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Anabela Mota Ribeiro

António Lobo Xavier

19.09.13

É um homem a quem a vida corre bem. (Nunca correu mal).

É um homem que se desafia com as coisas miúdas como com as graúdas. Que tem, a esse respeito, angústias.

As angústias, nele, situam-se aqui. (Não fala de outras)

Nasceu bem. Cresceu imenso. Já foi um jovem que achava que sabia tudo – sobre Direito Fiscal, nomeadamente. É um homem a quem a vida vai dando algumas lições de humildade.

É um homem que não se imagina sem gravata, mas que gosta da descompostura do todo-o-terreno.

Tem 50 anos, e uma vida dividida entre Porto e Lisboa. Coimbra, lá atrás, foi onde tudo começou. Foi onde começou a ligação ao Direito, foi onde se aproximou da direita.

Já foi político. Ainda é, de certa maneira. É sobretudo um homem que vive entre as empresas e o escritório de advogados. (É sócio de um dos maiores do país, claro).

Quando é que ele vacila? Quando é que ele desatinou? Quando é que a vida tomou um rumo e podia ter tomado outro? Ele explica.

António Lobo Xavier é, além de tudo isto, o homem que todas as semanas aparece na televisão na Quadratura do Círculo. Até onde, lá, ele diz o que pensa? Em que circunstâncias suou ele no programa da Sic Notícias? Também esclarece.

É casado e tem quatro filhos. Entrevista em Lisboa, no escritório, com vista para a cidade. Fuma.

 

 

Considera-se um homem de poder?

Se considerarmos a faceta do poder que decorre da notoriedade, sim. Mas não acho bem que o poder seja isso. Nas sociedades modernas, tem que ver com o poder económico, político, pessoal, a teia de relações.

 

E isso tem.

Não. Uma teia que é cultivada e acrescentada meticulosamente, não tenho. Tenho uma teia de amigos, de clientes, de pessoas com quem trabalhei, mas não olho para ela como uma coisa que tenho de ter organizada.

 

Dá-se profissionalmente com algumas das pessoas mais poderosas do país: Belmiro de Azevedo, Eng. Mota, Grupo BPI. Quanto ao poder da influência, há por exemplo Serralves. E claro, a Quadratura do Círculo. São várias frentes, e todas consideráveis. 

A minha relação com o Eng. Belmiro de Azevedo, Paulo Azevedo, Artur Santos Silva ou Eng. Mota é antes de tudo pessoal. São pessoas por quem tenho uma consideração e amizade tais que trabalharia com elas nas circunstâncias em que estou ou noutras. Não creio que tenham uma relação comigo por causa de poder. Sinto honra e um certo orgulho pela confiança que têm em mim, mas não considero que isso seja uma ferramenta que posso usar.

 

Nem sequer falei da política, mas vamos lá mais tarde.

Em alguns dos casos que apontou, não vejo poder. Serralves representa uma oportunidade de poder ajudar uma instituição fantástica, à qual acrescento pouco valor.

 

Prestígio, notoriedade, teia de relações: traz-lhe isso? É um dos poucos notáveis da cidade do Porto a fazer parte do grupo.

Não quero parecer um falso modesto, mas não sinto isso que diz. A ideia de poder associada a Serralves até me repugna. A Quadratura, sim. As pessoas que têm um espaço televisivo, um tempo de antena onde podem dizer o que querem, têm um certo poder. Posso criticar ou dizer bem de pessoas – esse poder é inegável.

 

Pode falar-me da sua relação de amizade com o Eng. Belmiro e com Paulo Azevedo?

É uma relação que data do fim dos anos 80. Eu era assistente da Faculdade de Direito de Coimbra e estávamos no princípio da Reforma Fiscal. Eu estudava os impostos e achava que era um grande sábio na matéria. Estava na Comissão da Reforma Fiscal e um colega, hoje meu sócio, Carlos Osório de Castro, disse-me: “As pessoas da Sonae gostavam de falar contigo sobre questões fiscais”. Conversei com as pessoas da Sonae sobre as suas dúvidas e verifiquei que não era capaz de responder a nenhuma. Uma grande lição de humildade. Depois proporcionou-se trabalhar de perto com a Sonae. Pude ter uma relação próxima com o Eng. Belmiro e fiquei logo com uma admiração enorme por ele.

