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Anabela Mota Ribeiro

Rui Ramos (sobre Portugal e Poder)

10.07.13

Rui Ramos coordenou uma História de Portugal que quis que fosse lida (diz-se na introdução) como “síntese interpretativa da História de Portugal desde a Idade Média até aos nossos dias”. No seu discurso há a mesma pretensão de cruzar os planos político, económico, social e cultural, e fornecer uma visão integrada de quem somos, de quem vamos sendo.

Fala do Estado como um polvo sem cabeça. E simultaneamente considera que “temos uma sociedade onde a grande indústria é o poder político”. É aliás crítico dos que apontam uma supremacia do poder económico sobre o político.

É professor no Instituto de Ciências Sociais. Foi lá que nos encontrámos. Antes mesmo de começar a gravar, já falávamos do tema da entrevista: os mecanismos do poder e o modo específico de ser de Portugal nesta matéria. Quando Rui Ramos citou um eloquente episódio de Eça de Queirós, liguei o gravador.

  

 

… Quando Fradique Mendes chega a Lisboa, tarde, uma tipóia leva-o ao hotel. Pede-lhe um preço louco pela viagem. Comenta: “Que disparate é este?”. Alguém diz “Dom Fradique”, e o carroceiro responde: “Se é para o Sr. Dom Fradique, é o que o Sr. Dom Fradique quiser dar”! De repente aquilo já não tem um preço – como era para uma pessoa conhecida, é o que ela quiser dar. Isto [reflecte] uma sociedade onde houve sempre a distinção entre quem está dentro e quem está fora.

 

O que é que determina que se esteja dentro?

No caso do Sr. Dom Fradique era o ser conhecido. (Que lhe dá uma grande gorjeta. Ficou agradado com o facto de haver um reconhecimento de que estava dentro.) O fazer parte de uma rede de apoio, por via da família, por via profissional, por via de relações de qualquer tipo. Quem está fora são todos os outros.

Já foi pior do que é agora, mas alguém que quisesse fazer uma vida baseada nos procedimentos definidos nos estatutos e nos regulamentos, não ia longe.

 

O que isso quer dizer é que temos um sistema democrático débil. Se os mecanismos legais não estão assegurados – diria automatizados – os filamentos são mais frágeis, podem quebrar.

Uma das bases de qualquer sistema democrático é o Estado de direito, é o império da lei. Só o Estado de direito pode garantir verdadeira igualdade entre os cidadãos. É a esse nível que temos deficiência, ao nível dos procedimentos. E o entorse à lei cria desigualdade. Desigualdade entre os que têm acesso ao poder por vias informais, e aqueles que por vias formais não vão a lado nenhum.

 

E depois surge a corrupção, para apressar uma decisão, para resolver qualquer coisa que resulta da entorse do sistema.

O sistema, por vezes, tem que ser oleado. Às vezes é oleado através do conhecimento, da palavra – alguém a quem o utente ou o cidadão se pode dirigir pessoalmente. Deixa de ser o utente e o cidadão, passa a ser o primo, o amigo. Ou através da troca de favores, ou mesmo da remuneração. Quando tenho de recorrer a um serviço, e mesmo que não tenha que pagar a ninguém, se tenho de invocar um conhecimento, uma relação, isso já é uma forma de corrupção. Na prática, a corrupção é uma desigualdade de acesso (estamos a falar ao nível da corrupção para acto lícito). Aparentemente estamos a falar do Estado, mas uma parte das instituições, das empresas e dos actores da sociedade portuguesa, tendem a estar em posições de poder. Pelas relações que têm uns com os outros, e porque numa sociedade onde há menos recursos, a acumulação de recursos aqui e ali cria aquilo a que os economistas chamam posições dominantes. E essas posições dominantes dão uma espécie de poder que não decorre da simples prestação de um serviço, e permite a discriminação.

 

Os médicos: quando alguém vai a um hospital, clínica ou consultório, frequentemente ouvimos: “Diz-lhe que vais da minha parte”. Como se isso fosse merecedor de um tratamento preferencial.

