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Anabela Mota Ribeiro

José Gil (sobre Portugal)

02.07.13

Que significa: “Queremos a nossa vida?” Portugal, país atravessado por um medo de existir, deixou de ser um lugar de não-inscrição. Começou a deixar de ser esse lugar no dia 15 de Setembro. Contra o quê se manifestaram os portugueses?, além da TSU e das concretas medidas de austeridade? Foi por quê, além de ser contra quê? O que é que fez o povo sair à rua? O povo que “não é estúpido”. Que sabe, sem provas, da “corrupção avassaladora”? Que ergueu bandeiras onde se lia “Basta!” Antecâmara de uma revolução? Sob que palavras de ordem? José Gil, filósofo, tem Portugal no centro da sua reflexão. Está farto de bom senso, de palavras como “sabedoria”, de excessiva prudência.

Esta entrevista aconteceu na sua casa, terça-feira de manhã. Parecia que tinha passado muito tempo desde o fim de semana. Um tempo elástico, intenso, em que o mundo muda de lugar. Terá passado uma eternidade no momento em que lerem estas páginas. Mas o fundo de inquietação mantém-se, e a reflexão sobre o que ela significa, também.

 

 

O guerreiro Aquiles para o rei Agamémnon, na “Ilíada”: “Ah, como te vestes de vergonha, zeloso do teu proveito”. Parte do divórcio dos portugueses em relação aos seus políticos resulta deste sentimento de que eles, políticos, agem tendo em vista o seu proveito, e não o proveito do povo?

Sim. Os políticos estão divorciados, e divorciam-se eles próprios, do seu povo, por uma série de razões. Não há dúvida de que há um proveito próprio. Uma mais-valia do poder, do Estado, de que se aproveitam. E não deixam sequer restos para o povo. Mas acho que há outra coisa, que é muito mais enigmática nesta manifestação. Quer começar por aqui?

 

Quero. A manifestação de 15 de Setembro parece traduzir uma zanga com os políticos. Além dos assuntos concretos pelos quais as pessoas se manifestaram, fica expresso naquele movimento um divórcio com a classe política.

É divórcio, mas não é zanga. Não me parece que se tenha chegado a esse ponto. O que não quer dizer que não se vá para esse ponto. Na expressividade ainda não há zanga. Não houve na manifestação senão insultos, poucos; e como havia de tudo, pessoas politizadas, membros de partidos, é natural que aparecessem. Mas na maioria dos casos, e na superfície da manifestação, não havia nem palavras de ordem nem uma zanga generalizada.

O que esta manifestação exprimiu, antes de mais, no seu carácter enigmático, foi a afirmação de uma presença.

 

Uma afirmação de presença?

Não era uma presença política, não era uma reivindicação, não era uma manifestação militante, activista, passiva. Era uma manifestação que se disse ordeira – “Ah, que dignidade...”. Foi muito mais do que isso. As pessoas quiseram manifestar-se por manifestar-se. Dizer: “Eu existo. Eu sou uma presença. Tenho direito porque existo.” Porquê? “Porque estou constantemente a ser excluído. Ameaçado de exclusão pelo desemprego. Ameaçado em relação ao futuro. E o Governo não olha para mim.” Se quiser caracterizar numa palavra, isto não se situa num plano sociológico ou político. Situa-se, num plano dos direitos, do direito, num plano metafísico.

 

Ter uma presença é diferente de ter uma voz? Naquele momento, sábado, se as pessoas diziam que estavam presentes, não era clara que voz era a delas.

A presença significa: “Eu estou inscrito. Eu existo”. Vozes gritaram: “Isto é histórico. É um marco e vai continuar”. O que quer isto dizer? Quer dizer: “Nós queremos ser inscritos porque nos desinscrevem”. E a prova de que nos desinscrevem é que no dia seguinte, ontem, hoje, o Governo e os responsáveis não dizem nada. Querem desinscrever [a força do que aconteceu]. Os media não estão muito longe. Não se pensa suficientemente o significado desta manifestação. Não se pensa o que é que ela representa na modificação da relação povo-poder numa democracia como a nossa. Não se pensa o que é que quer dizer: “Queremos a nossa vida!”.

 

Há uma fractura em relação ao paradigma anterior, de não-inscrição (de que fala no seu livro “Portugal, Hoje – O Medo de Existir”)?   

