João Miguel Tavares (sobre Portugal)
João Miguel Tavares nasceu em 1973. É jornalista. Escreve na Time Out e no Público e é membro do programa da TSF e da TVI Governo Sombra. Editou, com ilustrações de Nuno Saraiva, o livro A crise explicada às crianças (há uma versão para crianças de esquerda e outra para crianças de direita). Vítor Gaspar fez a apresentação.
Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?
Se admitirmos que faz sentido falar de uma coisa tão abstracta como "os portugueses", diria que a descrição não está mal. Aliás, para se chegar a ditador e ficar lá tanto tempo tem de se compreender bem a psique de um país. A parte de “falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção” pode hoje em dia ser corroborada por vários estudos económicos. A nossa falta de produtividade é exactamente isso. Não é não trabalhar (as pessoas trabalham imenso), mas trabalhar mal e concretizar pouco. No país como no futebol, nunca abundaram os pontas-de-lança. Somos muito brinca na areia.
Discorda de algum traço mencionado?
Tenho problemas com a palavra “individualista”. Não a usaria para nos caracterizar como povo. Somos profundamente comunitários, a família tem muita força, achamos que o Estado é o papá de todos nós e metemos cunhas em barda. De individualismo, isto não tem nada.
Cresceu em democracia. Tem uma boa definição para democracia?
A clássica definição churchilliana – “a democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros que já foram tentados” – parece-me bastante exacta. A democracia, como infelizmente temos vindo a perceber desde 1974, nem sempre é capaz de promover a competência. Mas tem uma qualidade inestimável: é excelente a remover a incompetência. A democracia portuguesa raramente me permitiu eleger um bom primeiro-ministro, mas permitiu-me muitas vezes correr de lá (às vezes demasiado tarde, é certo) com os maus. E isso não tem preço.
A democracia é de equilíbrio periclitante em tempo de crise?
Depende dos países e das épocas. No Portugal de 2012, quero acreditar que não. Mas para haver uma democracia saudável é preciso muito mais do que o voto universal. Há questões com a da liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, a separação de poderes e o chamado sistema de pesos e contrapesos que devem ser permanentemente avaliados. E nesse aspecto, nós não só temos ainda um longo caminho de aperfeiçoamento, como me atrevo a dizer que, se calhar, há 15 ou 20 anos, já fomos mais democráticos do que somos hoje em dia.
Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?
Que somos bons quando encostados à parede. Que à beira do abismo não costumamos seguir a opção grega – que é saltar. Que nos anos 70 conseguimos o milagre de acolher entre meio milhão e um milhão de retornados das ex-colónias sem a destruição do nosso tecido social – milagre esse só possível graças a muita generosidade. Que aquilo que são os nossos maiores defeitos – a cunha, o favorzinho, o clientelismo – é a face negra de uma enorme qualidade: a capacidade de nos preocuparmos com os outros, de não virarmos a cara quando alguém precisa de nós. Portugal é como o Incrível Hulk.
Hulk?
Se se conseguir pôr a sua força ao serviço do bem, pode ir longe. Mas claro que convencer o Hulk a portar-se bem é tramadíssimo.
Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?
Tenho esta: não existem ideias miraculosas para salvar a pátria. Citando, tal qual Jorge Silva Carvalho, "O Panda do Kung Fu": “O ingrediente secreto é... nada!” O ingrediente secreto não existe.
O Zé Povinho continua a ser uma boa imagem do que somos?
Na parte do manguito, sim. Na parte capilar, não. E em termos de guarda-roupa também já evoluímos muitíssimo.
Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody’s? Faria manguitos a quem?
Fazer um manguito à Moody's é como perder o campeonato e dizer que a culpa foi do árbitro. É verdade que os árbitros erram, e admito perfeitamente que as agências de rating já devessem ter sido irradiadas. Mas não foram, e o nosso papel é jogar à bola e não protestar com o árbitro. Apesar de tudo, acredito que a Moody's é mais competente em 2012 do que era em 2008. E manguito por manguito, antes aos políticos que nos governaram. Eles é que lá estavam enquanto o país comia mais do que aquilo que podia pagar.
Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...
De facto, a História não é muito generosa quanto às nossas capacidades governativas. Eu diria que a culpa é do Sol. Deus, quando fez o mundo, perguntou aos povos: “Queres ter sol nove meses por ano e praias fantásticas ou queres ser bem governado?” Nós, e muitos outros, ficámos com o sol e as praias. Os outros ficaram com uns sistemas sociais incríveis nuns sítios em que faz um frio do caraças. Devo dizer que não estou inteiramente certo de que os noruegueses tinham escolhido a melhor opção.
Como é que o ser português aparece no que faz?
Tento mostrá-lo o mais possível socialmente e o menos possível profissionalmente. Quando estamos de férias ou numa festa a beber copos, convém notar que os alemães gostavam de ser como nós: divertidos, extrovertidos, com fama de sermos bons na cama. O nosso problema é mesmo das nove às cinco. Das cinco às nove somos os maiores.
Portugal é o país do desenrasca. Você é adepto do desenrasca?
Eu tento não ter de chegar à parte do desenrasca. Sou um adepto do não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. Mas também é verdade que quando estamos mesmo, mesmo enrascados, é fantástico viver num país do desenrasca. O excesso de formalidade e o escrupuloso cumprimento de todas as regras dá tanto cabo de mim como o deixa andar.
Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?
Sempre. Eternamente. A nossa vida não é um conto de fadas, mas tem sempre a estrutura de um conto de fadas. Nós somos os meninos perdidos numa floresta, confrontados com uma bruxa má (em 2012 é a senhora Merkel) e à espera de ser salvos por uma fada (em Junho de 2012 é o senhor Hollande).
A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?
Os verdadeiros ateus diriam que o conceito de culpa é uma coisa judaico-cristã que anda há milénios a lixar-nos a vida. Como eu sou um ateu muito cristão ou um cristão muito ateu (ainda não me decidi), acho que o sentimento de culpa é uma coisa importante para sermos pessoas mais decentes, e acho ainda, biblicamente falando, que a procura da culpa deve começar sempre por nós.
Isso não é comum entre os portugueses…
Perguntava Mateus e muito bem: “Porque vês tu o argueiro no olho do teu irmão e não vês a trave no teu olho?” Como português, prefiro procurar a culpa no meu país, em vez de dizer que a culpa é daqueles gajos que em última análise nos salvaram da bancarrota. Sim, o mercado financeiro está desregulado. Sim, o capitalismo selvagem tem de ser posto na ordem. Sim, os paraísos fiscais são a oficialização do banditismo. Mas na base de tudo está uma conta muito simples: nós vivemos cada vez mais anos, temos cada vez menos filhos e não conseguimos sustentar o nosso modo de vida. Pedro Abrunhosa, com a sabedoria que se lhe reconhece, compreendeu tudo ainda nos anos 90: “E eu e tu o que é que temos de fazer? Talvez f...”. As pessoas deviam levar o seu conselho à letra.
Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2012