Isso é uma sociedade de poder. Quem nos está a dizer isso quer dizer: “Tenho mais influência que tu, sou mais poderoso que tu. Para teres acesso àquele tipo de serviço tens de passar por mim”. É uma sociedade em que estamos constantemente confrontados com estes desníveis de influência, de recursos, de acesso. A lei, o império da lei e dos procedimentos, tem por detrás um sistema de autoridade. A ideia é poupar ao cidadão o aspecto nu do poder, a pornografia do poder. Aqui estamos constantemente confrontados com essa pornografia.

 

Mas quase não nos damos conta que ela existe, pelo menos desse modo pornográfico. Estamos tão instalados, tão insensíveis a isso… Para nós, é o normal.

Estamos insensíveis porque temos a ideia de que quem protesta fica de fora, e de que não há vantagem nenhuma no protesto, a não ser o ter ainda mais dificuldades de acesso.

 

São duas coisas diferentes mas as duas muito poderosas. A primeira é o medo da retaliação: “Se protesto fico de fora e sabe-se lá que consequências vou ter”. Segunda: quando não se confia no sistema e quando potencialmente ele não funciona, para quê darmo-nos ao trabalho de protestar?

É a ideia da inutilidade. Há uma inter-penetração. Posições sociais que acabam por resultar num poder público, e posições do Estado que são quase actividades privadas, em que os titulares daquele cargo se comportam como se estivessem numa actividade privada, distribuindo os recursos conforme as amizades e os conhecimentos.

 

Como se aquilo fosse seu, e não nosso.

O cidadão tem que negociar toda esta rede. E a última coisa que precisa é de ler os regulamentos, as leis, os estatutos. O que se pode fazer, o que se deve fazer, é um conhecimento que não está fixado, é um conhecimento difuso.

 

É o “jeitinho” português? Não se pode fazer, mas fazemos na mesma.

Esse “jeitinho”, que podemos atribuir a uma cultura nacional, vem de um sistema de poder que está montado em que há uma inter-penetração completa do Estado com a sociedade. E essa mistura dá poder a uns e tira poder a outros. Mas fundamentalmente produz desigualdade. Desigualdade para além de qualquer desigualdade de recursos económicos.

 

É mais a fragilidade do Estado de direito do que o dinheiro que provoca essa desigualdade?

É mais a fragilidade do Estado de direito. O dinheiro só pode produzir este género de desigualdade quando o Estado de direito é frágil. Estamos a falar de dinheiro, mas podíamos falar de relações familiares, de vizinhança (o vizinho que por acaso é o senhor das Finanças…). A informalidade das relações produz esta desigualdade. Uma das vantagens da formalidade é produzir igualdade. Se todos temos de preencher aquele formulário, se todos temos de tirar aquele ticket, uns podem ser mais ricos, outros podem ser mais pobres, uns podem ter uma família mais conhecida, outros menos, mas todos temos que fazer aquilo.

Há também uma desigualdade que é dada pela frequência. Há níveis em que não tem relevância política (não me interessa que no café, quem vai lá todos os dias seja melhor servido do que quem lá vai uma vez por outra). Agora, em tudo o que tem a ver com o serviço ao público, numa repartição pública ou numa empresa privada, aí há a obrigação, e devia haver a vantagem, de tratar todas as pessoas da mesma maneira.

 

O que está a descrever é uma idiossincrasia do que são os portugueses? Somos assim desde sempre, é melhor conformar-nos com isto?

Não interessa saber se somos ou não assim desde sempre. O que interessa é que, primeiro, isto não é nada que não possa ser emendado. Segundo, isto não é nada que não deva ser emendado. Com vantagens, não só para cada um, como para a sociedade em geral. Vivermos numa sociedade em que temos um Estado que não tem contrapesos óbvios, não tem uma sociedade civil com fortunas independentes, com associativismo pujante, com tradições de auto-governo regional muito afirmativo…

 

Não temos sindicatos com a força dos gregos, nem temos regiões como a Catalunha, com uma autonomia financeira imensa, pujante.

Não temos isso, mas também não temos empresas com força. Ao contrário do que alguns dizem, aquela história dos “Donos de Portugal”, é uma fantasia! O poder é o dono disto. O que temos são pessoas submetidas ao poder e que vão apanhando as coisas do poder. Umas vezes são corporações, outras vezes são grupos económicos.