Acho que há. A sociedade portuguesa está a mudar. Pode voltar     

para a estagnação anterior – não creio. Está a mudar e caracteriza-se por uma enorme confusão. Há forças contrárias, umas que predominam e que dominam as outras, mas que são forças de inscrição contra forças de não-inscrição, forças de democratização contra forças de não-democratização, forças de afirmação do poder do povo contra forças que não querem esse poder do povo. Com essa presença, vem muito mais, e isso é que tem de ser pensado. O que está implícito nesta manifestação não é pensado.

 

É o quê?

O que está implícito é: “Nós já não podemos mais com a opacidade”. Não sabemos nada, nada sobre corrupção. A corrupção [em Portugal] é avassaladora. Sobre a maneira de governar, sobre a promiscuidade, sobre a falta de legalidade nos negócios, sobre as dificuldades que as reformas estruturais estão tendo, cada vez mais, e porquê: não conhecemos nada no nosso país.

Sabe, vivi em países totalmente corruptos, como a Córsega. Sei o que é a corrupção. Via-a. Atravessava as instituições. Vejo isso aqui. Somos pequenos. Tudo se mexe. A comer no mesmo lago, dos mesmo peixes. Ah!

 

Os portugueses foram subestimados? Foram apelidados de mansos, inundados de imagens da Grécia, de Espanha (onde as pessoas saíram à rua assim que começaram as medidas de austeridade reivindicando o seu futuro). No sábado pareceu existir um orgulho em participar. E uma vontade de dizer que não amoucham sempre. Isto faz-lhe sentido?

Quase. Não acho que haja ainda uma tomada de palavra. A expressividade foi quase silenciosa. Foi, digo-o mais uma vez, uma afirmação de presença e de existência. E de direito aos direitos. Quando falava de metafísica, não estava a exagerar nada. A palavra de ordem foi: “Nós queremos a nossa vida”. Espantoso!

 

Que é que acha que quer dizer essa frase?

Quer dizer que nós estamos desapropriados da nossa vida. Porque as condições para termos uma vida, e para darmos continuidade à nossa vida através dos nossos filhos e netos, estão desaparecidas. 

 

No fundo, quer dizer que desapareceu o horizonte de futuro e que isso foi fundamental para levar as pessoas à rua?

Ah, sim! O futuro e o presente. A existência presente. Esta manifestação, só pela presença, implica uma crítica extraordinária ao tipo de sociedade e de democracia que estamos a viver. Implica uma crítica das metamorfoses da democracia em que supostamente estamos, mas em que já não estamos. Cada vez mais vamos obedecendo, obedecendo, íamos obedecendo.

Depois há outro ponto: há um perigo de violência. De expressividade de violência. A comparação que faz com os gregos, tem razão num certo nível. Os gregos exprimem imediatamente; é um povo mediterrânico, há outros que também exprimem imediatamente e que estão no Mediterrâneo. Nós não estamos bem no Mediterrâneo. Nós não exprimimos. Sobretudo que não se mostre o conflito. Mas somos um povo violento. Basta saber a percentagem de violência doméstica na nossa população, a percentagem de crimes passionais. Temos é uma grande capacidade de esconder [essa violência].

 

Em que momento é que a exprimimos? Em que momento ela não pode ser mais contida?

Quando os mecanismos de transformação dessa violência em aparência de doçura se quebram. E isso é quando um grau de violência superior aparece da parte daqueles que fazem violência. Repare, se a manifestação fosse violenta não se diria: “Ah, o povo português, que dignidade...”. Não, seriam indignos. A violência faz cadeia, contágio, e se sofro violência acabo por manifestar violência. Acontece que o povo português está a sofrer uma violência inaudita da parte dos nossos governantes. Qual foi o pretexto, o causa ocasional para esta manifestação?

 

A TSU.

A TSU em que a injustiça, a violência da injustiça já nem foi coberta. Era de tal maneira evidente... O que é que se passou na cabeça dos nossos dirigentes para julgarem que nada havia de acontecer?, que se podia fazer tudo aos portugueses! Esmaga-se mais e mais e mais. Não foi o ministro das Finanças que disse: “Eu não espero reacções...”? Espantoso.

 

A imagem que está a ser difundida como a imagem da manifestação é a de um jovem, muito jovem e bonita, abraçada a um polícia. As reacções a essa fotografia são de orgulho, porque ela acentua o nosso pacifismo e dignidade. É uma sedução da autoridade para a causa dos manifestantes e uma diminuição da violência expectável.