 

Sustentada em quê?

No modo como ele, rapidamente, a partir da informação jurídica, tomava decisões e apreendia os problemas. Era uma coisa rara. Por outro lado, era uma pessoa quente, de uma cordialidade e de uma força impressionantes. Capaz de grandes amores e grandes ódios. Era gratificante sentir que ele tinha respeito e amizade por mim. Era uma força da natureza a reparar num peão.

 

Considerava-se assim tão peão?

Ao lado dele, sim. Eu teria 30 e poucos anos.

 

Era uma confirmação que vinha de fora.

Se quer uma confissão, a noção de que não era propriamente um ignorante e um inútil, e a consciência das minhas capacidades e ferramentas, atribuo-as um pouco a esse contacto. Hoje poderia dizer que uma certa consciência de mim próprio me é dada pela consideração e amizade do Eng. Belmiro.

 

Pensei que a relação se fizesse sobretudo com o Paulo. Até pela proximidade geracional.

Não. O Paulo estudava fora. Lembro-me perfeitamente de o Eng. Belmiro me dizer que o Paulo ia chegar. Fizemo-nos amigos, mas a relação com o pai já existia. O Paulo é também uma pessoa impressionante, não pelas características do pai, mas pelo fulgor da inteligência e pelo gosto pela racionalidade.

 

Rapidez: a analisar, a decidir?

A analisar, a obter informação, e a fazer um juízo. Sobre as mais pequenas coisas. Assuntos de diversão e de trabalho. E é muito humano, e de uma grande simplicidade (não faltam exemplos de pessoas que são de outra maneira nas mesmas circunstâncias).

 

Já voltamos ao Paulo, quando falarmos da aventura em que participaram juntos, a OPA. Antes disso, o fascínio por Belmiro de Azevedo. O seu background familiar era muito diferente. Mas havia em comum o facto de existir uma figura paterna, um tutor, em relação ao qual era preciso fazer um movimento de demarcação, autonomização.

Não. Tenho umas saudades enormes do meu pai, e foi a pessoa que mais me marcou na vida. Mas nunca precisei de nenhuma libertação. Tinha outro problema: uma tradição de advogados livres na família. O meu pai prezava muito essa liberdade, associada à investigação e ao ensino – embora desse também pareceres jurídicos ao Eng. Belmiro. Uma ligação com as empresas, do tipo daquela que desenvolvi, não tem sempre essa liberdade. O meu pai compreendia o meu fascínio, mas tinha receio que fosse uma troca de liberdade por fama e dinheiro. E não achava que fosse uma boa escolha.

 

O seu pai era um académico.   

Era.

 

É curioso perceber no seu percurso que há duas coisas que faz até meados dos anos 90 – quando o seu pai é vivo. Uma é dar aulas, a outra é ser deputado. Depois, parece que faz opções e envereda por outro caminho.

Estive quase a fazer opções no início dos anos 90, quando a Sonae me convidou para entrar. O meu pai, doente, disse-me que essa opção seria negativa para mim; não a tomei por conselho do meu pai. Mais tarde, fiz opções. Desencantei-me da política, ou fiquei triste com a política. Em 1996, era a segunda vez que era deputado.

 

O que é que provocou esse desencanto?

Houve aquele episódio triste da eleição do grupo parlamentar do CDS, a história da caneta, a caneta do Manuel Monteiro, e os votos que eram mais do que os votantes… Abandonei o Parlamento, pensando regressar à advocacia. Um grande amigo, João Pereira Coutinho, convidou-me a trabalhar com ele; fui administrador do grupo entre 1997 e 2001. Essa opção condicionou-me, porque o Paulo Azevedo, a seguir, pediu-me para entrar na Sonae numa função que misturava a minha experiência de advogado e a minha experiência de político com a experiência de gestor. Esse desafio marcou uma grande mudança na minha vida. Aí perdi bastante a liberdade.