 

Pensemos nos Mello, nos Espírito Santo, nos Champalimaud, as grandes famílias que durante décadas monopolizaram a indústria em Portugal. Esse poder esfumou-se?

Esse poder nunca existiu. Esse poder, na maior parte dos casos, é um poder do Estado. São dependentes do Estado, estão nas mãos do Estado e do poder político. Eles são um resultado de engenharia política, dos governos que ao longo do tempo os usaram, com benefícios para eles [famílias], claro.

 

Porque é que os sindicatos não têm a força dos gregos?

O tipo de sindicalismo que temos é herdeiro do sindicalismo nacional do Estado Novo. Usa recursos públicos, está sobretudo baseado na função pública e nas empresas estatais. Está nas mãos do Estado, é uma parte do aparelho de Estado. Vive da concertação, da importância que lhe dá o governo e os próprios recursos que tira a partir daí. O poder que as corporações profissionais têm em Portugal vem da maneira como o Estado lhes permite monopolizar determinadas profissões e restringir o acesso, aumentar o acesso, criar redes. Temos uma sociedade onde a grande indústria é o poder político.

 

A grande indústria é o poder político, como assim?

É através do poder político, é através do Estado que criamos desigualdades entre nós. Desigualdades de acesso ao mercado, à influência, à capacidade de organização. É através do poder político que conseguimos recursos, benevolência. Qualquer grupo económico em Portugal que quer ter um grande negócio tem que passar pelo Governo, tem que pedir licença. Os donos do país?, deixem-me rir. Pode ser completamente liquidado por um secretário de Estado ou por um ministro (mesmo que tenha acumulado os recursos) ao pedir uma licença.

 

Resta saber se o secretário de Estado ou se o ministro ousa contrariar esse grande poder económico.

Ousa, ou ousou no passado, constantemente. Para esse poder económico sentir que não é poder nenhum – é um aspecto do poder político. O poder económico, o poder universitário, o poder profissional, o poder sindical, em Portugal, são aspectos do poder do Estado. Numa sociedade onde o Estado gasta o equivalente a 50 por cento da riqueza nacional, está tudo dito. E onde o Estado tem a possibilidade, através da justiça, através do fisco, de destruir tudo, dificultar e impedir tudo. Numa sociedade assim não há capacidade de emergirem poderes autónomos.

Aquilo que algumas pessoas referem como poder económico é um dos mitos absolutos dos tempos que correm. Só há um poder em Portugal: o político. O resto são avatares do poder político.

 

É preciso pensar em quem custeia carreiras políticas, campanhas eleitorais, e nas facturas que aparecem mais à frente. Todos sabemos que não há almoços grátis. O poder político não se faz sem o económico.

O poder político não se faz sem uma enorme quantidade de poderes que usa para controlar a sociedade. O que me está a dizer é que este poder político está tão inter-penetrado pela sociedade que tem uma enorme capacidade de presença. Está em todo o lado, mas não é suficientemente forte para se destacar de todos os poderes com os quais se confundiu (o poder dos sindicatos, das corporações, de determinados grupos empresariais, das universidades). Só teoricamente os podemos distinguir. Quando digo que o poder político é o que existe é porque é aí que em última instância a decisão pode ser tomada.

 

Recentemente, coincidência ou não, foi na semana em que os banqueiros deram entrevistas na televisão a dizer que estavam com a corda na garganta, que o governo capitulou e disse: “Venha o FMI”. Isto é sintomático dessa interdependência.

Aquilo que impressionou o Governo, ao contrário do que as pessoas pensam, não foi o poder dos banqueiros. Foi a fraqueza total em que os banqueiros estavam. Estavam mesmo com a corda na garganta. Muita gente interpretou aquilo como: “Eis o poder político submetido ao poder económico”. Não, foi a falta de poder económico que levou àquela decisão. Chegaram lá e disseram: “Se mais uma vez não provam que somos parte do vosso sistema, desaparecemos. Depois vejam as consequências”.

 

Este é o sistema que temos desde sempre. É susceptível de ser mudado?

Mas não é uma coisa genética, é uma coisa histórica. Tivemos sempre um Estado maior do que a nossa sociedade.

 

Porquê?

