Alexandra Lucas Coelho
Alexandra Lucas Coelho é jornalista. O diário da sua viagem ao Afeganistão resultou no livro “Caderno Afegão”, editado pela Tinta da China. Uma parte desses textos/reportagens foram publicados no Público e na Antena 1. Pela mão da jornalista, somos levados a um país onde “tudo cheira mal como se estivesse podre” e nas “rotundas há rosas lindas”. Onde há uma equipa de boxe feminina e “as burqas estão sempre à mão”.
O que é que cresceu nesta viagem? Num país onde há sítios “onde tudo parece possível, até a paz”.
A realidade. Pessoas que são o Tareq, o Rameen, a Shaharzad, a Sofia. Lugares que se chamam Cabul mas também Band-e-Amir, e já tinham poetas quando os portugueses ainda estavam a tentar descobrir o mundo. Cada história é um país, mas para a ouvir temos de chegar perto.
O seu livro é um relato de medo e de coragem? Uma vez, acorda com tiros na parede atrás da cama. Em Kandahar escreve: “O que estou aqui a fazer? É como se o céu a todo o momento fosse explodir”.
Não há viagem sem medo. Avançamos contra o medo, escrevemos num caderno contra o medo, e é contra o medo que nos aproximamos das pessoas. Há medo quando não sabemos se somos o alvo, ou pior, quando o alvo é completamente arbitrário. Deixa de haver medo quando nos sentimos em casa. Na primeira noite em Kandahar, não conhecia ninguém, não sabia em quem confiar, não havia uma única mulher. Dois dias depois já não me queria vir embora.
E escrevi isto: “Rebentamentos e helicópteros Apache, mas crianças a tomar banho no braço do rio. Porque não? Está calor. E tudo aqui é tão menos assustador por ser a vida de todos os dias. Cabul parece perigoso visto da Europa, depois Kandahar parece perigoso visto de Cabul, depois Arghandab parece perigoso visto de Kandahar. E no fim de tudo há sempre homens que vendem bebidas de lata ou têm pomares, homens e crianças descalças a tentarem viver num país sacudido por 30 anos de guerra fria e quente.”
A burqa impossibilita as mulheres “de verem o mundo olhos nos olhos”; e “há quem prefira deixar morrer uma mulher a levá-la a um médico”. Como é que conseguiu largar os preconceitos ocidentais e imergir na sociedade afegã?
A burqa, e sobretudo preferir deixar morrer uma mulher a levá-la ao médico, não são matéria que entre no campo dos preconceitos ocidentais, são matéria de direitos humanos. São uma violência, no caso das mulheres impedidas de ir ao médico, uma violência extrema, mortal. Não há relativismo possível aqui.
Um viajante é sempre ele a sua circunstância. Porque é antes de mais curioso, o viajante observa, regista, tenta ver o mais possível, entender o melhor que pode antes do julgamento. Essas são as matérias relativas. Depois, há matérias não relativas, o direito à vida, o direito à dignidade.
Fala menos dos mortos, mutilados, refugiados. Fala mais das pessoas de todos os dias. Estranhamente, parece que a vida continua, apesar da guerra de três décadas.
Há muitos mortos neste livro, e um capítulo inteiro com mutilados que perderam uma ou duas pernas, e um capítulo inteiro com refugiados. E ao longo de todo o livro passam outros mortos, outros mutilados, outros refugiados. Tudo isso é a vida de todos os dias, entre os que estão tão intactos quanto possível, estudantes, atletas, bordadeiras, soldados, polícias, professores, pintores, calígrafos, jornalistas, deputadas, médicas, parteiras, jardineiros. Tudo se mistura, porque é a cada minuto que um inteiramente vivo pode perder a vida. A fronteira é um fio.
O livro tem os cheiros do Afeganistão. A matéria fecal e a rosas. O que é que as rosas representam?
As rosas são o que não se vê daqui mas também está lá. Tudo é um todo, uma coisa não deixa de o ser por estar diante do seu contrário.
Publicado originalmente na revista Máxima