Em Budapeste, c/ Chico Buarque
Vanda perguntara-lhe dias antes: «Budapeste?, e o que tem para fazer em Budapeste? Era difícil responder. Olhar o Danúbio?, tomar licores?, ouvir poetas?». Vanda preferiu Londres, e José Costa, que na minha imaginação tem os olhos aquosos de Chico Buarque, meteu-se num avião para ver que Budapeste é amarela, o Danúbio é de chumbo e não azul, beber Tokaj com foie gras de ganso, ouvir poetas de palavras impenetráveis. Há um momento em que José Costa se interroga: «O que estaria fazendo a Vanda àquela hora em Londres?». Eu adapto a interrogação: «O que estaria fazendo Chico Buarque, àquela hora, no Rio de Janeiro, ou num outro lugar que não posso saber qual é?».
Estou em Budapeste e, como Chico Buarque, não sei dizer em húngaro obrigada, ou bom dia, ou deixe-me entrar nos banhos mesmo que as seis já tenham passado. Chico, ao que consta, nunca esteve em Budapeste, mas escreveu um romance de histórias caleidoscópicas que cruzam o mapa sensorial do Rio de Janeiro e de Budapeste. Antes de o ler, eu imaginei que o livro falasse da cidade como uma Paris do centro-Europa, que percorresse as avenidas principais, que olhasse de perto a vida de todos os dias. Procurava o ângulo de Chico, poeta do “cotidiano”, na cidade. Mas este é um livro onde nos dizem que se aprende uma língua e um sentimento em simultâneo, ou que se desaprende uma língua quando se extingue um sentimento. Mais do que Budapeste, é a língua húngara que serve de suporte a esta ideia.
Se Chico tivesse estado em Budapeste, perceberia como os banhos, as dezenas de piscinas termais, de águas cálidas e cheiro levemente sulfuroso, denotam a influência turca. Os mais famosos são os Gellért. Mas não se fala dos banhos no livro.
Eu frequento os Gellért porque fico nesse hotel e não tenho tempo para experimentar as diferentes temperaturas da cidade. A edição que leio é a brasileira, comprada na livraria Argumento, uma que dizem que Chico frequenta, e que eu frequentei quando estive no Rio. De que é que serviria ver Chico na Argumento? Isso não me faria aceder ao pensamento de Chico, à imaginação de Chico... Mesmo que ele falasse comigo, você se importa de chegar para lá?, isso não faria com que eu conhecesse os caminhos íntimos e silenciosos das suas palavras. E contudo, inventaria um Chico para mim, como ele inventou Budapeste.
Como se lê neste romance babélico, os outros são razoavelmente opacos para nós. Para não dizer completamente. Como a língua húngara, que é imperscrutável. Budapeste é o lugar-metáfora escolhido pelo autor brasileiro para falar desse mistério.
A capa do meu livro é cor de mostarda, como a capa de «O Ginógrafo», um livro que aparece dentro do livro, assinado por José Costa, o protagonista, ghost-writter de profissão. Uma história dentro de uma história, uma sobreposição de enredos e palavras. Como as matrioskas que se encontram no mercado: umas dentro das outras, cada vez mais miúdas, e minuciosas, até, imaginariamente, se reduzirem a um ponto só.
Entro no banho com o livro-mostarda nas mãos. Procuro uma das bordas, sento-me, sinto a água pelos ombros. Estico os braços e tapo a cara com «Budapeste». A minha expressão passa a ser tão impermeável quanto a língua húngara, (é um mau adjectivo porque “escrevo” do banho...). Avanço na leitura: «Houve um tempo em que, se tivesse de optar entre duas cegueiras, escolheria ser cego ao esplendor do mar, às montanhas, ao pôr do sol no Rio de Janeiro, para ter olhos de ler o que há de belo, em letras negras sobre fundo branco. Ia ao cinema, mulheres extraordinárias se exibiam na tela, o filme era falado em língua conhecida, e eu não conseguia despregar os olhos das legendas».