Nesse gesto dessa rapariga há todo um passado, uma memória. Lembra-se de fotografias e filmes em que o povo, no 25 de Abril, ia oferecer aos soldados cravos para pôr na espingarda.

 

Uma das palavras de ordem desta manifestação é herdada dos tempos da revolução: “O povo unido jamais será vencido”. Também se disse abundantemente que o povo não saía à rua desta maneira desde o 25 de Abril ou o 1 de Maio de 74. O que é que isto quer dizer?

Vejo isso dentro deste quadro de que falei – o de uma sociedade que está a mudar. Por exemplo, no que respeita à conflitualidade das relações. Já não temos medo de conflitos. A assimilação do 25 de Abril vem em farrapos. Em discursos ideológicos, partidários, que também estavam na manifestação. Eu não acho que isto tenha a ver com o 25 de Abril.  

 

Mesmo que muitas das pessoas que vimos na manifestação (e a afluência era transversal) sejam aqueles que viveram o 25 de Abril, aqueles que se desapontaram com o país, e os filhos desses?

Não vejo senão nisto: na mesma afirmação de existência e iniciativa, que houve também no 1º de Maio, que foi o 25 de Abril, mas não nas correntes ideológicas bem marcadas do 25 de Abril e que não havia aqui (embora manifestadas pelos militantes socialistas, comunistas e eventualmente pela direita).

 

Foi uma surpresa para si a dimensão desta manifestação?

Foi e não foi. Estava incerto. Não sabia o que é que isto ia dar. O que me parecia era que isto... isto o quê? A tensão entre diversos vectores opostos, que implicam uma grande confusão, tinha de se manifestar. Em que medida, e como é que se ia manifestar, não sabia. Surpreendeu-me imenso, e isso achei notável, que fosse assim.

Pode continuar agudizando-se a expressão. Agudizando-se no sentido de uma violência expressiva. Se amanhã houver uma manifestação de 500 mil pessoas – é imenso, 500 mil pessoas – já não estou convencido que tenha o mesmo carácter de afirmação de presença, afirmação de direitos, silenciosa. E é preciso ver o que continua a fazer, ou a não fazer, o Governo. Vamos lá ver: o Governo ainda não falou!

 

Não falou porque não sabe como lidar com isto?

Ah, pois. Não sabem. E estão a fazer cálculos políticos.

 

Voltamos ao proveito próprio de que Aquiles acusava Agamémnon? E à vergonha que resulta de se estar ocupado com isso.

Absolutamente. É por cálculo, e manifesta como é verdadeira a percepção popular do divórcio dos políticos. Aparentemente fazem as suas manobras como se não houvesse crise. Falam da crise como se eles não estivessem em crise, enquanto que nós estamos em crise. Insisto: se isto foi uma manifestação para marcar um acontecimento histórico, para que ele se inscrevesse, o Governo está a fazer tudo – como fazia o Sócrates – para que não se inscreva nada. Como se não tivesse existido. Até Paulo Portas.

O que está a fazer Paulo Portas é esperteza política, manigâncias. Esta manifestação era contra as manobras políticas, também. Se bem que predominasse a afirmação, mais do que a reacção. Era mais por (por qualquer coisa, que não era imediatamente político) do que contra (o Governo). Era um “contra” que era envolvido por um “por”.

 

Viram-se na manifestação pessoas a agitar panelas. Dois significados. O da pobreza (donas de casa a agitarem panelas vazias) e o dos “tachos”, que os políticos imerecidamente têm e que lhes permite prosseguir a sua vida, desligados da população. É um sinal do aumento da tensão, da escalada que começou e não sabemos onde vai parar?

Com certeza. Até pela novidade na maneira de manifestar – com tachos. E se tem esse significado...

 

Sou eu que o interpreto assim.

Vamos aceitá-lo. Falou de escalada? Sim. Mas há sempre uma contaminação. Na sociedade, cada família, cada pessoa pensa só em si, tem estratégias de sobrevivência; o que daria uma sociedade atomizada, e mesmo de afastamento uns com os outros, eventualmente de hostilidade. Há isso e há o vector contrário: “Nós queremos estar juntos”. Isto também se manifestava na própria manifestação – um prazer de estar juntos, sem a exigência de uma palavra de ordem, que unisse e fizesse uma massa politizada.