 

Como assim?

Estava integrado numa empresa muito organizada, com chefias muito claras, com avaliação, com discussões sobre o desenvolvimento da minha própria carreira, com indicadores de performance que tinha de cumprir.

 

O que é que o fez escolher, verdadeiramente?

Quando se chega a uma certa idade, percebe-se em que não se pode fazer tudo. É preciso passar a vida a pente fino e perceber o que fica e o que se larga. Foi o que fiz. Não há muitos grupos que aceitem ter um jurista, que já foi político, integrado no núcleo dos seus gestores, sujeito às regras dos seus gestores, subordinando-se a todas as rotinas corporativas, e que mantenha um espaço livre para fazer advocacia, para fazer actividade política. Normalmente procuram pessoas de lobby ou gestores de full time. A Sonae e o Paulo tinham uma ideia que foi muito útil para mim: a de que as empresas precisam de diversidade.  

 

E se tivesse de optar em definitivo?

A escolha seria sempre dolorosa. Mas talvez acabasse por escolher o escritório.

 

É porque, apesar de tudo, é onde é mais dono de si?

Não é tanto isso. Não me importo que pessoas como o Paulo Azevedo ou o Artur Santos Silva ou o António Mota decidam coisas sobre a minha vida. Não tenho essa angústia. Mas dificilmente viveria sem a escrita jurídica, o estudo, a solução de problemas jurídicos, sem a preparação de advogados para serem grandes advogados.

 

Voltemos àquele que ensinava Direito nos anos 80. Quando se licenciou, e com um pai académico, pensou que ia ser também um professor catedrático? O que é que queria para a sua vida?

Sair de casa. Gosto imenso da minha família, mas vivia a 200 metros da faculdade e o meu pai era meu professor. Não havia nenhuma dúvida de que estudaria na Universidade de Coimbra e que o meu pai saberia dos meus horários, dos meus exames, de como me comportava. Nunca a vida da universidade foi para mim um Erasmus. Sim, reconheço que queria sair.

 

Foi nessa altura que foi viver para a Holanda?

Exactamente. Fui uns meses. Eu não tinha uma rebeldia, mas em Coimbra havia 14 mil estudantes de fora que tinham uma vida que me parecia divertida… Jantavam e almoçavam fora – era na cantina, mas era fora. Não tinham horas de recolher. Não tinham satisfações a dar. Eu só conheço esse mundo quando sou candidato à Associação Académica de Coimbra. Tinha uma vida controlada. Ia a pé com o meu pai para a universidade e pouco faltava para entrarmos de mão dada! [riso]

 

E isso, com 18 anos.

Sim. Mas não tinha vergonha. O meu pai era um professor prestigiado, e perante os meus colegas tinha orgulho de ser filho do meu pai. Mas lá liberdade total, não tinha. A minha vontade era trabalhar e ter o meu dinheiro, a minha vida. Para a Holanda, fui em 79. Foi a altura mais perigosa...

 

O que é que lhe passou pela cabeça?

Não ia atrás do Milkyway ou do Red Light District. A Holanda era isto: era o único sítio onde sabia que, provavelmente, teria trabalho. Fui num TIR até Paris e depois de comboio até à Holanda. Havia um emprego no hotel Hilton e fui empregado de room service. 

 

Dá uma bela história para contar.

Dá. E marcou os meus gostos. Se não fosse advogado, seria alguma coisa ligado à hotelaria. Gosto imenso de cozinhar. O resto foi: ganhar a vida e conhecer o mundo misterioso de clubes como o Milkyway. Para miúdos de 18 anos, era uma coisa nunca vista! Eu não sabia se voltaria a estudar. Havia uma pressão familiar.

 

Quando foi para a Holanda, anunciou que ia para a Holanda?

É-me difícil reconstituir. Em minha casa não havia liberdade para uma pessoa anunciar coisas. Não haveria financiamentos para essas experiências – e não houve.

 

Quem pagou?

