Marta Castello Branco
Marta Castello-Branco é brasileira. Viveu cerca de 30 anos nos Estados Unidos, 24 dos quais a trabalhar no FMI. É economista e professora universitária. Vive em Portugal há quase dois anos.
Nem há um ano que está cá. Ainda vive a comparar Portugal com outros sítios onde viveu?
De uma forma geral, nós, os expatriados, temos que fazer um esforço para evitar uma postura demasiadamente crítica do lugar onde vivemos temporariamente. É tentador fazer uma comparação com outros lugares onde já vivemos, e concentrarmo-nos no melhor de cada lugar. Mas as coisas sempre vêm em pacotes. Seria bom ter a eficiência americana conjugada com a pontualidade britânica, com a alegria dos brasileiros, com a simpatia dos portugueses... A realidade não é bem assim.
Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?
Várias das pessoas que conheci nos meus oito meses de Portugal invalidariam este diagnóstico negativo. Com base nas minhas impressões até agora, me parece que a questão é que em Portugal há uma elite que é eficiente, educada, empreendedora; e os demais, que se encaixam num modelo de baixa produtividade, falta de iniciativa e pouca disciplina, principalmente se comparados a sociedades altamente produtivas como a americana.
Ainda que tenha trabalhado, mais do que tudo, nos Estados Unidos, é brasileira. Em alguns aspectos, a cultura brasileira está mais próxima da portuguesa do que da americana... Quer apontar exemplos?
Devo confessar que, apesar se ser brasileira, a falta de disciplina me incomoda em qualquer lugar. Para mim, é também uma questão de respeito pelos outros. É uma coisa muito importante, e mesmo reveladora do grau de desenvolvimento de uma sociedade. A atitude agressiva no trânsito seria um exemplo de comportamento indiciplinado e desrespeitoso; a falta de pontualidade, outro exemplo.
Tem ideias miraculosas para salvar a Pátria?
Se ideias miraculosas existissem, alguém já estaria ganhando dinheiro com elas! Eu acredito nas soluções de mercado, e portanto penso que a única alternativa para lidar com a crise é aumentar a produtividade da economia portuguesa. Não é uma solução de curto prazo, evidentemente. Mas no caso de Portugal – uma economia pequena dentro de uma união monetária – não há outra solução. No entanto, a História sugere que Portugal está sempre esperando por alguma solução “miraculosa” de fora. Seja o ouro do Brasil, seja os fundos estruturais da UE. Quando, na realidade, a solução deve ser encontrada aqui mesmo. Capacidade, há.
Portugal é o país do desenrasca. Você é adepto do desenrasca?
Se o desenrasca é algo parecido com o jeitinho brasileiro, sou contra. Esta estória de se achar que sempre se dá um jeito, que se arranja uma solução criativa de última hora, para mim é uma perda de tempo. Pode ser charmoso, mas não leva a uma resolução dos problemas, e não constitui uma base sólida para o desenvolvimento social. O país precisa de soluções duradouras para problemas estruturais – não de jeitinho.
Temos uma veia sebastiânica inflamada? Continuamos à espera de alguém (que venha das brumas ou de outro lugar qualquer) para nos resolver a vida?
Esta é a impressão que tenho – a preferência pelas soluções externas, ao invés do investimento em soluções locais. A História provavelmente explica isto, esta tendência à passividade, esperando por Godot...
Na peça de Samuel Beckett, À espera de Godot, a espera é interminável. Godot nunca chega.
É. Mas temos que ter cuidado com as generalizações; as coisas mudam, e neste mundo globalizado a tendência é de maior harmonização com o resto do mundo. A situação externa não é nada favorável... A espera seria longa.
A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?
Eu sou muito pragmática. Acho melhor a gente se concentrar em encontrar soluções, ao invés de atribuir culpa a um grupo ou a outro. O importante é tocar a bola para a frente.
A democracia é de equilíbrio periclitante em tempo de crise?