Porque era um Estado que historicamente esteve associado a actividades fora do país. Esteve sempre sobredimensionado para o país. Durante a época de expansão ultramarina os rendimentos que tirava do país eram secundários em relação àqueles que retirava do controlo dos tráfegos ultramarinos.

Eram negócios da China, negócios da Índia, eram grandes negócios. Não havia nada comparável em Portugal. As grandes fortunas em Portugal vêm da gente a quem o Estado deixou fazer negócios.

Com um Estado deste tamanho, quando se quer mudar a sociedade usa-se este Estado. O Estado assume que tem a função de destruir outros poderes independentes para poder ser o Estado o canal para a modernização da sociedade. Isso é feito a partir do séc. XIX. Ataques à Igreja, ataques à própria aristocracia, baseada nos morgadios (a nobreza de província), que tem uma acumulação de recursos que lhe permitia uma certa autonomia.

 

Porquê esses ataques, porquê essa destruição?

Para criar uma tábua rasa para o Estado influenciar mais. O Estado ficou sozinho em campo, tornou-se o espaço privilegiado de todas as lutas políticas, de todos os investimentos. Acumula a maior parte dos recursos e quem fica de fora não tem grande margem para crescer. Lisboa era a segunda maior cidade da Europa ocidental. Não era a capital de Portugal, era a capital do império. Por acaso estava aqui em Portugal.

 

Uma expressão que traduz essa ideia: Lisboa é Lisboa e o resto é paisagem.

O resto era a província. E nessa província, quem tinha aspirações juntava-se a esta cidade.

 

Onde as coisas se passavam, se decidiam.

Era uma espécie de cidade-Estado. A capacidade da sociedade portuguesa para gerar outro tipo de poderes locais foi sempre limitada. As câmaras municipais foram sempre pobrezinhas. Nunca houve poderes regionais.

 

Tudo a depender da torneira central, e da maneira como abrem ou fecham a torneira...

E o Estado, a partir do momento em que se afirma como modernizador, perde também os limites para a sua acção. Aquilo que se fez foi substituir todos os pseudo-poderes por poderes reais, mas que são os poderes do Estado, com os múltiplos tentáculos que o Estado tem. É um polvo sem cabeça. É só tentáculos. Isso é a fraqueza do Estado. Temos simultaneamente um Estado enorme, um Estado confundido com a sociedade, e em que não há possibilidade de o distinguir o dessa sociedade.

 

Significa que passámos de uma situação, no declínio da expansão, em que éramos um gigante com pés de barro, para esta situação em que somos o polvo sem cabeça? São sempre figuras aparentemente poderosas, mas amputadas, que podem ruir com enorme facilidade.

Muitíssimo limitadas. Vimos na nossa história que os vários regimes conseguiram enormes acumulações de poder no centro, e que depois há um momento em que caem como um castelo de cartas, e não deixam nada. No fim da Monarquia Constitucional, a elite política liberal desaparece. No fim da primeira República aquilo desfaz-se e aparece outro poder. E no fim do Estado Novo desaparece completamente. Na noite do 25 de Abril parece que nunca tínhamos tido uma ditadura. Aquilo impressionou muito os repórteres [estrangeiros em Portugal].

 

Isso é específico de Portugal?

É. Há uma grande acumulação de recursos e não há capacidade de decisão. O Governo tem todos os instrumentos, mas está tão confundido com aquilo tudo que não tem a capacidade de apelar a uma instância exterior ao sistema para transformar o sistema. E perante determinados problemas, a opção que tem é a auto-destruição, é ruir.

O Estado Novo: era uma ditadura, tinha censura, tinha polícia política, tinha o poder económico concentrado, através das leis que lhes permitiam fazer engenharias empresariais, tinha os sindicatos que continuava a dominar, tinha o problema do Ultramar. Os decisores políticos nunca foram capazes de optar por nada. Acabam por implodir por incapacidade de decisão.

 

Somos mais da implosão que da explosão?

É como se alguém ficasse com todas as alavancas e depois já não soubesse mexer nas alavancas. Essa incapacidade de decisão durante muito tempo foi uma incapacidade de legitimidade.

 

Está a pensar nos 48 anos de ditadura?