Vendi um fio de ouro, mais uma libra de ouro, que era uma coisa que se dava aos meninos. Esse pecúlio deu para chegar até Amesterdão. Um dos meus colegas de viagem foi repatriado por penúria extrema. Mas arranjei emprego imediatamente, e ganhava-se muito bem. Em 79, ganhei no primeiro mês em que trabalhei 70 contos. Derreti tudo por lá. 

 

Ocorreu-lhe que podia ser empregado do room service toda a vida? Sabia que era apenas uma etapa, era outro destino social.

Não pensei que seria room service waiter toda a vida. Mas pensei que seria difícil voltar à universidade sem dinheiro, com uma mesada exígua. Pensei que um empregozito onde não precisasse de ser licenciado talvez me resolvesse o problema. Devo ao Prof. Diogo Leite de Campos desfazer-me essas ilusões no próprio exame. Mostrando-me que eu sabia, e que sabia raciocinar sobre as coisas. Mostrou-me que o meu mundo era aquele. Que devia fazer um sacrifício.

 

Foi bem recebido quando voltou dessa aventura?

Sim, como o filho pródigo. Olharam-me de cima a baixo: “Que é que este homem terá feito por lá?”. Retomei os caminhos normais de estudante. Em minha casa havia uma regra: o dinheiro é para ser usado de modo frugal, enquanto se estuda não é bom ter muito dinheiro, e quando se tem a ferramenta para a vida já não há mais dinheiro da casa.

 

Tinha uma relação de intimidade com o seu pai?

Só tarde. Aos 18, 20 anos, e até ao fim da vida do meu pai, tinha uma grande intimidade. Mais novo, queria fugir à severidade e evita-o. Fugia dele, fugia das regras.

 

Era um menino arrumado? Toda a sua figura, hoje, é a de uma pessoa muito arrumada. Custa a crer que em criança tenha sido um desalinhado…

Não era. Talvez procurasse ter os meus desalinhamentos de maneira disfarçada. Não houve nada que deixasse de fazer por medo ou respeito pela autoridade. Mas era bom aluno. O meu pai achava que eu confiava mais no instinto e na habilidade oratória do que no trabalho. Isso intranquilizava-o. Nos primeiros anos de Direito, fugia de falar com ele sobre o tema, com medo de que descobrisse as minhas lacunas.

 

Que nota é que lhe deu, já agora?

O meu pai não me podia avaliar, foram os assistentes. Tive 17 a Direito Comercial e 14 a Direito Civil no primeiro ano. Não desapontei. O meu pai percebia que eu era um género diferente do dele. Que não poderia ser como ele.

 

Ele queria que fosse como ele? E queria ser como ele?

Não. O meu pai era uma referência como escritor do Direito. E senti toda a vida que nunca chegaria ao ponto dele. Um dia, em 1981, um professor, que era mauzinho, disse-me: “É curioso como o mundo anda… Você é que é conhecido e o seu pai é que é bom”. 

 

Feriu-o?

É das histórias mais maldosas que conheço. Mas achei divertida. Não me feriu muito. E é assim: estou a grande distância científica e cultural do meu pai, e é verdade que consegui ser mais conhecido e ter mais notoriedade do que ele – o que era uma injustiça. Mas também o meu pai não apreciava a notoriedade e a fama. Cada um tinha a vida que queria. O meu pai tinha a vida que queria e eu também tenho a vida que quero. Tenho o vício da aprovação, que é servido pela notoriedade.

 

Precisa dessa aprovação. Porquê?

Preciso. Fiz com a Sonae um curso em Lausane; uma parte chamava-se: Understanding the self, understanding the others. Fizemos uma série de experiências com psicólogos de empresas, vários testes. O meu teste dava uma coisa complicada: eu tinha tanta vontade de mandar como vontade de ser amado por aqueles em quem mandava. Segundo o psicólogo, eram pessoas raras, que podiam acabar mal (alcoolismo, drogas, esquizofrenia). [gargalhada]

 

Portanto, precisa de ser amado. Maquiavel, entre ser amado e ser temido, escolhia ser temido.

Eu, não. Nesse curso, percebi que os grandes gestores têm uma nota alta na vontade de afirmar a liderança e nota muito baixa na necessidade de aprovação. E eu, numa escala de 0 a 10, tinha 9/9.

