Ricardo Pais
Ricardo Pais é encenador. Pressente o teatro na sua vida como uma coisa insidiosa – um karma. Que é uma palavra inesperada numa «pessoa tão estruturada» quanto ele, diz ele. Quando se exilou em Londres, quando era muito jovem e contava com adversidades várias, fervilhava na urgência de ser refractário. Mas se fugir à tropa e à guerra colonial eram o pretexto, estudar teatro era «o super-objectivo».
Foi em Inglaterra que lhe disseram que devia ser encenador e não actor. Que devia tomar o seu destino nas mãos. O destino está sempre na mão de quem imprime as mudanças. De quem escolhe. Os papéis, os rumos, o que for. Foi em Inglaterra que um amigo lhe disse que ele não sabia o que é a humildade. Que devia mandar, por isso. Foi aí, ou foi antes, já não sabe bem porque as biografias são sempre uma reinvenção de nós próprios, que percebeu que a obsessão era fazer bem feito. Interpretar, cozinhar, guiar turistas pela National Gallery.
Antes disso, cá, aprendeu com o argentino Victor Garcia que o «palco é um lugar de uma pluralidade sensorial, sonora, visual». E aprendeu cedo, com o pai, que os «actos de variedades» promovidos por um grupo de teatro amador, lhe permitiam esganiçar-se frente a um microfone, estar no centro do palco, ser aplaudido. Mas isto foi há tanto, tanto tempo... Maceira-Liz, anos 50, uma cartografia improvável.
No Teatro Nacional de S. João, no Porto, recoberto a veludo e de um dourado sumptuoso, pulveriza um trabalho de toda uma vida. Subverte códigos, investiga linguagens, transcende a lógica interpretativa dos textos dramáticos. O projecto da sua vida.
E agora, Ricardo? A meses do final do segundo mandato e de um ciclo de dez anos, desenrola um balanço num sábado de manhã, num camarim do TECA.
É torrencial, vibrante e infinitamente carismático. É casado com a Regina, cuja presença, tutelar, se sente ao longo de toda a entrevista. Têm dois filhos. Tem quase 60 anos.
Que biografia escreveria de si se tivesse ainda todas as páginas em branco?
Eu detesto biografia!, é um género que me irrita imenso. Há umas que foram marcantes para mim – a do Lawrence Olivier, a da Marlene Dietrich. No outro dia ia a passar em frente a uma montra e perguntei-me se gostaria de ter a minha biografia escrita. Pensei que não.
Porquê?
A gente só se revê naquilo que gosta que se diga de si. E há uma fatalidade nas biografias, que é a mentira. Porque a verdade de referência não existe, é completamente subjectiva. Não escrevia biografia nenhuma minha e agradeço que não escrevam nunca!
Nas biografias da Marlene e do Lawrence Olivier, o que é que lhe pareceu mais palpitante?
No caso do Olivier, deu para perceber os tormentos e as paixões de toda uma vida dedicada ao espectáculo, uma vida árdua e muito investida. É um personagem sobre o qual tinha feelings muito contraditórios; cheguei a querer sair de um espectáculo a meio porque não gostava nada do que ele estava a fazer, e assisti a outros absolutamente fascinado. Representava em termos de escola o que recusei toda a vida – a chamada escola inglesa do século XX; mas, por outro lado, era uma presença magnética e um actor com uma capacidade de composição desumana.
E a Marlene?
Era uma biografia autorizada que permitia perceber como é que se cria um mito e como é que os traços desse mito acabam por ser matéria de trabalho. Tudo indica que os mitos são feitos de informação, são feitos da mentira. Marlene Dietrich era o resultado da imagem que ela tinha criado de si própria e da alimentação dessa imagem até à exponenciação total. Isso interessava-me imenso, não só porque tem muito que ver com o teatro, como com a minha obsessão com a imagem das coisas, incluindo a de mim próprio.
É uma construção que não encontra limites?
Ela tem limites claros. Eu vi-a. Era uma pessoa de muita idade e vestia a sua célebre cinta, a que ela chamava medieval, aquele corpete que a mantinha numa linha fabulosa, e tudo aquilo era construído como se fosse uma evanescência. Com casaco de arminho, passava como uma pluma... E isso era tudo construído. Estava vestida, maquilhada e encenada para que em palco tudo resultasse assim.
