Sofia Pinto Coelho
“As Extraordinárias Aventuras da Justiça Portuguesa” é um livro que põe o dedo numa ferida aberta: o estado da Justiça em Portugal. A autora, a jornalista Sofia Pinto Coelho, especialista em temas de Justiça e Direito, acompanhou a maioria dos casos abordados no livro. São histórias que parecem “insólitas, estranhas, até surreais, mas são verídicas”. O retrato impressiona.
Temos um sistema de Justiça em que uma pessoa talvez seja melhor tratada se põe uma gravata. Em que "as sentenças podem ser cómicas, absurdas, iníquas". Em que a margem de arbitrariedade é grande. Apesar disso, pensa que a Justiça portuguesa é respeitada?
Creio que, ainda assim, é respeitada pois há muitas pessoas sérias e competentes a trabalhar nos tribunais. O problema é se o “nosso” processo calha a um tribunal caótico ou a um juiz disparatado. É esta “roleta russa” que torna a justiça portuguesa assustadora.
Ninguém estranha quando, ao falar de Justiça, se fala de labirinto burocrático, máquina trituradora ou lentidão aterradora. Como contrariar a indiferença e a descrença que se vão generalizando?
É difícil. Enquanto no domínio da saúde ou da educação vão surgindo organizações que protestam, na área da justiça “cada caso é um caso” e, por isso, não existe associativismo. Porém, não podemos abdicar da exigência cívica e acredito que cada um de nós, na sua esfera de influência, tem um papel a desempenhar, nem que seja gritar alto e bom som que o país precisa desesperadamente de uma Justiça segura e eficaz.
Cita casos inverosímeis. Como o processo de dois anos por causa de um queijo fatiado no valor de 1 euro e 29 cêntimos. Como o do procurador que vendeu bilhetes para o concerto de Madonna por 450 euros quando os tinha comprado por 60 euros. Estas histórias são para rir, ou dão um quadro tão negro que só podemos chorar?
Algumas histórias, de facto, fazem rir mas, quando vemos o efeito trágico que podem ter na vida das pessoas, esse sorriso desvanece-se. A Justiça é um assunto muito sério. Um dos principais motivos pelos quais temos tanta corrupção, tráfico de influências, nepotismo e laxismo em Portugal é precisamente por causa de a Justiça, durante as últimas décadas, não ter feito devidamente o seu trabalho.
Refere na introdução ao livro que em Portugal acabamos por nos tornar reféns da Justiça. São uns mais reféns do que outros?
Acho que sim. Em Portugal, os mais ricos, como as grandes empresas, já nem recorrem aos tribunais – vão para a justiça arbitral, onde se contratam peritos para fazer o papel de juízes. Preferem pagar mais caro, mas ter uma decisão a tempo e horas. Para os outros, resta rezar para que o processo se “despache”. Assim se percebe como a Justiça bloqueia a economia, pois ninguém quer fazer negócios num país onde é praticamente impossível cobrar uma dívida, despejar um inquilino ou despedir alguém em tempo útil.
Nunca se falou tanto do estado da Justiça, mas reina o sentimento de que nem vale a pena mexer nela. Vale? Como contornar as dificuldades, confiar nela, fazer implodir o edifício e erguer um novo?
De facto, é um pouco como aqueles edifícios horrendos, com 20 andares, em que dá vontade de lançar uma bomba e construir tudo de novo. O problema é o que fazer às pessoas que moram lá dentro... Já se percebeu que as corporações – de juízes, procuradores, advogados e funcionários – não farão a sua “auto-reforma”. Por outro lado, o poder político - ministro e deputados – sempre se alhearam do funcionamento dos tribunais. Talvez só se consiga a mudança no dia em que os responsáveis políticos forem eleitos através de círculos uninominais (e aí poderem ser responsabilizados individualmente), o ministro da Justiça for responsabilizado quando algum caso prescrever, for adiado por motivos fúteis ou tiver de ser repetido por causa da avaria na gravação do som e quando os magistrados forem mais penalizados pelas decisões absurdas que tomarem.
Publicado originalmente na revista Máxima