 

Isso é porque têm um ego maior?

Não tem a ver com o ego. É porque, uma vez tomada a decisão, e convencidos de que o caminho é aquele, são pouco embaraçados na acção por aquilo que pensam aqueles em quem mandam. Na minha acção, sou muito embaraçado por aquilo que pensam aqueles em quem estou a mandar.

 

Um político lida com isso: votarem nele ou não votaram nele.

Esse meu lado talvez tenha sido exacerbado pela política. A minha mulher diz que paro nas passadeiras quando não está ninguém porque tenho medo de estar a perder algum eleitor escondido atrás do muro. [riso]

 

Ou que o fotografem e que mostrem no dia seguinte no jornal que comete ilegalidades?

Não vivo com esse terror. Quando vim para a Assembleia da República e fui líder parlamentar do CDS, as coisas não me correram mal. A política é muito cruel; quando as coisas correm mal correm mesmo muito mal. Estragam a vida a uma pessoa, em todos os domínios. Quando correm bem, existe uma presunção de que “este tipo é bom”. Por sorte, as coisas não me correram mal.

 

O que é que isso quer dizer?

Quando se discute o impacto que a política tem na vida profissional das pessoas: eu nunca tive lugares em empresas por causa da política, mas admito que não tenha sido indiferente ao percurso profissional que tive ter ali aquela prova – que não correu tão mal quanto isso em condições desfavoráveis.

 

Quis que tivesse corrido melhor? Quando o partido estava dominado por Manuel Monteiro e Paulo Portas, o seu nome era o do terceiro braço. Quis que a política ocupasse mais e mais espaço?

Queria. Cheguei a pensar em não voltar ao escritório, ou a voltar apenas nos tempos livres. Cheguei a ser candidato a líder do CDS, embora confesse que rezasse intimamente para que a coisa não corresse bem. E não foi preciso rezar muito… Eu achava que tinha obrigação de fazer aquilo. Na passagem de Freitas do Amaral para Manuel Monteiro, convenceram-me de que eu representava uma tradição histórica um pouco mais à esquerda, mais liberal, em relação a Manuel Monteiro. Mas sim, pensei fazer política, e gostava. E tenho ainda as minhas saudades.

 

Foi o curso que o partido levou que o desapontou e fez desistir (quase completamente)? Ficou com um aura de figura de referência do partido, mas que não se enlameia.

Há umas pessoas no partido que me dizem isso: que estou próximo mas que nunca estou dentro. Não tenho nenhuma repulsa pela vida partidária ou política. Sou daquele partido há 34 anos e lá continuarei. Será mais fácil morrer o partido do que a minha ligação com o partido.

 

Diz isso como quem fala de uma relação familiar.

É. Entrei para o partido aos 14 anos; lembro-me do meu primeiro acto político, do meu primeiro comício. Acho que o partido foi importante em muitos momentos da história portuguesa. As pessoas são simpáticas comigo, sempre respeitarem que eu não quisesse ser mais do que aquilo; às vezes têm pena ou criticam-me por não ser mais do que aquilo, mas aceitam. Isso dá uma sensação de família a que não sou alheio – com o tal gosto pela aprovação que tenho.

 

Aquele que se encantou, na adolescência; que viveu o Verão Quente entusiasticamente; que idolatrou Freitas do Amaral; nem em relação a esse estava desencantado?

Não. Tive uma relação pessoal com outros líderes: Adriano Moreira, Lucas Pires (mais próximo do que Diogo Freitas do Amaral). Sempre os respeitei muito, nunca fiquei desiludido. Nos momentos concretos em que desalinharam tive alguma tristeza, mas hoje olho para trás e acho que eles e o partido deram muito à minha formação e maneira de ser. Contemplo esse tempo com bonomia.

 

O que é que lhe provoca zanga? Consegue condescender, relativizar em relação a quase tudo…

Sim, as pessoas dizem que sou de compromisso. O que me faz vir por fora? Injustiças profundas, faltas de dignidades pessoais, desonestidades.

 

Pode contar uma situação?