O que então procurava era o contrário da encenação minuciosa. Procurava a verdade na representação.
Ah, continuo à procura. Uma verdade.
Mas o que é isso? O que é que lhe interessa na construção de um personagem, de uma pessoa?
Todos procuramos o máximo de excitação, com o máximo de verosimilhança e honestidade. Há 30 e tal anos, eu achava que não era honesto vendermos a imagem de nós próprios rigorosamente construída por fora. Achava que só o que de dentro para fora gerava imagem é que era autorizado.
Estava a ouvi-lo e a pensar em dois autores: Oscar Wilde e Sarah Kane. Nunca o imaginaria a encenar Sarah Kane, e imagino-o a encenar seja o que for de Oscar Wilde.
Sabe que o Manoel de Oliveira vai fazer “O Retrato de Dorian Gray”? É muito curioso que o Manoel se interesse por esse tema.
É o tema da beleza e da imortalidade. O Oscar Wilde exerce fascínio sobre si?
Os ensaios são fantásticos. O teatro acho fabuloso, também. É uma espécie de vaudeville de luxo, tem que ser feita com uma delicadeza e uma elegância fora de série. Tenho em relação a Oscar Wilde uma sensação que tenho em relação a muita coisa: o teatro é sempre uma arte menor, até na cabeça de quem o escreve. [Os autores] guardam o que é mais interessante para escrever em ensaio, em romance. Ionesco, evidentemente, é uma excepção, mas é um dramaturgo.
Mas isso porquê? Porque é do domínio da terra?
As pessoas apostam menos na ruptura quando escrevem teatro. Não é a atitude do Beckett, mas acontece com muitos autores. Acho mais interessante o Saramago como romancista do que como dramaturgo.
Quando o texto não é, à partida, susceptível de ser transformado numa peça teatral, tudo fica no plano das ideias e a ruptura é mais fácil. Quando se imagina uma dimensão terrena, um corpo que diz e interpreta, há uma convenção social que impossibilita que aquilo seja transposto para outro plano. Percebe o que quero dizer?
Percebo, e acho que tem razão. O teatro é uma arte sedimentada e de memória, as pessoas pensam sempre nele assim. Durante anos tentei mudar isso veementemente. Metade da minha vida foi feita a fazer teatro ao contrário, a provocar, mesmo à volta de textos convencionais, trazendo para dentro desses textos um conjunto de liberdades imagéticas que pudessem criar uma dimensão outra.
Estava a pensar no “Um Hamlet a mais” (2003). Nesse espectáculo, coexistiam a elegância da esgrima, o canto, o bailado num espaço delimitado, numa pequena geografia. Tudo aquilo era muito coreográfico.
Todos os meus espectáculos são marcados ao milímetro. Naquele nota-se mais. Havia momentos em que as pessoas se mexiam com a música, tinha-se a sensação de estar a ver dançar.
O modo como os actores estavam uns com os outros, era, ao mesmo tempo, muito sensual. Há um lado sensual no seu trabalho que eu acho que deriva da preocupação com a estética.
Felizmente foi ver o Caravaggio antes de falar comigo! [alusão a uma conversa anterior na qual eu falava da exposição do pintor em Londres] É fácil dizer-se do meu trabalho, nomeadamente de coisas como o «Hamlet», que ele parte de um conceito frio e desenhado no qual encaixam os actores; em vez de se dizer que foi construído a partir do trabalho dos actores. E na verdade foi.
Então, o ponto de partida é?
O ponto de partida são eles, ali. No «Hamlet» a esgrima ia ser condicionante de tudo. Havia aquela espécie de ludicidade elegante sobre a morte que é a esgrima. O grande trunfo do “Um Hamlet a mais” é a solidão. A solidão do Hamlet, a solidão da mãe, do pai. A minha mulher, que diz sempre as coisas mais acertadas sobre mim (isto não é rábula de Hollywood...), considerou que aquele era o espectáculo mais bonito que eu tinha feito depois do “Fausto, Fernando, Fragmentos” (1989). Era um espectáculo de construção muito parecida, aparentemente errática, seguramente a história toda ao contrário. São territórios onde, conhecendo bem a matéria-prima, me movimento com uma liberdade enorme.
