse a Cláudia Filipa e não a actriz Cleia Almeida a fazer de Cláudia Filipa. O que temos em Sangue do meu sangue? Um cinema que se imiscui na vida de verdade, que traduz uma vida que não é arrumada, que tem a televisão sempre ligada, irritantemente, que tem cenas e conversas a acontecerem em simultâneo. Para qual olhamos? Qual seguimos? Com qual nos identificamos? E que fazer quando tudo arde? Colapsamos ou seguimos em frente, numa aparente normalidade?
A família é um lugar estranho. Nela se passam coisas assombrosas, histórias de amor incondicional. Visíveis. Desde que não viremos a cara. Rita Blanco, que desafiou o velho cúmplice, João Canijo, a tratar este tema, respondeu deste modo quando lhe perguntámos o que é o amor incondicional: “É só desejarmos o bem do outro e não querermos nada em troca.”
Publicado originalmente na revista Máxima