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Anabela Mota Ribeiro

Onésimo Teotónio de Almeida (sobre Portugal)

24.07.13

Onésimo Teotónio de Almeida vive nos Estados Unidos. É doutorado em Filosofia na Brown University. É professor catedrático de Estudos Portugueses e Brasileiros e no Wayland Collegium for Liberal Learning da mesma universidade. Autor de duas dezenas de livros e centenas de artigos. Os seus livros mais recentes são De Marx a Darwin - a desconfiança das ideologias (Prémio Seeds of Science para Ciências Sociais e Humanidades); O Peso do Hífen. Ensaios sobre a Experiência Luso-Americana e Onésimo. Português Sem Filtro (crónicas).

 

Os portugueses “são excessivamente sentimentais, com horror à disciplina, individualistas, talvez sem dar por isso, falhos de espírito de continuidade e de tenacidade na acção”. Salazar, 1938. Continuamos a ser assim?

Esse “os” abre uma afirmação que na lógica se chama universal. Permite depois falácias do género: os portugueses são X. Tu és português, logo és X. Não é verdade que os portugueses sejam todos isso, mas é alta a incidência em Portugal de um tipo de comportamento que contrasta com o dos Povos do Norte da Europa (e de grande parte dos chineses e japoneses) e se assemelha muito ao dos mediterrânicos.

 

Falemos então dos tipos de comportamento. Quais são os traços mais constantes?

Acho mais correcto chamar “emotividade” e não “sentimentalidade”. E emotividade em contraste com frieza analítica (não diria “racionalidade” porque ela coexiste com a  emotividade). É mais comum no Norte da Europa encontrar-se o tipo de personalidade que analisa mais friamente, objectivamente, com distância, os problemas; que identifica as soluções e os passos necessários a dar e, com a mesma objectividade, passa a agir em conformidade de modo a obter os objectivos desejados. Mesmo que isso exija sacrifícios. Trata-se de pôr entre parêntesis prazeres a curto prazo que impedem o prazer maior que se obterá a longo prazo.

Tenho consciência de que acabei fazendo um pouco como o saudoso Millôr Fernandes naquela sua tirada célebre: “Os corruptos habitam todas as partes do mundo, quase todas no Brasil”.

 

Como o Zé Povinho, faria um manguito à Moody’s? Faria manguitos a quem?

O manguito é um exemplo de manifestação da emotividade não controlada. Dá o prazer impotente da masturbação (e até usa o braço!): conforta para dentro, alivia a tensão acumulada, mas não resolve nenhum problema. Além disso, a Moody’s nem sequer chega a sentir nada.

 

Somos um povo que não se sabe governar? Qual é o enguiço? Parece ser assim há séculos...

Acho que as pequenas amostras do comportamento das pessoas são o que melhor nos revela como se comportam colectivamente. Observe-se como um grupo de patrícios organiza algo tão simples como um passeio de grupo em dois ou três carros. Multiplicam-se as opiniões, expressas ao mesmo tempo e em tom de voz alto para ser ouvido no meio do barulho dos outros. Cada um achando que a sua sugestão sobre o trajecto será a melhor. Depois, o combinado entre todos acaba de um momento para o outro por ser completamente alterado ao menor pretexto e as combinações iniciais vão-se todas por água ao baixo. De um momento para o outro, está-se de novo na estaca zero.

 

A culpa é dos políticos?, a culpa é das elites?, a culpa é de quem se endivida e trabalha pouco? A culpa é da Europa?, a culpa é da desregulação do sistema financeiro? A culpa não é de ninguém e vai morrer solteira?

Não é exclusivamente português o hábito de se atribuir a culpa aos outros. Alguém sugeriu que quando se está a braços com um problema e uma pessoa está a sorrir, é porque ela encontrou já alguém em quem descarregar as culpas.

Em Portugal praticamos muito esse costume. Nunca a culpa é nossa. É como se fôssemos uns seres sem autonomia habituados a fazer tudo o que mandam os políticos e o Governo. E por isso, quando as coisas correm mal, as culpas pertencem-lhes exclusivamente. É uma auto-infantilização.

 

Porque é que não crescemos? Porque é que não rompemos o círculo?