«Hamlet» podia ser uma peça do domínio das artes plásticas. Ou podia ser um momento cinematográfico. Era um condensado de manifestações artísticas, não parecia ser “puramente” teatro.
Durante muitos anos, ainda ninguém estava nessa, e eu já estava no multimédia, no vídeo – fiz muitas experiências com o Joaquim Leitão. Desenvolvi o conceito, (que não tem nada de original), o conceito do teatro como lugar de encontro performativo, de encontro de várias artes.
Quando é que começou a pensar o teatro desta maneira? Em Londres?
Eu já não penso só de uma maneira. Eu penso de várias maneiras. O encenador é um intérprete. Tenho marcas de interpretação muito pessoais, e eventualmente tenho marcas de estilo que me distinguem, mas não me considero um autor, no sentido em que Manoel de Oliveira é um autor ou Renoir é um autor, ou Bob Wilson ou Laurie Anderson. Não construo espectáculos a partir de nada, não vou juntando coisas, todas da minha lavra, para dentro do meu espaço. Estou a interpretar um texto, juntamente com outras pessoas. Sou um leitor, como o público o deve ser.
Está bem, mas não é um encenador convencional...
Os encenadores são as pessoas que conseguem fazer da arte da interpretação uma arte própria e conseguem criar marcas claras da sua própria personalidade. A encenação é uma arte, é preciso ter método, é preciso saber construir com princípio, meio e fim. Conheço poucos encenadores a sério. Não só aqui. Trabalhos de actor fantásticos, mas sem marca estilística própria; muitas vezes com falhas graves do ponto de vista do gosto, no sentido de produzir para aquele universo as referências que o fazem parecer bonito, em vez de estar sistematicamente a tropeçar, (como faz na mobília), nos adereços.
Tralha?
É. Isso é o que mais odeio no teatro. Eu estava morto por me vir embora de Inglaterra, porque nunca pude com a tralha inglesa, a decoração vitoriana. O groth inglês é insuportável.
O equivalente português é o bibelot, a jarrinha, o naperon no sofá?
Um pouco. Mas uma boa parte dessa despesa, desse pires, já está feita nas telenovelas.
Chega a Londres, é encaminhado para o curso de encenação quando o que quer é ser actor. É engraçado terem outros descoberto em si qualquer coisa de essencial que ainda não tinha descoberto. O seu talento maior era para conceber, para dar a ler, e não para…
Não para actuar.
O processo de aprendizagem é sedimentado com o que lê, consome, vive. Tudo isso cria a sua marca estilística própria.
Era já visível que eu não estava na escola como os outros estavam.
Conte-me lá isso.
Sentiam que tinha grandes preocupações com a plasticidade, com os valores volumétricos, com o desenho. Os professores, os directores, sempre me acharam um bocadinho perigoso por isso. Embora, o meu trabalho de direcção de actores fosse tão apaixonado que ficava compensado. Aquilo era uma escola em que a direcção era ensinada como método de conduzir actores a determinada coisa. Como reinterpretação da interpretação dos actores e somatório delas.
Desistiu de ser actor?
Fiz muito mal em deixar de ser actor. Há tanto de bom no que eles me fizeram como de mau. Se tivesse sido actor, teria tido um destino completamente diferente.
Seria uma outra biografia.
Exactamente. Reconheço que o saldo da minha vida é muito positivo, porque tive, de alguma maneira, o destino nas minhas mãos. O futuro do teatro está sempre na mão dos encenadores. Raramente está na mão dos actores. O devir histórico do teatro é sempre marcado pela presença de encenadores. Quem decide, quem faz as peças, quem as distribui são encenadores. Quem mais livre foi estes anos todos que o Luís Miguel Cintra? Ele pôde escolher o que quis, e escolheu quase sempre maravilhosamente bem, e fazer o que queria, inclusive como actor nas suas próprias encenações.
Nunca teve uma companhia sua.