A tarde corre devagar, não consigo despregar os olhos das palavras. O banho não me faz sentido sem o livro-mostarda. «Pouco importava que todos os húngaros me olhassem com aquele olho de peixe», que incompreendessem o meu gesto. Conversam entre si, descem as pálpebras, depositam o olhar no vazio, amolecem até ficarem com a pele engelhada, como as folhas do livro depois do banho.
No segundo dia troco a piscina da esquerda pela da direita, invade-me um imenso torpor. A primeira tem uma água morna, 36 graus; a outra, tem mais dois graus que fazem com que o suor escorra pelas têmporas e pelo pescoço. A minha imaginação faz-me ouvir as gymnopédies de Eric Satie, que iriam bem com o espaço. Sinto-me “catatónica, com a perna bamba”, como numa canção do tempo em que Chico era apenas um poeta cantor. A melancolia contagia o ar e entranha-se nas narinas. A melancolia tem cheiro: um cheio de vapor de água e conversas que ecoam no tecto.
À entrada, o empregado avisara: homens de um lado, mulheres do outro, e é normal que fiquem nus (daí a separação). «Eu queria protestar, mas nem sequer sabia dizer não em húngaro». Eu não queria ver os corpos nus de pessoas que não conheço!, não queria entrar no balneário e ver uma menina de peito ao léu a secar o cabelo, não queria ver uma senhora parecida com a minha avó com a carne pendente, outra muito farta e branca, tão branca, a passear-se sobre o chão de mosaicos.
Ocorre-me pela primeira vez que talvez tenha sido por isso que Chico recusou aquilo que é inevitável em Budapeste: o postal turístico das pessoas que jogam xadrez nos banhos públicos, com o tabuleiro a vaguear entre elas. Porque há um lado inaceitavelmente impúdico no modo como estão em público. (Mesmo quando estão nas piscinas “mistas”, que, no Gellért, funcionam como um corredor central. Mas estas piscinas são para nadar, e, já agora, sempre na mesma direcção).
Num outro ponto do livro, Chico fala do par atracado contra um álamo. Também o autor do guia Lonely Planet fala dessa fama que precede os húngaros: de serem especialmente soltos na manifestação da líbido, de não conhecerem o significado da palavra decoro quando expressam em público o seu sentimento e desejo.
«Custei a aprender que para conhecer uma cidade, melhor que percorrê-la em ônibus de dois andares é se fechar num aposento dentro dela». Chico acreditará nisto e mostrou que é tão válida, ou mais, a cidade inventada dentro de um aposento, como aquela que é vista num autocarro de dois andares. Porém, eu fiz a viagem no autocarro de dois andares e gostei de percorrer as bissetrizes da cidade. Se eu conhecesse Chico, contar-lhe-ia que Budapeste tem uma identidade múltipla que não coincide com a imagem antiga de uma cidade «cortada por um rio, o Danúbio».
Aterrei em Budapeste induzida por frases que aprendi na escola: de um lado Buda, do outro Peste, dois mundos distintos, e o rio como fronteira. Mas a diversidade de faces de Budapeste é surpreendente. «Atravessei a ponte pênsil em ritmo de jogging, (...) admirei rapidamente as fachadas neo-clássicas, os balcões art nouveau, na terceira esquina respirei tabaco, chocolate, cebola». Eu comi foie gras no Gundel, goulash num restaurante de esquina — o que é que Kriska, a musa do romance, serve ao jantar? Chico fala apenas de queijos e Tokaj postos numa cesta, para uma tarde de namoro na ilha Margit. E a referência aos queijos, sendo francesa e certa, não condiz exactamente com o que se vê nas montras e no mercado.
No mercado compra-se paprika, salame, cebolas, alhos, toalhas de uma renda copiada da espuma do mar, às vezes com cores, e túnicas folclóricas com bordados.