Não. Antes disso. Desde o século séc. XIX, desde que há eleições, as eleições não reproduzem resultados independentes do poder. Nenhuma eleição, até à do 25 de Abril de 1975, foi vista como independente do poder político. Quem perdeu viu sempre aquilo como o resultado da influência do poder, da pressão, da coacção sobre os eleitorados. Eram eleitorados manipuláveis. Quem fazia mais fraude era o poder. Isso é verdade para a Monarquia Constitucional, para a República e para o Estado Novo: eleições falsas, com eleitorados restritos. No caso do Estado Novo, a possibilidade de as oposições protestarem e terem acesso ao espaço público ainda estava mais restrita.

 

Nas eleições desde o 25 de Abril, apesar da instabilidade política que conduziu a um número generoso de governos, sobretudo em relação às presidenciais temos a noção de que se vota em alguém para dois mandatos. Seria considerado um fracasso um PR exercer a sua função apenas durante cinco anos. Isto revela uma procura de estabilidade?

Estamos a dizer, mais uma vez, que independentemente do eleitorado, o poder parece ser decidido pelos arranjos da própria classe política. Por exemplo, o eleitorado é confrontado com um primeiro-ministro que não se recandidata, e escolhe outro partido; porque aquilo parece um sinal para uma mudança de turno. Aconteceu assim em 1985, em 1995, em 2001, 2002. Pode dizer-se assim: “Poupou-se a uma derrota”. Não fazemos ideia. A verdade é que não se deixou derrotar. Não saiu pela vontade do eleitorado, saiu por um arranjo.

 

São muito poucos os políticos portugueses que lidam bem com a derrota.

Quase nenhuns.

 

Na história recente, Mário Soares é dos poucos que foram derrotados nas urnas e a seguir reapareceram.

É essencial para quem tem poder não parecer que perdeu o poder. Parecer que ainda está em controlo. Se não foi reeleito foi porque não quis, não lhe apeteceu, tinha outros planos.

 

Porque é que é tão dramático em Portugal assumir uma derrota?

Creio que é esse vazio criado pelo poder. O poder é tudo, o resto não é nada. A preocupação principal de um político é manter-se dentro do círculo do poder, não cair no nada. Evoluiu dentro dos círculos, dos canais estabelecidos, foi assim que fez a sua carreira. Não foi em contacto com os cidadãos, liderando movimentos cívicos, partindo da periferia para o centro. Mesmo quando actua na periferia, vende-se na periferia devido aos seus contactos preferenciais no centro. O melhor presidente da câmara é aquele que tem o número do telemóvel do primeiro-ministro ou do ministro mais relevante para a acção da câmara municipal.

 

Especulando um pouco: qual acha que foi o grande embate para José Sócrates nos dias imediatamente a seguir às eleições? O telefone deixar de tocar, deixar de ser ouvido, deixar de ver o seu nome nos jornais?

Viu a maneira como ele desapareceu? Porque é que alguém que tinha sido eleito líder do Partido Socialista poucas semanas antes, com uma percentagem gigantesca, desaparece completamente? Porque é que isso não corresponde à vontade de um partido em ter aquela pessoa como líder? Independentemente do revés eleitoral, porque é que não ficou à frente do partido para mobilizar o partido e o levar ao poder outra vez? Porque é que fez a interpretação: “Aquela gente só gostava de mim porque estava no poder. Não tenho poder, vou-me embora”?

 

Não existe a tradição de ficar. A derrota eleitoral é lida como um seta que aponta para a saída. Não é exclusivo de Portugal. Gordon Brown não ficou no partido depois de perder as eleições.

Porque é o colapso total de alguém que tinha com os seus apoiantes uma relação de poder. Não era uma relação de partilha de um projecto de ideias, de crenças, que o fizesse pensar que podia sobreviver a uma derrota e voltar a combater noutro dia. Nos países ocidentais, caminhou-se para esse género de situação. Onde é que temos casos como o de Mitterrand, que perdeu uma quantidade enorme de eleições até ganhar finalmente, em 1981?

 

Ou Lula.

Temos às vezes a sensação que determinada pessoa foi escolhida porque podia ganhar as eleições. Não é porque os partidos gostassem dela. Essa pessoa é aparentemente estimada e adorada enquanto está no poder, e quando perde, o poder desaparece. Já não sabemos quem é.