 

É o prazer de ver que o amigo, o vizinho, o familiar, outro igual a nós, sente o mesmo que nós, e, sem que tenhamos combinado, sai à rua como nós?

É verdade. Mas o que me faz hesitar em ir mais longe é a pergunta: e no dia seguinte? No dia seguinte, as relações de vizinhança vão modificar-se ou voltar ao mesmo? A resposta que tenho é: a tendência é voltar ao mesmo. O que é muito esquisito.

 

Voltam ao mesmo porque não têm uma ideologia, uma bandeira, ninguém que os mobilize?

Não digo ideologia. Mas sim, porque não há uma bandeira. Não há ainda. Não há uma expressividade formulada que una as pessoas. Não quero dizer que disto vai nascer uma ideologia. Uma ideologia não nasce de um dia para o outro. Nem vai nascer um novo discurso nem uma nova política. Mas que está inscrita uma nova maneira de fazer política, de se apresentar perante o poder e de querer e exigir uma outra democracia, uma outra transparência, está.

 

O problema é mais fundo, e o seu âmbito mais largo, do que o da discussão das medidas de austeridade, nomeadamente a TSU. Isto pode ser uma coisa que rasga a forma como nos relacionamos com a política e os políticos?

Acho que sim. Temos de falar em Portugal em duas superfícies, uma que cobre a outra. A crise fez vir à primeira superfície o que está profundamente escondido (desde a corrupção ao aproveitamento pessoal da mais-valia do poder). A austeridade desnuda. Despoja. É como uma espécie de raio-X: já não se vêem as camisas nem nada, a pessoa fica nua. A sociedade ficou nua, está ficando nua. Veja que se manifestam cada vez mais escândalos. E ainda é muito pouco. Mas estão a manifestar-se uma série de mecanismos que têm sido aceites (as pessoas fechavam os olhos, e vivíamos assim). Com manifestações deste tipo, isto passa para a tona da vida social, para a segunda superfície. Passa a haver no espaço público uma expressão possível da indignação.

Houve alguém que se imolou.  A Primavera Árabe começou com uma pessoa que se imolou, na Tunísia.

 

Foi lido como um sinal de desespero.

É. Não é lido com tendo um significado de protesto contra este tipo de encobrimento que faz esta sociedade. O tipo imolou-se! A progressão na expressividade será tal que um dia haverá um indivíduo que se imola e não haverá a mesma reacção que está a haver agora.

 

Porque já aconteceu.

Sim.

 

Uma das coisas que minam a confiança dos portugueses na democracia é que tudo parece inconsequente. Existe uma fraca reparação das injustiças, uma noção de que as coisas não funcionam e que, por isso, “não vale a pena”. As coisas vão mudar?, as pessoas vão começar a exigir uma sequência?

Estou de acordo com isso: as pessoas exigem. Mas ainda não se formula. Que essa exigência está encerrada, implícita, na manifestação, estou convicto que sim. Se isto vai ter uma consequência e se se vai desenvolver, não estou certo. Já não há a força do recalcamento (para usar este termo psicanalítico) que houve até agora da parte do que esconde.

O que é que pode dar isto? Não se pode modificar completamente, como tanta gente queria. Como se bastasse uma manifestação para que o Governo se modificasse. Não. O Governo, os poderes, os poderes económicos – que são o poder; lembre-se que o Sócrates foi-se embora por causa dos banqueiros; bastaram eles reunir-se – estão a fazer tudo para que isto volte à mesma.

 

O silêncio de Cavaco, surpreende-o?

Vai ser quebrado, como toda a gente diz. Ele saberá, na sua sabedoria... Estamos inquinados por uma série de bom senso.

 

Excessivo bom senso?

Oh, [estou] farto disso! Há o vocabulário do bom senso. Um dos termos é “sabedoria”. Vamos justificar a sabedoria de Cavaco Silva: se não falou é porque..., e temos uma série de razões sábias.

 

Cavaco convocou um conselho de sábios.

Claro. Mas com que atraso em relação aos acontecimentos. E isso acalma os espíritos.

 

Foi também por cálculo político que ele não reagiu mais prontamente? Quis primeiro perceber como é que Portas reagia, como é que o povo reagia, como é que a comunicação social reagia? Como é que Passos reagia às reacções imediatas?