Uma coisa em que tenha perdido a cabeça? Perdido completamente a cabeça? O momento em que fui mais irritado foi com Adriano Moreira; não concordava com o modo como ele liderava o partido – já lhe pedi até desculpa por essa intransigência juvenil. Quando Basílio Horta se zangou com Freitas do Amaral, em 91, aquilo pareceu-me uma deslealdade profunda, que me indignou. Já tive trocas de palavras desagradáveis com Maria José Nogueira Pinto – não gostaria de as recuperar, já fiz as pazes. São poucas situações, sou pouco impulsivo. 

 

Nunca falou sozinho?

Ensino aos meus filhos que, se não somos a melhor companhia de nós mesmos, alguma coisa está mal. Entretenho-me muito bem sozinho, com os meus pensamentos. Falar alto, sozinho? Não. Barafustar sozinho, talvez. Impropérios, no desporto, sim (sei que ninguém está a ouvir). 

 

 Decide sozinho?

Não gosto. Gosto de ouvir várias opiniões, mesmo sobre a minha vida. A vida ensinou-me que as melhores decisões que tomei foram as que resultaram do conselho de outras pessoas. Ouço a minha mulher, amigos de longa data.

 

Conte como viveu 74.

No dia 25 de Abril estava no Liceu José Falcão. Só de rapazes. Eu estava no quinto ano e só se podia fumar no sétimo. No intervalo da manhã, inexplicavelmente, o quinto ano teve acesso ao recreio do sétimo ano; estava toda a gente a fumar. Eu fumava. Parecia que tinha desaparecido a autoridade: não havia contínuos, reitores. Fizeram uma explicação do golpe de Estado que estava a acontecer em Lisboa. A minha família não era uma família de ligação ao poder, não havia muitas conversas políticas em casa. Já estava cercado o quartel da PIDE-DGS em Coimbra. A violência da multidão já me fez impressão. A saída dos agentes da PIDE, entre os populares, a serem apedrejados, fez-me impressão.

 

Não tinha qualquer consciência política?

Eu não fazia a menor ideia do que era a PIDE. Tinha 14 anos. Em casa, o meu pai temia que o golpe de Estado fosse, não um recentramento da política e a instauração de um regime democrático, mas um golpe militar de esquerda e que houvesse riscos, e que ele próprio corresse riscos. A partir daí, em minha casa falava-se: “Temos de ter um partido, qual é o nosso partido?, como é que é?”. Em Julho de 74 o CDS foi fundado e o meu pai mostrou-me o discurso do Freitas do Amaral.

 

Contudo, o que era popular, era ser de esquerda. Logo aí, a sua inclinação, aquela que o seu pai lhe apontou, e a que aderiu, foi outra.

O meu liceu foi tomado pela UEC, e com franqueza a primeira experiência de totalitarismo tenho-a, não com a extrema-direita, mas com o PCP. A luta estudantil começa a fazer-se em 74, contra a UEC, no meu liceu. A minha participação começa por ser de resistência, face a um novo poder. Se a esquerda era popular ou não… Se o ambiente geral era de esquerda ou não… Isso contava muito pouco. Nunca tive nenhuma tentação de esquerda. E vamos lá ver: a minha família era burguesa, o tipo de cultura familiar não era propício à formação de perigosos esquerdistas.

 

Quem foi a primeira pessoa que conheceu vítima do Estado Novo?

A primeira vítima da PIDE com quem tenho contacto pessoal e que me conta a sua história é o Zé Luís Saldanha Sanches. Uma história que me horrorizou.

 

Quem foi o primeiro “perigoso esquerdista” que conheceu?

Pessoalmente? Havia grandes líderes esquerdistas em Coimbra que eu combatia, mas não ficaram famosos. O primeiro grande líder, famoso, que conheci, e com quem tenho uma relação de amizade e respeito, é o Zé Luís Saldanha Sanches.

 

Fiscalista.

Fiscalista, também. Tinha uma relação cordial com Vital Moreira, Luís Sá, José Magalhães, mas isso é mais tarde, quando sou deputado.   