 

Então não é a pessoa que é adorada: é a função.

É o poder que é adorado. E aquele indivíduo apenas corresponde a um operador que pode revelar-se útil para haver acesso ao poder.

 

O que é que se transacciona, grandes negócios, grandes interesses?

Transacciona-se tudo. Estamos sempre a pensar no dinheiro, mas transacciona-se auto-estima, estima, consideração. Ter o telemóvel, telefonar, ter acesso. Ser reconhecido. Estas coisas têm um lado simbólico que tem muita importância em sociedades em que as pessoas sacrificam o seu conforto e a sua privacidade para aparecer. São os 15 minutos de fama. Repare o que é que os cidadãos anónimos estão disponíveis para experimentar – as humilhações, as exposições – para ter os seus 15 minutos de fama.

 

A celebridade é uma forma de poder.

É sair do anonimato, é apostar na desigualdade e deixar de ser igual aos outros. O poder é criado a partir deste duplo critério: exige-se e justifica-se para criar igualdade, mas só existe porque há desigualdade e porque as pessoas querem desigualdade. É uma dinâmica contraditória.

 

O caso português, em que é que se diferencia?

A dimensão dos estados não é um factor negligenciável. Um país mais pequeno acaba por propiciar promiscuidades que um país maior propicia menos. É mais fácil encontrar um primo num país mais pequeno, numa posição que nos interesse, do que num país muito grande.

O que é mais específico? O sistema foi montado a partir de enormes concentrações de recursos no centro, e julgando que essas concentrações teriam um efeito libertador. Isso foi uma crença. Estamos num processo de transição (que vai ser demorado) para um sistema que pode resultar numa desconcentração de recursos, e isso corresponde à convicção de que pode ser libertador.

 

Essa mudança vai ter de ser feita porque há uma imposição da Troika?

Não, há uma imposição das nossas próprias ambições e expectativas. O grande problema da sociedade portuguesa não é a Troika, é que criou expectativas e ambições que já não pode satisfazer dentro do modo de vida a que se habituou. A Troika somos nós.

A mudança já começou, há bastante tempo. Às vezes só nos apercebemos dela a meio caminho, quando somos atingidos, quando o caminho deixou de ser fácil. É como quando começamos a caminhar: só nos damos conta que a distância era grande quando vamos a meio e começamos a ficar cansados. Quando imaginamos a sociedade portuguesa há 30 ou 40 aos, não estamos na mesma. Este sistema já mudou muito. Quem trabalha com arquivos do passado sabe que ninguém fazia um exame no ensino secundário e nas universidades sem mandar um cartão ao professor, a pedir clemência.

 

Hoje os alunos vão fazer exame sem gravata.

Uma parte da mudança que estamos a viver é o resultado de uma opção tomada há uns anos. De, por exemplo, entrar na Comunidade Económica Europeia, de nos internacionalizarmos. Historicamente devíamos comer peixe pescado na costa, mas habituámo-nos ao bacalhau, que era um coisa que vinha da Noruega e dos mares do norte. Em vez de a sardinha ser o único prato nacional, escolhemos o bacalhau. Devíamos ter um prato nacional pescado aqui à mão. O Estado, já o disse, nunca viveu neste rectângulo. Mas as pessoas também nunca viveram neste rectângulo. As nossas tradições de emigração, que foram aparentemente interrompidas na década de 90 e que já retomámos, agora são vistas como uma espécie de catástrofe. Mas emigrámos sempre. A nossa sociedade só existe por causa da emigração. Há muitas coisas que no Minho achamos muito nacionais e típicas e que são resultado da emigração brasileira.

 

E era um fenómeno transversal. Quase todas as famílias tinham ou têm alguém que emigrou.

Durante séculos a emigração é a grande via de mobilidade social em Portugal. A mais significativa – não quer dizer que não houvesse casos na Igreja, e no exército de forma mais limitada. Quando regressam, os filhos e os netos já regressam para outras escalas sociais. Esta foi sempre uma sociedade que viveu do exterior, precisou do exterior para funcionar.

 

Uma pergunta pessoal. Por que é que regressou a Portugal, depois de se ter doutorado e trabalhado em Inglaterra?

