Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

João Galamba (s/ Portugal)

18.07.13

João Galamba nasceu em 1976. Licenciou-se em Economia na Universidade Nova. Estudou na London School of Economics, é doutorando em Filosofia Política. É deputado independente pelo PS. Escreve no blogue Jugular.

  

Os portugueses "são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção". Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

Acho que nunca fomos assim, porque os povos não têm uma essência, nem uma “alma” comum. Há certamente portugueses que se enquadram nessa definição, e Salazar, por razões evidentes, gostava, ou melhor: precisava, de os imaginar todos assim.

 

No Discurso do Declínio dos Povos Ibéricos, Antero de Quental fala de um "conservadorismo religioso que sufocou o pensamento inventivo". Fala de submissão e resignação. Diz que a abundância dos Descobrimentos não nos ensinou a lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto. Mutatis mutandis, estas são ainda razões do nosso declínio?

Dizer que essa é a razão do nosso declínio pressupõe que estamos em declínio e que a nossa grandeza está no passado. Essa é uma visão mítica sobre a nossa história e sobre os portugueses que, até por não ser verdadeira, temos a obrigação de ultrapassar. A nossa história , no que tem de bom e de mau, não nos limita, responsabiliza-nos colectivamente. É um desafio, não um fado. O optimismo é – deve ser – um pressuposto de toda a acção, individual e colectiva.

 

Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?

A suposta grandeza perdida, que só pode ser redimida por uma esperança sempre adiada e que nenhum presente pode satisfazer é uma neurose que gera impotência. É uma forma de infantilização e de fuga às nossas responsabilidades.  O futuro não vem, faz-se.

 

O Zé Povinho continua a ser uma boa imagem do que somos?

Não sei se alguma vez foi. Todas as imagens são simultaneamente fiéis e, necessariamente, incompletas. Um povo é, também, a capacidade permanente de se reinventar enquanto povo. Um povo é o que fez e o que vai fazendo, sem nunca se reduzir a uma imagem cristalizada. O futuro nunca é apenas uma versão do passado. Esse é, podemos dizê-lo, o fardo da nossa liberdade.

 

Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody's? Faria manguitos a quem?

A todos aqueles que insistem em moralizar esta crise e invocar desvios comportamentais como variáveis explicativas – a preguiça, alegados traços mediterrânicos, etc. A moralização da crise é uma nova forma de racismo. Se não for combatida, esta moralização dos comportamentos vai destruir o projecto europeu, porque é incompatível com qualquer ideia de solidaridade.

 

"Em Portugal a aventura termina na pastelaria", frase famosa de Alexandre O'Neill. É forçosamente assim? Quando é que a sua aventura acaba na pastelaria? Quando é que foi além da pastelaria?

Essa frase é sobre um país que já não existe. A pastelaria, hoje, é apenas um sítio onde se bebe galões.

 

Provavelmente é muito novo para se lembrar do FMI em Portugal no começo dos anos 80 . O que lhe contaram da crise tem alguma semelhança com a crise que estamos a viver?

Todas as crises são diferentes. Esta, por transcender o espaço nacional, é necessariamente diferente. Infelizmente, tem-nos sido apresentada como uma versão adicional das anteriores, o que não é verdade. Esta crise só tem paralelo com a Grande Depressão e não é, de modo algum, uma crise portuguesa.

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

Depende dos números que escolhemos e do modo como contextualizamos esses números na história de um país. Vivemos quase 50 anos em ditadura e isso não pode ser desvalorizado. Um país que, em menos de 40 anos, conseguiu educar e qualificar grande parte da sua população tem de ser considerado um caso de sucesso. Os portugueses têm o direito de exigir condições e recursos para continuar o seu projecto de desenvolvimento. E a Europa, se pretender continuar a ser um projecto político entre iguais, tem o dever de reconhecê-lo. Não é um favor que nos faz, é um favor que faz a si mesma.

 

Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?

O conjunto de instituições que, a nível nacional, tornaram a democracia possível tem de ser recriado a nível europeu. Não é uma solução miraculosa, é apenas bom senso. Se, em nome do euro, Portugal tem de limitar a sua soberania orçamental, então a zona euro tem de ter um orçamento que assuma funções que antes eram dos Estados. A soberania orçamental é um pilar da democracia. Se a limitamos nos Estados nacionais, temos forçosamente de a recriar a nível europeu. A soberania não se elimina, transforma-se, reconstrói-se. Este princípio é essencial para que o projecto europeu não seja feito contra a democracia.

 

Cresceu em democracia. Tem uma boa definição para democracia?

É a forma como institucionalizamos, através da acção, a nossa responsabilidade por um futuro colectivo. A essência da democracia é – tem de ser – a construção e o exercício permanente dessa liberdade e dessa responsabilidade.

 

A democracia é de equilíbrio periclitante em tempo de crise?

Se a política não for capaz de representar os interesses dos eleitores nem responder de forma adequada às suas necessidades, sim. Esta crise é particularmente grave porque as soluções são praticamente todas europeias, ao mesmo tempo que não existe um executivo europeu que possa agir e cujas políticas possam ser avaliadas pelos eleitores. Esta disfunção – governos nacionais acabam por ser penalizados por decisões que os transcendem – é uma ameaça à democracia.

 

Porquê?

Porque subverte a relação entre representantes e representados. A democratização dos processos de decisão europeus é uma “reforma estrutural”  essencial para a legitimidade do projecto europeu e para a requalificação da democracia.

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

Rejeito esse tipo de explicações. Esse é o expediente dos reaccionários para desvalorizar a democracia e justificar o paternalismo.  Governar não é controlar e gerir um carácter de um povo.  Porque o povo, em democracia, é actor, é o soberano, não é um objecto de dominação. Não cabe à política “tratar” e “disciplinar” o povo.

 

Somos dados à flagelação. Hetero-flagelação, bem entendido. Em que situações é capaz de fazer uma auto-flagelação?

Alguns, certamente. Há quem insista em reproduzir uma visão tacanha e achincalhante dos portugueses. É uma forma de menoridade auto-inflingida. Ou melhor: hetero-inflingida, porque quem se dedica à flagelação dos portugueses normalmente deixa-se de fora da realidade que está a julgar. Há portugueses que, infelizmente, se especializaram neste ofício e insistem em cultivar uma relação patológica com o seu país.  É uma triste e parasitária forma de auto-comprazimento.

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

A culpa é um conceito moral que não é para aqui chamado. Dizer que temos de reformar a arquitectura institucional da zona euro não é culpar a Europa, é identificar um problema que cabe aos europeus, colectivamente, resolver. A culpabilização paralisa e bloqueia a acção política.

 

 

Publicado no Jornal de Negócios no Verão de 2012