Catarina Furtado (sobre Portugal)
Catarina Furtado nasceu em 1972. É apresentadora de televisão. Estudou dança em Lisboa e representação em Londres. Desde 2001 é embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas.
“O dinheiro não traz a felicidade. Manda buscar.” – Millôr Fernandes. O poder não dá felicidade. Mas manda buscar?
Há várias formas de exercer o poder e o que se manda buscar nem sempre é felicidade. Quando o poder se constrói a partir do ego e para o ego normalmente a felicidade fica reduzida à satisfação pessoal. Ou seja, o poder que se expande e afirma sem procurar também a felicidade dos outros não me interessa.
“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.” – Nelson Rodrigues. O que é que o dinheiro e o poder não compram?
Depende sempre das pessoas. Amor verdadeiro, seguramente. Passar entre os pingos da chuva e outras coisas que os meus pais bem me ensinaram, [também não].
“Se quiseres pôr à prova o carácter de um homem, dá-lhe poder.” – Abraham Lincoln. Isto equivale ao nosso: “Se queres ver o vilão, põe-lhe a vara na mão.”?
Não sou tão descrente. Concordo com Lincoln e acrescentaria que não valeria a pena correr o risco fazendo o teste a muitos homens. Às vezes está escrito no olhar. E acredito que seriam em muito menor número as mulheres que se tornariam vilãs.
“Usa o poder que tens. Se não o usares, ele prescreve.” – provérbio chinês. Só o poder formal prescreve? Que poderes não prescrevem?
O crer. Por isso se diz tantas vezes que "crer é poder". Felizmente também há poderes que prescrevem e passam à história. E a história diz-nos que alguns tiveram e têm efeitos devastadores.
“Mantém os amigos por perto; e os inimigos, mais perto ainda” – Don Corleone, “O Padrinho”. Conhece bem os seus amigos e inimigos?
Conheço bem os meus amigos e o que me deixam conhecer deles. Não quero conhecer os inimigos. Os que dão nas vistas como inimigos não os deixo cruzar o meu passeio.
“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente.” – Lord Acton. Porquê? Ter demasiado poder é inebriante? Provoca um desfasamento da realidade?
A inteligência também é inebriante, assim a possamos usar para manter os pés bem assentes no chão. Não acredito no poder absoluto, mas apostaria num qualquer poder que acabasse com a corrupção.
“Yes, we can” – Obama. Foi a força das palavras que elegeu o primeiro presidente afro-americano nos Estados Unidos?
Foi a força da diferença. Esta eleição trouxe na altura seguramente uma nova esperança até nas questões humanitárias. Espero que a força seja extensível a muitas outras nações, não no sentido de as separar, mas de as unir.
Quem é que tem poder em Portugal? Os banqueiros, os políticos, os artistas, a construção civil, as pessoas que aparecem na televisão?
O poder é da troika, uma palavra tão sedenta de audiência e resultados como quase todo o país. Tenho receio de que essa obsessão, como quase todas as obsessões pelas audiências, se transforme num país à parte.
Sem falsas modéstias, e partindo do princípio que, pelo menos no nosso quintal, todos temos poder: considera que é uma pessoa poderosa? Em que é que se baseia o seu poder?
O meu poder não se converte a partir de uma qualquer ilusão televisiva. É verdade que a palavra em televisão assume um carácter mais ambicioso, no sentido em que vende e alimenta muitas ilusões; mas eu procuro também acrescentar-lhe outros poderes que valorizo enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População.
Qual é o foco preferencial da sua acção?
Tentar ajudar a diminuir as desigualdades sociais, a mortalidade materna e neonatal, promover a maternidade segura, o planeamento familiar, a promoção das meninas e mulheres num mundo onde a desigualdade de género é ainda muito gritante nos países em desenvolvimento e camuflada em muitos países desenvolvidos.
O que é ter uma agenda poderosa? É ter o telemóvel de Fernando Ulrich? É ter andado na escola com o Paulo Portas? É ser convidado por Ricardo Salgado para um almoço na Comporta? É conhecer o primo da mulher do assessor do ministro que manda?
As agendas preenchem-se com acontecimentos e não só com pessoas. Alguns têm nomes e outros não.
Ter poder é mandar prender? É contratar, é despedir? É saber mais? É ter relações?
Ter poder é também não ter medo. Ser verdadeiramente poderoso é não ser permissível a influências tendo a capacidade de ouvir. É saber fintar a morte.
Marcelo Rebelo de Sousa/ Ricardo Araújo Pereira: qual deles tem mais poder?
É um poder simétrico.
Muito poder torna uma pessoa impopular? Embirramos com o chefe porque ele tem poder, porque invejamos o seu poder, porque insuportamos a maneira como exerce o poder?
O que torna ou pode tornar uma pessoa impopular é o abuso de poder, embora haja muita inveja criada a partir de preconceitos sobre o que se julga ser o exercício do poder. Há também quem sobrevalorize os seus atributos julgando que tem poder, mesmo quando ele se levanta a partir de trivialidades e situações efémeras.
A vaidade tem razões que a massa encefálica desconhece? É o desejo de reconhecimento, mais do que tudo, que instiga o desejo de poder?
O desejo de reconhecimento não é um pecado capital, pode ser uma força motriz, um sinal de que o trabalho feito produz resultados visíveis. Mas o reconhecimento que nasce pelo desejo de poder, nasce torto e dificilmente se endireita.
O desejo de poder é indissociável de úlceras, cabelos brancos, rugas na testa? Ser ambicioso ainda é pecado? Porque é que se aposta “naturalmente” a palavra “desmesurada” a ambição?
Tudo o que aparece como excessivo ou desmesurado tem uma conotação negativa. Mas a ambição na dose certa pode ser saudável e altruísta.
Quando é que o poder se torna perigoso? Quando se torna insaciável? Quando se alia à inteligência (e à competência) a falta de escrúpulos? Quando à embriaguez do status se associa a falta de bom senso?
Quando já não se consegue apertar os sapatos dos outros e os holofotes estão apenas virados para o próprio umbigo. A embriaguez pelo poder devia ser sujeita ao "teste do balão" .
Ter poder é poder escolher não ter patrão?
Isso é quase como escolher entre um objecto de luxo e um mal necessário.
O poder, como a política, produz sempre inimigos?
Inimigos são os incendiários. Os que queimam cobardemente o património dos outros.
Poder, dinheiro e influência são, no essencial, a mesma coisa?
Não, não são. Mas aparecem muitas vezes de mãos dadas. Pode ser-se poderosamente influente sem se ter dinheiro e pode ter-se dinheiro sem se ser influente. O melhor mesmo é ser-se poderoso, influente e endinheirado ao ponto de se poder mudar, para melhor, o mundo de muitas pessoas.
Não há almoços grátis e a canalha vende-se por um prato de lentilhas. Toda a gente tem um preço?
Vivemos como nunca um período de medo e desconfiança e por isso, tantas vezes, se confunde o valor com o preço e vice-versa. Os valores não têm preço e quem tem preço nem sempre tem valores.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios no Verão de 2012