Será. Mas também poderá ter sido porque não é um homem que provoque acontecimentos sem uma prudência enorme. Há uma prudência que pode significar uma falta de visão política. Mas que as pessoas, o povo, acham que já tarda que fale, já. E já tarda porque isto exige imediato. Mas assim se acalma. É uma outra maneira de esmagar e apagar as raivas, as cóleras, as impaciências das pessoas.

 

Não alimentar a chama?

Não alimentar a chama. Apagar. Sabe que isto é muito antigo... Já no antigo regime era assim. Não estou a fazer uma ligação. Mas como procedimento político, é geral.

 

Durante muito tempo, e com a imagem da sua acção executiva (como PM), Cavaco foi um referencial para muitos portugueses. Desde a sua reeleição, por uma série de factores, o seu capital reputacional foi diminuindo. Os portugueses precisam de ter uma figura na qual se revêem, à qual recorrem? Como se fosse um pater familias, alguém em quem se podem refugiar.

Não é refugiar. É investir as suas forças. E isso acho necessário. Um rei, numa monarquia constitucional, se não gastar muito dinheiro, pode ser um personagem necessário. Não sei se é o pater famílias ou outra coisa, do ponto de vista do fio de coesão nacional. Mas o que irradia da Presidência da República é extremamente importante. Como imagem. Uma imagem que é exemplar, que induz comportamentos. Portanto que condiciona as pessoas. Precisamos de alguém. É uma imagem que é como um heterónimo de Pessoa. Uma encarnação fictícia. Precisamos de um foco unificador de forças.

 

Cavaco é também um perdedor neste processo de divórcio entre os portugueses e os políticos? Não se revelou esse foco aglutinador.

Depende das circunstâncias. Perdedor em relação a quê? À sua popularidade, ao que ele quer, ao seu desempenho enquanto PR? Perdedor porque não reagiu imediatamente? Perdedor relativamente a que imagem? Ao que as pessoas viam nele? Perdedor porque fica descredibilizado, porque não foi um foco unificador? É possível. Não se sabe a importância que isto vai ter. Isto muda tanto... É um dos factores da tal confusão em que estamos. Possivelmente amanhã o contexto é tal que o papel do PR já tem de ser outro, e apaga-se a fase precedente. É difícil fazer uma previsão e criar uma linearidade do tempo histórico.

 

Olhando para o passado recente e para o socratismo: isto é uma dupla desilusão? Houve uma zanga enorme com José Sócrates e uma aposta e desejo de mudança personificados por Passos Coelho.

É uma dupla desilusão. Não penso que a segunda desilusão seja muito grande. Porque as pessoas votaram sobretudo contra Sócrates. Não votaram por Passos Coelho. Passos nunca foi a esperança. Nem promoveu a imagem da mudança. Foi uma coisa muito ténue, rápida, que passou: que se ia mudar Portugal. Muito rapidamente se percebeu que os pesadíssimos mecanismos nacionais estavam a tomar novamente a primazia.

 

Foi também essa desilusão que os levou à rua?

Não. Isto foi a insuportabilidade da injustiça pessoal e da injustiça do Estado. Ultrapassou tudo. Agora vamos poder tirar dos trabalhadores dinheiro para dar aos patrões? Directamente. É demais! (Para que isto possa entrar na iniciativa concreta de um Governo, é porque há qualquer coisa naqueles cérebros que não está a funcionar.) Admitimos todas as injustiças, no sistema judiciário português, no sistema educativo, no sistema de saúde, a corrupção, os contratos, as parcerias [PPP], o clientelismo, etc. Tudo isso o povo sabe. Não tem provas, mas sabe e aceita. Até quando? Subiu, subiu, subiu, subiu. E agora já fazem injustiças não encobrindo? “Não somos parvos a este ponto.” O povo português não é estúpido.

 

Do outro lado: temos compromissos perante os nossos credores, e temos de cumprir isso a que estamos obrigados. Há uma necessidade de injectar dinheiro na economia e capitalizar os bancos. Mais do que tudo: estamos integrados num sistema europeu que, não só não permite desvalorizar a moeda, como está, também ele, e não apenas do ponto de vista financeiro, mas político, em crise. Que caminhos, então? Que soluções?

Há uma série de argumentos utilizados (que somos obrigados a isto, etc.) e que são mal empregados porque com isso se quer justificar tudo. Então, tudo o que se faz é justificado (se não aceitássemos a Troika, íamos para a bancarrota e o resultado seria muito pior). Isto é uma falácia, não funciona.