Nunca quis ter um grupo de teatro nem uma companhia. Pode dizer-se que temos a companhia do Teatro de São João... São pessoas que aprendem todos os dias nesta casa, têm aulas de voz permanentes, têm treinos de esgrima, têm treino de dança, têm ioga. Isto aqui é uma escola.
Imagino que seja uma dor de alma para si ver o João Reis, o seu actor, a fazer uma telenovela.
Por acaso, acho que ele faz com muita dignidade, qualquer pessoa vê logo que ali está um actor. A maior parte das pessoas que ali estão são umas criaturas que aprenderam a falar como quem está na discoteca, qualquer que seja o drama familiar, e desatar aos gritos assim que há um problema.
Ficamos esclarecidos quanto à novela! Gosta de melodrama?
Adoro, adoro. Adoro Fassbinder. Muitas coisas do Kurosawa são completamente melodramáticas e não perdem a dignidade. Não é o género que vitima necessariamente o trabalho, é a maneira como ele é abordado.
Isto é uma escola.
Estas pessoas confiam que a distribuição de trabalho que lhes fazemos é a boa distribuição, que os ajuda a progredir. Muitas das escolhas aqui na casa são feitas em função dos actores que vão estar disponíveis para cada projecto. E isso sim, é o espírito de companhia.
Está a chegar ao fim do segundo mandato à frente do S. João e ao fim um ciclo de dez anos…
Dez anos com um intervalo de dois – há [a direcção de] Zé Wallenstein.
Isto foi o grande projecto da sua vida?
Foi e é. Não quero ter mais nenhum, já não tenho idade, estou quase a chegar aos 60.
Chega?
Acho que sim, e seria incapaz de começar um projecto noutro sítio qualquer. Fui muito afortunado aqui porque encontrei logo as 30 pessoas que cá estavam, fantásticas, imensamente jovens. Os que fomos juntando foram peças fundamentais na sedimentação do projecto.
Foi fundamental ter tido como interlocutor Manuel Maria Carrilho no Ministério da Cultura? Não poderia ter feito este teatro sem ele?
Não se podia ter feito o Porto! É uma coisa que as pessoas estão a tentar esquecer. O que o Manuel Maria propôs, se deixou raízes em muitos sítios, foi muito traído noutros. Num país como o nosso, em que tudo passa pela administração pública, em que viver com a administração pública pode ser um pesadelo, ter a total confiança da tutela, saber que qualquer um de nós telefona ao ministro directamente, que tem no ministro um interlocutor válido, capaz de desencadear os mecanismos que nos permitem resolver os problemas com alguma agilidade, foi fundamental. Era uma grande diferença funcional. Mas a principal nota positiva desse tempo está naquilo que lhe disse: nós trabalhámos com um conceito de cidade. A crise ou a perda de Manuel Maria Carrilho não foi só a perda de um político que decidiu zangar-se. Foi a perda de um conceito inteiro de cultura, de quem toda a gente herda as pontas e reinterpreta mal, ainda por cima.
Há dez anos, acreditava que Serralves e o São João iam ser um sucesso de público?
Se não acreditasse não tinha vindo para cá. Se há coisa que se inveja na vida é Serralves!, se há sítio onde se gostava de viver é Serralves. Não foram apenas as condições que o Manuel Maria Carrilho me deu, não sou propriamente um protegido do Manuel Maria Carrilho. Somos enormes amigos, tenho um respeito e uma admiração por ele únicos, mas não foi isso que fez o meu trabalho. Fui eu que fiz o meu trabalho, e por causa disso é que consegui aguentar-me contra ventos e marés, como diria o Dr. Pedro Santana Lopes. Os ventos e marés eram precisamente o partido dele. Consegui aguentar estes anos, de cara lavada, embora muito atrapalhado financeiramente, continuando a manter o prestígio e o bom trabalho no Teatro de São João.
Tem muito público. O que é sempre bom, e surpreendente.
Porque há uma compulsão de comunicar. Um dos grandes problemas do teatro é que não comunica ao mesmo nível que as outras artes comunicam, ou não quer fazê-lo. Comunica-se sempre de uma forma menos interessante, e quando tenta ser publicitário ou mercantil é quase sempre ridículo.
Porquê?