Em Portugal como em qualquer país, os políticos, como toda a gente do país, partilham de hábitos mais ou menos comuns aos seus concidadãos. Quando chegam ao poder, não deixam esses hábitos à porta dos gabinetes ou da Assembleia da República. E um dos hábitos entre nós é culpar os políticos e o Governo. Por isso costumamos eleger os que melhor sabem criticá-los. Ganharam, aliás, notoriedade fazendo precisamente isso. Ao elegê-los, não o fazemos porque passaram um escrutínio e deram provas de saber fazer melhor. Quando lá chegam, passam para o papel de acusados. Os que entretanto saem do Governo vêm queixar-se e explicar as razões que os impediram de fazer o que quer que fosse. Claro que foi por culpa de X, Y, e Z.

É uma cultura excessivamente verbal e verbosa, acintosa, hipercrítica e que elege em heróis os que melhor se revelam nesse sector.

 

Qual é o tom dessa cultura verbal?

O escárnio e o maldizer entre nós são virtudes que vêm de longe. Quem toma uma atitude positiva, elogiando, acreditando na possibilidade de se alterar o estado de coisas é imediatamente apodado de ingénuo, pateta ou de simplesmente fazê-lo levado por ter interesses escondidos. Sei que estou a simplificar em demasia, no entanto creio que poderia encher umas quantas páginas a dar exemplos concretos de experiências em que me apoio para estas generalizações.

 

Somos dados à flagelação. Hetero-flagelação, bem entendido. Em que situações é capaz de fazer uma auto-flagelação?

Sim, somos. Aí Boaventura Sousa Santos, autor de um livro recente sobre a nossa autoflagelação, tem razão de sobra. Mas também somos dados a euforias irrealistas, como Eduardo Lourenço também apontou e muito bem. As duas manifestações são recorrentes e surgem na sua expressão exagerada de tempos a tempos. Quem se lembra dos anos de verdadeira euforia irrealista entre a Expo-98, o caso de Timor e o Euro-2004? Agora andamos no extremo oposto. Como acontece com as pessoas altamente emotivas, em colectivo as manifestações oscilam entre o excessivo entusiasmo e o pessimismo depressivo. Há também uma bipolaridade colectiva. E quem entra e sai no e do país não precisa de muita perspicácia para detectar estas alterações de humores.

 

No discursoCausas da Decadência dos Povos Peninsulares, Antero de Quental  fala de um “conservadorismo religioso que sufocou o pensamento inventivo”. Fala de submissão e resignação. Diz que a abundância dos Descobrimentos não nos ensinou a lidar com o dinheiro que resulta do trabalho honesto. Mutatis mutandis, estas são ainda razões do nosso declínio?

Tenho escrito muito sobre estas questões. Espero reunir alguns ensaios em volumes para os leitores interessados e com dificuldades de acesso a textos dispersos. O nosso declínio ainda é um mistério e creio que será sempre, porque é igualmente mistério a nossa ascensão em Quinhentos. Há pistas mais ou menos seguras, há elementos que ajudam a explicá-la. Todavia não creio que tenhamos as respostas todas. Se a história de um indivíduo é um problema, imagine-se a colectiva. Para mais, acontecida há 500 anos.

Não creio, porém, que tenhamos mudado assim tanto. Em Quinhentos um grupo de factores liderou um processo, mas não passou de uma relativa minoria, mesmo tendo sido grande o número de portugueses que abalou por esse mundo fora.

 

Os números não nos deixam ficar bem quando olhados de fora. O que é que diria a nosso favor?

Não, não deixam. Mas as pessoas esquecem-se que vivem num país que ainda goza de uma grande paz, que hoje usufruiu de uma grande liberdade, que as relações humanas, por mais complicadas e labirínticas que sejam, criaram uma extensa rede que se estende de familiares a amigos e enchem o quotidiano das pessoas de experiências afectivas potencialmente reconfortantes. Sim, o sol, o clima são também elementos magníficos do quotidiano. O país ainda tem inúmeros recantos lindíssimos. E as pessoas, por mais que hoje detestem a Europa, ainda gozam de tantos bens materiais e sociais que só foram tornados possíveis graças à Europa.

Já agora, regresso à emotividade: não conheço cultura nenhuma que termine e-mails com tantos beijinhos, abraços, forte-abraços, gandabraços. Tudo tem o seu lado positivo e negativo, dependendo do que queremos, do que escolhemos e do que praticamos. Porque uma coisa é certa: não se pode ter um bolo e comê-lo. As escolhas que contam são sobretudo as que fazemos não nas urnas de voto mas na nossa prática de vida diária.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012