 

Vamos agora até à OPA sobre a PT. Tudo isto de que falámos, de que é que lhe serviu nesses meses de trabalho árduo?

Serviu-me muito. Eu fazia parte do steering commitee da OPA, de direcção das operações. Isso envolvia questões jurídicas, de comunicação, de relações públicas, de relacionamento com bancos, de conhecimento do próprio negócio… Se eu tinha experiência de comunicação com os outros vinda da política, somada à minha experiência jurídica, somada a ser uma pessoa em quem o Paulo Azevedo podia confiar do ponto de vista do sigilo e da dedicação, sim, toda a minha vida passada era importante para aquele momento.

 

Li que foi esse o período em que mais trabalhou na sua vida.

O trabalho nunca foi propriamente um objectivo para mim. Se pudesse escolher, faria outras coisas.

 

O que é irónico é que trabalhe tanto.

Trabalho muito. Uma parte do trabalho permite-me resolver coisas que gostaria de fazer. A Quadratura: com pouco tempo, permite-me fazer política, e não tenho tempo para fazer política que não aquela. O Direito: eu gostaria de escrever e a actividade jurídica permite-me cultivar a escrita. Trabalhei muito [no período da OPA], foi muita intensidade e nunca houve um momento de distensão. Nem ao fim de semana nem nas poucas férias que tive.

 

Quando é que percebeu que iam perder?

Quando comecei a ver certas alianças e ambiguidades, sobretudo de empresas relacionadas com o poder público. Quando percebi que havia um discurso na nossa frente e uma prática e um discurso atrás de nós; havia forças poderosíssimas contra a Sonae e que fariam a Sonae perder.

 

Quão zangado ficou com esse desfecho?

Vou dizer-lhe uma coisa e não sei se serei penalizado na Sonae por isto: foi tão estimulante o trabalho e tão rico esse tempo que, a partir de uma certa altura, o desfecho era a coisa que tinha menos importância. Se fiquei deprimido, irrecuperável? Acho que não. Foi tão forte, uniu de tal maneira as pessoas que trabalharam naquilo, fez-nos ficar com um pensamento tão claro sobre o que queríamos e pensávamos, até uns dos outros…

 

Ir a jogo era mais importante do que ganhar?

Estar no jogo. É claro que do ponto de vista da Sonae não é assim. As coisas são feitas para se ganhar. Mas também lá se ensina que as derrotas são momentos de aprendizagem e onde se criam oportunidades. Acredito nisso.

 

O que é que pessoalmente aprendeu durante esses meses?

Imensas coisas. Tive lições de humildade. Conheci melhor pessoas que trabalhavam comigo e que eram fora de série. É uma coisa que digo sempre às minhas filhas: o mundo está cheio de pessoas melhores do que nós.

 

Dito assim parece uma lição de moral.

Não é de moral, é uma lição de vida. Segundo ponto: é preciso confiar nas pessoas; sem essa confiança não se fazem grandes empresas. Terceira coisa: é péssimo uma economia dependente do Estado, onde as grandes decisões implicam ser subserviente ou pedir ou esperar que o Estado faça isto ou aqueloutro. Esta foi talvez a maior lição. Aprendi muito na relação com as pessoas que trabalham connosco. O que é mandar e o que é recompensar. Como é que se consegue manter um forte nível de emoção e dedicação em objectivos que parecem impossíveis.

 

Aí, o motor foi Paulo Azevedo?

Sim, mas também Ângelo Paupério, hoje presidente da Sonae.Com. Se eu tinha dúvidas, isto mostrou-me as qualidades ímpares do Paulo como líder; e as qualidades, como gestores, do Ângelo Paupério e do Luís Reis, com quem eu faria o que elas quisessem.

 

Não sendo completamente um “homem Sonae”, foi dessa vez que esteve mais num sítio do que em qualquer outro. Como se pertencesse a uma casa.

Sim. Mas como a relação com o Eng. Belmiro começou muito cedo, toda a gente sempre achou que eu estava ligado ao grupo. Foi o momento mais Sonae da minha vida. Mas não sinto isso como um ferrete.  

 

Consta que é o elemento da Sonae que mais aproveita a vida.