Porque as pessoas não sabem decantar a mensagem cultural e artística através das imagens de todos os dias, daquelas que se podem espalhar no metropolitano e não segregam as pessoas.
No sucesso do S. João entra também o seu talento para a comunicação?
Não é bem o talento, foi uma coisa criteriosamente trabalhada, como um cão. Aprendi a interpretar o que é preciso pôr num cartaz como aprendi a ler o Shakespeare. O que é que torna a cena três do acto dois, ou a cena dois do acto três, do “Noite de Reis” um pesadelo? O que é que mecanicamente é preciso desmontar para se conseguir ser claro, ter os planos todos activados de maneira a que o público perceba o que se está a passar?
A pergunta é: qual é elemento mais estruturante, ínfimo, a partir do qual…
A partir do qual se pode construir uma coisa. Exactamente.
Isso é seguramente válido para a construção de uma cena e para a comunicação de uma peça...
Certo. Trabalhar um texto no dia-a-dia é uma coisa duríssima. Não imagina o que sofro a fazer o UBU’s [de Alfred Jarry, em cena no Teatro Carlos Alberto, no Porto].
Mas o que é isso de sofrer?
Para já, é não perceber bem o que se está a dizer. Enquanto não percebo o que é que estou a dizer com o espectáculo, sou infeliz.
Porque vive na interrogação.
Vivo na interrogação, temática, ética, ontológica. Depois de tudo estar encaminhado, ainda há aquela coisa: resulta ou não resulta? Aquilo que estou a dizer chega às pessoas, não chega às pessoas, e como é que chega às pessoas? Para mim o espectáculo acabava no ensaio geral. O momento em que público entra é um desastre, embora adore pensar que cinco mil pessoas viram o «Hamlet» em seis dias. É fantástico, é lindo, é muito, muito comovente. O momento em que o público entra na sala é uma invasão da privacidade dos espectáculos. Não gosto muito de ouvir opiniões. Com toda a franqueza, só gosto de duas ou três. Oiço com toda a cordialidade, às vezes registo coisas que mais ninguém registaria, às vezes há uma pequenina coisa, sem qualquer importância que fica para a minha vida toda.
Mas ouve ou não ouve as opiniões?
Preferia não ouvir o que a maior parte das pessoas tem para me dizer. Preferia ficar comigo próprio porque sou tão crítico com os meus espectáculos, mas tão diabolicamente crítico... Eu vejo os vídeos, e a quantidade de coisas que desejaria que não fosse assim... Não imagina quantas são. Gostaria de ter sido infinitamente mais solto do meu próprio ideário, infinitamente mais longe de mim próprio, mais “original”, o que todos queremos ser.
Está assim tão fundido, revê-se assim tanto nas cenas?
Revejo-me completamente no trabalho. Não acho que o teatro tenha qualquer importância. Acho que se sair amanhã do teatro sou um homem feliz. Alguma coisa tenho que fazer porque sou hiper-sinestésico. Mas quando ali estou é uma questão de vida ou de morte. Também era assim quando era guia turístico ou quando fazia cozinha. Também é quando me debruço sobre uma questão gráfica ou de comunicação. O Teatro de São João e o Porto, sem qualquer veleidade e com muitos risos pelo meio, tiveram a sorte de me apanhar no momento em que podia fazer convergir num mesmo lugar tudo aquilo que tinha aprendido.
Cinquenta anos.
Sim, cinquenta anos. Na verdade, sempre desejei trabalhar em teatros a sério. Sempre gostei de teatros a sério. Em 78, 79 estava no Trindade, a fazer encenações a sério, com cenografia como deve ser, à grande e à francesa...
Mais à inglesa?
Não, à francesa. A minha escola de encenação é completamente continental.
Mas a sua inspiração é, culturalmente, anglo-saxónica…
Nesse sentido, talvez fosse mais americana. A minha escola era a única que ensinava o método de Stanislawski na altura em que fui para Londres.
É interessante a ideia de que tem que ser bom, seja a cozinhar, seja a ser guia turístico…
Tem que ser obsessivamente bem feito.
É vida ou morte.