Entre outras razões, porque não senti Portugal como separado daquele mundo em que me apetecia actuar, escrever, pensar, relacionar-me. Não senti que estava a perder acesso a determinado tipo de ambientes, interacções, pessoas, instituições. Não senti essa exclusão. Também pode perguntar: “Por que é que saiu de Portugal?”. No momento em que saí ainda havia uma vantagem em sair. Havia um prémio associado à saída.

 

Sempre tivemos estrangeirados. E quando se vinga lá fora regressa-se a casa como um herói.

A própria pessoa sente que tem alguma coisa a ganhar, em sair. A questão que sempre se coloca é: se está integrado no sistema, como é que pode pensar o sistema? De onde é que vem essa lucidez? Temos essa capacidade enquanto indivíduos. A sociedade portuguesa, em comparação com outras sociedades, é auto-crítica. Temos um discurso sobre nós próprios muito violento, exigente, negativo. Uma verrina tremenda, que roça a falta de respeito. Basta falar com os escritores e pedir-lhes que falem de outros escritores. Falar com professores universitários e pedir-lhes para falarem sobre outros professores universitários. Até gente que respeitamos… Aquele grande empresário que conseguiu ter sucesso.

 

Não é sobretudo inveja, o que suscita essa verrina?

Há inveja, mas há também aquilo que existe no sistema político: a falta de um referente externo. Em Portugal, alguém nos vai explicar que o prémio literário ganho por aquele indivíduo é porque ele é namorado não sei de quem, que tem influência no júri. E que teve sucesso lá fora porque tem um amigo. O que este sistema produz é uma grande descrença no trabalho. “Só pelo trabalho não vamos lá”. É como dizer que só com os meus direitos e garantias não vou a lado nenhum; é preciso ter conhecimentos. Quando começo a integrar o sistema, adquiro poder e influência, mas perco o respeito que está apenas associado ao trabalho.

 

Simultaneamente, há uma desconfiança em relação ao poder. A reputação dos políticos está nas ruas da amargura.

Em Portugal, uma pessoa, enquanto excêntrico, profeta, tem uma certa reputação, é estimada. A partir do momento em que se aproxima do poder, ou que assume responsabilidades públicas, passa a ser um vendido, um traidor. As nossas identidades mais positivas estão associadas ao trabalho. A nossa influência está associada ao poder. O poder: tememos mas não respeitamos. O trabalho: respeitamos mas não tememos. Os portugueses gostam dos coitadinhos.

 

Um episódio anedótico que ilustra isso: o primeiro Big Brother português foi vencido por quem? Por um coitadinho.

Gostamos dos coitadinhos porque não nos fazem sombra. Não nos atormentam. Temos de mudar para um sistema em que seja óbvio que a posição se deve a esforço. Que se deve a uma desigualdade, mas que essa desigualdade não é o resultado do poder; é o resultado da disponibilidade que o indivíduo tem para se sacrificar mais do que o outro. Há subsistemas na sociedade portuguesa onde isso já acontece. O futebol é um deles. Ninguém diz que o Cristiano Ronaldo está no Real Madrid porque é primo ou amigo de quem quer que seja.

 

O que mais praticamos é o bota-baixismo, a maledicência, a desconfiança em relação aos métodos que o outro usou para chegar onde chegou. Como dar a volta a isto?

O “não vale a pena” é o que envenena mais uma sociedade. Mas como é que será uma sociedade em que o trabalho é valorizado? Será que sou assim tão bom que me permita dispensar os mecanismos de apoio de conhecidos, amigos, que me protegem? Temos medo da avaliação objectiva.

 

Não é possível isentar completamente os factores subjectivos na avaliação.

Mas podemos aumentar a participação de actores de tal maneira que ninguém consiga sozinho determinar os resultados finais. Teremos sempre empresários maiores que os outros; mas quero saber que esses empresários são maiores e criam mais riqueza porque são mais capazes, trabalharam mais. Não quero um sistema viciado, só para quem já está instalado.

 

É o próprio funcionamento da máquina, é isto em que nos fomos tornando que vai potenciar a mudança?

Para aquilo que queremos, isto já não serve. Precisamos da Troika porque precisamos de objectivar as nossas exigências. Mas a sociedade portuguesa já tem esse mecanismo.

 

 

Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2011