Sim, na medida em que a crise exacerba as desigualdades sociais, abrindo espaço para discursos populistas e polarização política, e gerando intolerância e instabilidade social no processo. Os ganhos eleitorais da extrema-direita e extrema-esquerda em vários países europeus recentemente revelam um eleitorado frustrado com o desemprego crescente (sobretudo na faixa mais jovem) e com a incapacidade dos políticos de lidar com os desafios da globalização. Enquanto as grandes questões actuais são tipicamente problemas universais, os políticos insistem em buscar soluções locais de curto prazo, se apegando a um nacionalismo anacrónico. No final de contas, a crise actual vai servir como um teste para a sobrevivência do ‘welfare state’ nos países europeus.
Mas a crise parece, mais do que tudo, uma crise de raiz financeira.
A globalização das finanças também tem contribuído para uma instabilidade crescente. O facto de as perdas do sector financeiro serem constantemente “socializadas”, enquanto que os lucros do sector são sempre “privatizados”, causa (compreensivelmente) frustração e revolta, e com isto o perigo de desequilíbrio social. Não há solução fácil para a situação. Se os bancos quebram, nos levam junto... É injusto, sim, mas é a realidade da coisa.
O FMI, onde trabalhou 24 anos, esteve em Portugal no começo dos anos 80 . A crise de então tinha alguma semelhança com a crise que estamos a viver?
A semelhança tem a ver com a falta de reformas estruturais, que em ambos os casos explica o pouco crescimento e baixa produtividade da economia portuguesa. A crise dos anos 80 teve como pano de fundo uma alta dramática no preço do petróleo. O programa com o FMI daquela época foi um programa clássico, envolvendo empréstimos para financiar um deficit temporário na conta-corrente do balanço de pagamentos. A recuperação foi impressionante, devido não só à queda subsequente nos preços do petróleo, mas também à entrada de Portugal na UE, que constituiu um impulso muito favorável.
Passados 30 anos, continua a falar-se dos mesmos problemas... Ainda que a conjuntura seja outra.
A crise actual reflecte pouco progresso na implementação de reformas estruturais, baixo crescimento económico e baixa produtividade, agravados por gastos excessivos, em parte relacionados com as medidas [usadas] para combater a crise financeira de 2008/09. A crise agravou os desequilíbrios macroeconómicos existentes, levando a um aumento significativo da dívida pública e da vulnerabilidade da economia às crises de confiança nos mercados financeiros internacionais. O contexto internacional é bem mais difícil na situação presente, com a zona euro em crise permanente. E mais: ao contrário da crise dos 80, Portugal não pode usar uma desvalorização para aumentar sua competitividade, já que faz parte da união monetária.
Precisamos de ser mais organizados, mais empreendedores, mais produtivos. É possível?
Acredito que sim, e que a próxima geração já vai ser mais produtiva, empreendedora e eficiente como um grupo representativo da sociedade. Que vai saber aproveitar melhor a experiência dos outros países e copiar as ‘best practices’ em todas as áreas. Isto é fundamental para qualquer mudança no modelo de comportamento.
A sua leitura de Portugal é marcada pelo seu país de origem? Perguntado de outro modo: um alemão e um americano olham forçosamente de maneira diferente para este país?
A minha leitura de Portugal é informada pelo país onde morei a maior parte da minha vida – os EUA. Sou muito crítica dos EUA, mas só quando a gente sai do país percebe que a palavra do cidadão conta, e como consumidor ele é soberano! Não há necessidade de se assinar uma dúzia de papéis, de reconhecer firmas, etc. Em princípio, sua palavra vale.
Um exemplo da sua frustração em Portugal.
Durante o período de Natal ganhei uma garrafa de champanhe num sorteio do El Corte Inglês. Para pegar a garrafa, tive que passar uns 20 minutos esperando, enquanto dois funcionários examinavam minuciosamente os meus documentos e tiravam cópias dos mesmos. Nos EUA a transacção teria levado dois minutos, com a simples troca do bilhete premiado pela garrafa de champanhe. Agora sei de onde nós, brasileiros, herdamos o gosto pela burocracia!
Só não entendo como o mesmo povo que faz fila pacientemente para comprar pão e outras coisas se comporta de uma forma tão agressiva no trânsito. É mesmo freudiano.
O que é para si pertencer a um país?, ser "um dos nossos"?
Um expatriado é um peixe fora d’água, não ‘pertence’ a lugar nenhum. Como já vimos de tudo, sabemos quando uma coisa pode ser feita de maneira mais eficiente, menos onerosa, mais rápida. E aí bate a frustração. E a crítica.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012