São tudo questões de vida ou morte. Tenho que ser, ainda hoje, aplaudido pela minha cozinha em casa. Se as pessoas não disserem três vezes que está muito bom, fico preocupado. E já não é o público. O problema com os encenadores é que são excluídos dos espectáculos, deixam de estar à mesa a partir das estreias. Sou excluído do processo.
Precisa dessa aprovação?
Não é bem aprovação. Todos gostamos de saber que as pessoas se sentiram recompensadas com um espectáculo quando ele é mais provocatório, como é o caso do UBU’s, ou “As Lições”, porque aquilo é chocante.
A opinião da sua mulher é importante?
É fundamental.
Já reparei. No conjunto de entrevistas que li…
Falo muitas vezes dela?
Ao mesmo tempo, é uma figura muito discreta. Não a vemos nunca.
Faz questão de não vir às estreias, recusa-se liminarmente a ser fotografada para os jornais e para as revistas. É o anti-público. Os filhos já saem mais ao pai, nesse aspecto.
O que é que ela é? É rochedo, é casa?
Sabe, quando se tem uma vida inteira, de 30 e tal anos, com uma pessoa, é muito difícil encontrar a imagem sintética.
É que parece sempre pulverizado…
Não pareço pertencer a nada em particular, é isso?
É. Está sempre lançado.
Um dia a minha família entrou toda no ensaio do “Clamor” (1994), e eu devo ter feito a festa da praxe. Era a primeira vez que o André Gago, que estava a representar, via a minha família. Ele dizia-me: “É tão comovente, a gente vê-te tão prolixo no relacionamento com as coisas... Ver-te como pai de família, é como se fosse outra pessoa”. Mas a família não tem que estar no teatro.
E o teatro não é uma família, que é outra ideia que tem que ver consigo. Isto não é uma comuna…
Todos esses conceitos, tribo, família, ensemble, são expressões, variações sobre o tema comunitário do agregado teatral, que nunca subscrevi particularmente.
Mas então como é que é em família, com a Regina e os dois filhos? Como é que é esse homem de família que não vemos?
- Isso tinha que perguntar-lhes a eles. Eles têm uma visão de mim completamente diferente. Sou menos bom do que desejaria, embora tenha trazido a todos, incluindo à minha mulher, muita coisa que, se eles tivessem procurado, se calhar não tinham encontrado. Mas eles também me trazem o mesmo a mim. É como tudo. Em casa, sou uma pessoa vulgar, não tenho comportamentos divescos, nem vivo num mundo à parte. Se entrar na sala de ensaios, sentirá que família também é ali. A ternura que circula entre nós, o à vontade com que as pessoas estão a trabalhar...
Eu já assisti a um ensaio seu, d’ «A Castro», e imaginei que em casa não seria muito diferente daquele registo.
E não é. A Regina e eu temos preocupações tremendas com eles [os filhos], passamos a vida atormentados com o futuro deles.
Mas eles já são crescidos.
Pois são, o que é que quer? Ora aí está.
Um deles é actor e trabalha consigo.
Já não trabalha; vai trabalhar em comunicação e acho que faz muito bem. O outro está a estudar Psicologia e quer ser actor. Uma boa parte da nossa vida de marido e mulher é passada a pensar numa coisa chamada futuro, que já nem sei muito bem o que é, acho que já passou; e nos filhos, que, de alguma maneira, são esse futuro.
Isto reproduz a sua família de origem?
Nada.
Era tudo compartimentado, independente, quando era pequeno?
Não exactamente. Quando era pequeno era tudo muito “livre”, na medida em que não havia padrões éticos muito claros. A minha família não era propriamente uma família. Aos dez anos fui para um colégio interno, nunca mais tive pai e mãe na mesma casa, os meus pais separaram-se quando eu tinha 13. Eu sou filho de divorciados dos anos 50.
Coisa rara. Dessa descrição dos anos 50, que li algures, guardo a imagem das vivendas com os pequenos jardins, as senhoras de saias rodadas – uma coisa muito cinematográfica. Os papéis estavam firmemente distribuídos, era tudo arrumado e compartimentado.
Havia muitas famílias de saias rodadas e saiotes por baixo que apenas escondiam uma formalidade, não eram necessariamente famílias equilibradas.