Isso não é justo para com as pessoas da Sonae. As pessoas são diferentes. À maior parte dos gestores da Sonae não passa pela cabeça ir à Quadratura do Círculo. Eu tenho essa liberdade. Há muitas pessoas na Sonae que gostam de outras coisas [que não o trabalho] tanto quanto eu; o que têm é menos espaço de manobra, menos liberdade para terem uma vida diversa.

 

Na Quadratura, a sua liberdade está por vezes coarctada? Por conflito de interesses. Por estar em tantos tabuleiros, há coisas que não pode dizer com isenção.

A maior parte das vezes, digo. Se é um assunto de obras públicas, digo: “Atenção, sou administrador não-executivo da Mota Engil”. Se é um assunto de bancos, digo: “Atenção, sou administrador não-executivo do BPI”. Realmente não posso contar segredos. E tenho alguns. Que seriam importantes para a política ou economia. Nesse sentido não tenho a liberdade de dizer tudo o que me passa pela cabeça. Não conto tudo quanto sei. Nessa medida, não sou tão livre quanto o Pacheco Pereira. Mas tenho uma enorme liberdade. Nunca aconteceu o Paulo Azevedo ou o Eng. Belmiro dizerem-me: “Você não pode dizer isto”, ou “Disse isto e não devia”. Nunca na vida! Tirando o momento da OPA nunca suei na Quadratura.

 

Porquê?

Eu não podia contar o que pensava do comportamento do Governo. Não podia contar o que pensava das declarações de alguns membros do Governo. Não podia contar outras coisas que conhecia. Tinha de manter um silêncio. Para um falador profissional… Mas foi o único momento em que sofri. 

 

O que é que faz com que a vida lhe corra tão bem?

Fui bafejado com um dose razoável de bom senso. Acho que sou uma pessoa equilibrada, contida. As pessoas de extremos, porventura, são mais francas, mais atraentes, mas a vida é tortuosa e conflituosa para elas, segundo vejo. Há uma coisa que me preocupa: cada vez que me pronuncio sobre um assunto, procuro ser o mais rigoroso possível. Trago isso de casa. O meu pai não permitia que contássemos uma história – comezinha que fosse – se faltasse rigor. Admito que uma pessoa com bom feitio faça mais amigos do que uma pessoa com mau feitio.

 

 

O que é que o desafia?

Tudo. Qualquer pequena coisa. Amanhã vou falar de cidadania a uma escola, em Rio Tinto. Tenho a mesma angústia sobre o produto final, sobre o conteúdo, sobre a forma, que tenho se for falar à Academia das Ciências.

 

Realmente?

Tenho. Na aparência sou calmo. Mas angustio-me com as mais pequenas operações da vida profissional. Essa angústia, quando não mata, é criadora, ou conduz a um produto razoável.

 

Graham Greene dizia que era preciso ter grace under pressure. Com quem é que a aprendeu?

O Graham Greene é um dos escritores que mais li na minha juventude, e estou agora a relê-lo. Acho que isso tem a ver com a personalidade que precisa de aceitação. A procura de aceitação obriga as pessoas a terem brio, a entregarem-se ao que fazem. O que é que me desafia? Verdadeiramente, são os hobbies. Isto também não deve ser bom para as minhas avaliações na Sonae e no escritório. Tenho vários. Gosto de agricultura.

 

Agora é viticultor.

Sou. O meu vinho chama-se Casa da Gazalha. Faço motas de todo-o-terreno. Um obstáculo difícil de transpor é uma coisa em que penso durante a semana.

 

Tenho dificuldade em imaginá-lo enlameado.

Ah, se me encontrar ao domingo, é frequente. Gosto de música e estou a aprender a tocar viola. Os meus desafios estão aí.

 

O resto, já está. Intimamente, é o que quer dizer, confesse. Tem as ferramentas e sabe que estão afiadas.

Trabalho em sítios onde nada nunca chega.

 

Esse dente lascado: caiu da mota? Que é que aconteceu?

Caí em pequeno, num acidente sem graça nenhuma.

 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios, em 2010