Estamos enquadrados num sistema capitalista global, de neo-liberalismo – esquisito, em Portugal...

 

Porquê?

Porque é um neo-liberalismo em que o Estado intervém mais [do que qualquer entidade privada]. Não o podemos negar e não vamos pensar que há uma revolução possível.

 

Não?

Não. Não há pensamento revolucionário nenhum. Com a queda do Muro de Berlim, acabou. Há umas tentativas, aqui e ali, mas não se renovou. O socialismo sofre imenso com isso. Apoiava-se na doutrina marxista dizendo: marxismo mais liberdade. Não vendo que a liberdade depende também do que o marxismo dizia. O que é que se pode fazer? Necessariamente temos de aceitar este quadro que nos é imposto. Mas aceitar não significa que vamos aceitar tudo. Há um quadro global e uma política local. Essa política local pode ter limites cada vez mais alargados. Por exemplo, as reformas estruturais podem ser de tal tipo que se procure corrigir – mais do que corrigir: abolir, destruir – uma série de injustiças de Estado.

Para isso é preciso uma vontade forte. Que seja uma vontade política, que liberte as vontades individuais e da sociedade civil. A corrupção não se combate sem uma vontade forte, à beira do autoritarismo. Este à beira é uma margem infinita. É paradoxal.

 

É perigoso, porque à beira do autoritarismo?

Não. Como é que vai combater a corrupção, onde todos são primos, imbricados uns nos outros? Não é um despotismo iluminado. Estou a dizer: uma vontade política forte de querer combater a corrupção e de o fazer.

Estamos obrigados a cumprir o que a Troika [nos manda]. Ao mesmo tempo, as reformas estruturais, podemos enviesá-las. Enviesá-las no sentido de [garantir] uma maior justiça, distribuindo melhor, sistematicamente, estruturalmente, os sacrifícios. É uma questão de justiça. Não se pode tirar aos pobres para dar aos ricos.

Não se trata, por isso, neste momento, de sonhar com um novo 25 de Abril e uma nova revolução. Enquanto não houver um pensamento que nos mostre a sustentabilidade da nossa economia, o equilíbrio do nosso orçamento – sem a Troika – temos de cumprir [o memorando]. Mas não somos obrigados a cumprir desta maneira. Cumprir obedecendo, como os tais horríveis bons alunos.

 

Como, então?

Vou repetir o que toda a gente diz: vamos ver se não se pode negociar com a Troika, e elevar, mostrar de outra maneira a cabeça. Somos um povo! A Troika vai ganhar com isso. Isto é que é a usura: empresto, mas com os juros tais que fico a ganhar se vocês forem capazes. Vão ser capazes.

 

Esperava que se fizessem reformas estruturais com a vinda da Troika? Que a Troika nos obrigasse a isso para garantir o cumprimento do memorando?

Não. De maneira nenhuma. A Troika não nos obriga a nada. A Troika quer é o dinheirinho no fim do mês, e que Portugal seja um bom país nas normas do capitalismo habitual. Mas na Noruega o capitalismo é o sistema. Os autarcas pagam imensos impostos. Em Portugal, também. A diferença é que quando se pergunta a um norueguês: “Não acha que é demais? Não contesta esses impostos que lhe levam imenso do seu salário?”, a resposta é esta: “Dou muito à câmara, mas vejo o que a câmara faz por mim. Está a ver aquele jardim, para os nossos filhos? Estou a ver onde é que o meu dinheiro está a ser gasto”.

 

Em Portugal não vemos, e esse é o problema?

Onde é que está? Essa é a injustiça do Estado. Para onde vai esse dinheiro que pagamos? Isto no fundo é muito simples. Não é preciso ler “O Capital”, mais Keynes, mais [outros autores]. Aqui em Portugal as coisas são sumárias.

 

O que é chato é que isto é uma longa história. Não conseguimos sair dela.

Pois não.

 

É descoroçoante.

É descoroçoante. É preciso que, se não nos exprimimos, que nos esforcemos a exprimir. Que nós falemos. Há forças vectoriais contrárias, um grande desejo de fazer outra coisa, de não ir pela norma única. Esse desejo mistura-se com velhas utopias, reactivações do 25 de Abril, muita coisa. Mas há qualquer coisa de diferente. E depois há o velho barco que afunda todos os outros. O monstro, como dizia o Nietzsche. Que aqui tem a figura do Estado. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios, em 2012