Sim, mas as famílias são todas disfuncionais, ou não? [risos]
[risos] A minha era com certeza. As minhas irmãs e eu, ainda hoje, quando voltamos a esse tema, ficamos com a nostalgia de uma família a sério e de uma casa só. O meu pai estava em Viseu, a minha mãe estava em Lisboa. Havia um desamparo que tentámos, os irmãos, resolver nas nossas próprias famílias. Se tenho uma certa obsessão com os miúdos é em grande parte por isso: por ter sentido que durante anos e anos não tive ninguém que me protegesse. Até me encontrar com a Regina e passar a viver com ela em Londres, em 68, 69.
Encontraram-se lá?
Não, eu fui daqui e ela foi ter comigo. Casámos lá. Mas já namorávamos desde os 16 anos.
Isso é uma história de amor como já não se usa…
Desde cinco de Novembro de 56.
Por que é que gostou dela, consegue perceber?
Foi à primeira vista. Vi-a no pátio do liceu, achei que era muito engraçada, que me estava a piscar o olho.
E estava?
Não. Estava apenas a olhar naquela maneira muito particular dela. E depois, era também um caso de relação ferozmente difícil com o pai, como eu era ferozmente difícil com a minha mãe. Encontrámo-nos numa espécie de limbo psiquiátrico…
É sempre assim que as pessoas se encontram? E por que é que se apaixonam por aquela pessoa e não por outra?
Não tem que ver necessariamente com isso. A atracção é a atracção. Foi uma história longa. Partilhámos muita coisa. Devo à Regina ter tido a coragem de ir estudar para Londres quando era tão caro, tão difícil. Eu não tinha nenhuma bolsa de estudo, não era como o Luís Miguel [Cintra], o Jorge [Silva Melo] que estavam com bolsas da Gulbenkian. Não tinha nada porque a Fundação achava que não se devia investir em pessoas que eram refractárias à tropa e que provavelmente não iam voltar ao país. E não tinha um nome sonante, chamo-me Pais. Se reparar, a árvore genealógica da cultura portuguesa é toda feita de filhos, filhos, filhos. E os nomes, quando são sonantes... Chamar-se Lobo Antunes não é brincadeira nenhuma.
Por isso é que há um rapaz chamado José Maria Vieira Mendes, que é também Lobo Antunes, e que usa aqueles apelidos.
Tirou-me as palavras da boca. E que bem que ele use o nome da mãe que era fantástica!
Mas foi estudar para a Londres, impulsionado pela Regina.
Tínhamos que trabalhar imenso para pagar as propinas. Trabalhei dois anos ininterruptos. Trabalhava até sexta-feira na escola, sexta-feira à noite no restaurante, sábado de manhã ainda ia à escola, sábado à tarde estava no restaurante, ou guiava turistas (mais tarde fiz o curso de guia), trabalhava domingo à noite, vinha para casa entre a meia-noite e as duas, e voltava para a escola às sete e meia da manhã na segunda-feira. Nunca nos faltou nada, estávamos muito bem, divertíamo-nos.
Divertiam-se?
Imenso, e viajávamos. A Regina tinha sempre os seus pés de meia para as viagens, muito organizada com as finanças_ que é uma das minhas grandes dificuldades.
Não sabe lidar com dinheiro?
O dinheiro é ridículo e não gosto nada de lidar com ele. Tenho uma relação muito desprendida com o dinheiro e é por isso que as pessoas pensam que sou rico. A minha avó já dizia que nasci para ser rico. Pura e simplesmente detesto fazer contas. Acho que vai-se andado até dar. Penso que devo ter sido o único que se formou por lá sem apoio nenhum.
Por que é que não se aquietou? Acreditava suficientemente em si? O que é que queria para a sua vida?
A Regina diz-me agora que estou a mentir muito sobre mim próprio, que digo: “Nunca gostei particularmente de teatro, sou muito avesso ao teatro”. No outro dia a Regina disse-me: “Se é isso, para que foi uma vida inteira de sacrifícios a dois?”. Realmente, senti-me muito mal por ter dito aquilo, foi muito frívolo da minha parte. Eu fui daqui exilado, fugindo à guerra colonial, teria fugido à tropa nem que fosse para lavar escadas; mas na minha mira estava estudar teatro. Era o super-objectivo, esteve sempre lá. Mas entendo-o como uma espécie de praga que me foi imposta, como se tivesse sido condenado a estudar teatro ou a fazer teatro. O teatro era uma espécie de condenação, um karma. É ridículo usar este tipo de linguagem, uma pessoa aparentemente tão estruturada quanto eu...