Surpreendeu-me que as empregadas do café Gerbeaud, jóia da coroa, forrada a veludos e dourados, usassem uma saia aciganada e umas sandálias que naquele contexto resultam imbecis. (As sandálias são ainda mais despropositadas que o uso de “imbecil” aplicado a sandálias.) Estavam entre o ortopédico e o mendicante, e reconheço-as de imagens campónias da vizinha Áustria.
A côrte austríaca legou um estilo pomposo, uma pastelaria decorativa, sandálias saloias e edifícios secessionistas, preciosidades que remontam ao início do século XX, de uma modernidade explosiva. O grupo da Secessão, que integrava Klimt, Otto Wagner ou Adolf Loos, impôs um estilo que alastrou a outros pontos do império. Custa a crer que até há menos de cem anos, o mapa geográfico e político unia as duas cidades. Mas em ambas os vestígios desse tempo são ainda claros.
Nesse passeio em autocarro de dois andares, reconheço também o quarteirão judeu, imensamente livre, a influência cigana no velho que toca “Lili Marlene” ou “Dr. Jivago”. O velho arrasta-se pelas esplanadas, com o violino e chapéu estendido. Traz-me à memória a composição do grupo que animava o Gundel, com violino, cello, sopros. E há marcas do comunismo nos edifícios. Daí a dois dias seriam as comemorações dos 50 anos da Revolução Húngara, a cidade estava cheia de bandeiras. Nessa manhã, ao pequeno almoço, encontrei Teresa e o seu amigo mais antigo, emigrantes nos Estados Unidos desde os anos 60, que voltavam para celebrar aquela vitória-derrota: ambos participaram na manifestação de 1956.
No outro lado do rio fica Buda e o hotel Plaza de Zsose Kósta — ou Kósta Zsose, porque em húngaro o nome de família precede o nome próprio. No meu hotel, sito na rua Bartók Bela, dizem-me que não existe tal hotel, apesar de todas as cidades terem um hotel Plaza (escreve Chico). Buarque Chico: a maneira mais fácil de distinguir um lado do outro é que em Buda há colinas e o palácio real, e em Peste uma planura sem fim. Kriska, a amada de Kósta, vive em Peste, e dá peripatéticas aulas de húngaro: dá nome a coisas como «rua, patins, noite, arco bizantino, rio». Na gaveta de Vanda, a mulher brasileira de José Costa há «grampos, tachinhas, elásticos, uma lima de unhas, uma tampa de caneta e um porta joias contendo um dente de leite». Para que serve esta enunciação? Para nada, a não ser apresentar fragmentos destas personagens e das suas vidas. A partir destes pedaços de terra, podemos construir um reino.
Gosto de reconhecer palavras antigas de Chico no livro que ele escreveu em 2003 e que eu leio em Budapeste, agora. Palavras como “caçoar” («te vi pelo salão, a caçoar de mim»), “tinhosa” ou “estrambótica” que já ninguém usa, ou declarações de amor como: «As melhores palavras que sei emanaram de ti, devem a ti seu vigor e sua beleza. Será somente teu o meu verbo, dedicar-te-ei meus dias e minhas noites». Persigo Chico e a sua escrita caligráfica. Na esperança de descobrir a última boneca da sucessão de matrioskas: a chave do seu vocabulário, a decifração do seu enigma. Orson Welles chamou a isto Rosebud em Citizen Kane.
Regresso ao hotel e atravesso a ponte guardada por leões sem língua. «Por sorte me restavam os sonhos, e em sonhos eu estava sempre numa ponte do Danúbio, às horas mortas, a fitar suas águas cor de chumbo. E soltava os pés do chão, e balançava de barriga sobre o parapeito, feliz da vida por saber que poderia, a qualquer momento, dar à minha história um desfecho que ninguém previra». É tentador sentir que somos autores da nossa narrativa... Que podemos pular, e ninguém o pode prever, adivinhar as palavras daquele ínfimo instante. Chico Buarque, o ginógrafo (aquele que escreve sobre o corpo de uma mulher), decide não pular e termina ambos os livros («Budapeste» e «O Ginógrafo») com a mesma frase: «E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa».
Publicado originalmente no Diário de Notícias