Por que é que foi o teatro, porquê esse karma?
De miúdo, gostava de me exibir, de ler poemas, cantar canções, pôr-me em pé em cima de uma cadeira para chegar ao microfone. Aos cinco anos participava nas coisas do meu pai, de teatro amador, na Maceira-Liz. Depois na faculdade, o trabalho com o CITAC fascinante.
Mas quando vai para a Universidade é para estudar Direito, segundo consta da sua biografia. Voltando à ideia inicial, há os factos, depois há a deriva, depois há a invenção. Como diz a Regina, as pessoas inventam-se a elas mesmas quando se analisam retrospectivamente.
É por isso que as biografias parecem sempre mentira, principalmente as autobiografias.
O Direito, que consta dos factos biográficos, não conta para nada. Mas o CITAC, estava a dizer, foi importante.
Foi importantíssimo. Tive contacto com algumas pessoas muito interessantes, o Jacinto Ramos, o Carlos Avillez e finalmente o Vítor Garcia. Com o Vítor Garcia tive a percepção de que o teatro era uma coisa gigantesca, que não tinha apenas que ver com personagens e intérpretes.
Era como o mundo todo caber num espaço limitado?
Essa é a grande utopia isabelina: o teatro como mundo. A pluralidade do universo audiovisual foi uma coisa que descobri com o Vítor Garcia. E foi por ter falado tão entusiasticamente disso na entrevista para o Drama Centre que eu acho que eles acharam que eu devia ser encenador.
Do que falou exactamente?
Falei da minha experiência enquanto actor ter sido vivida em função do que se pretendia, em função da encenação, no sentido mais nobre, lato e genial do termo.
O destino, como dizia, está na mão dos encenadores.
Então, eu devia ser encenador. Agora, se ouvir o meu disco perceberá o défice que foi, ao longo dos tempos, não ter estado em cena. Esse défice foi muito grave porque perdi a solidariedade com os que estão em cena. Não experimento o medo do lado deles, experimento o medo do lado da plateia. Também é verdade que há coisas que transmito às pessoas que só posso transmitir fazendo. O António Rama há tempos dizia-me: “Ensaiar contigo é fazer o que tu queres que eu faça”. Se eu fizer, ele é capaz de fazer a seguir.
O que é que ficou do desejo inicial de estar no palco, de ser actor?
Quando faço, aparentemente, sou muito expressivo, o que quer dizer que ficou lá a compulsão de representar, ou a compulsão de pôr as pessoas em acto. As pessoas percebem que há uma compulsão em vê-las fazer bem, como haveria se fosse eu próprio a fazer.
E assim foi alterada a rota da sua vida.
A minha vida? Eu fui roubado ao palco para fazer o palco. Mas o débito está lá. Eu quereria ter-me visto representar, eu quereria ter-me visto cantar.
Optando pela encenação, pôde ser o autor da sua biografia.
Sim, isso de alguma maneira pode dizer-se. Um amigo brasileiro dizia-me: “Você nunca se poderá dar muito bem comigo porque, tal como eu, não sabe o que a humildade é”. Houve outra pessoa muito importante, o Ruy Leitão [artista plástico, filho da pintora Menez], que entrou num espectáculo meu e a certa altura disse: “Tu, para estares a fazer isto bem, devias ouvir o que as pessoas têm para te dizer, em vez de estares sempre a dizer o que é que se deve fazer”. Foram dois pontos fundamentais do meu refazer ético: tinha que pôr a minha egocentria a produzir para fora. E a assumir que não era humilde e que tinha que mandar, mas que mandar tinha que ser uma coisa perfeitamente sublimada. Todo o processo da minha vida, a minha biografia, é a história de uma pessoa que tentou sublimar os seus próprios egos.
Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias