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Anabela Mota Ribeiro

António Pires de Lima

24.07.13

“Eu quero ser eu próprio. Não tem nada contra o meu pai ou o meu avô. Eu sentia dentro de mim a necessidade de ter autonomia, de não ter que ir viver para o escritório do meu pai... Sabe, para se poder ser diferente é preciso confinar uma certa distância, nomeadamente quando somos acompanhados por pessoas que nos amam de forma tão obsessiva e protectora”.

António Pires de Lima não quis ser mais um numa família em que o primogénito se chama António e estuda Direito. Não estudou Direito. Tem 46 anos, cinco filhas, dois casamentos. Vive entre o Porto e Lisboa. Está “a meio do caminho” – a expressão é dele – do desafio Unicer. É um político eventual.

O que é que na sua vida é escolha ou herança? Porque é que, quando pôde escolher, acabou por escolher um caminho (sobretudo político) que o mantinha preso à tradição? Uma tradição que não renega, mas da qual se distancia qb?

Nas fotografias, sobretudo de perfil, percebe-se como é um António dessa família. O mesmo nariz, testa, expressão. A vida dele foi, é, uma tentativa de ganhar o seu próprio recorte.

 

Quer começar por aquilo que na sua vida foi escolha ou por aquilo que é previsibilidade e herança?

[ri um pouco] Vamos começar pelas heranças.

 

Começamos pela herança do seu nome. Que é forte, pesada, talvez?

Não diria tanto. Os meus pais, que ainda são vivos, amaram cada um dos seus filhos de uma forma quase obsessiva. É uma geração que cresceu a seguir à Segunda Grande Guerra e que valorizava, acima de tudo, a unidade, a integridade da família. Essa é a principal herança. Esse lado familiar, quase genético, acaba por marcar a minha vida.

 

Na história da sua família, parece que os elementos masculinos são os mais destacados, preponderantes. O pai, Bastonário. O avô, alta figura do Regime...

Só me apercebi da importância dos elementos femininos da família na adolescência. O que me influenciou mais foi a vida do meu avô, que se entregou ao serviço público de um Regime até se exonerar. Felizmente foi ele quem tomou a decisão [de sair]. Acreditou até morrer. O meu pai empenhou muito na vida profissional, e fez dela, para além da família, uma razão de ser do seu percurso. É difícil imaginar o meu pai sem ser advogado – continua a exercer todos os dias. As mulheres: vivo rodado por mulheres, vou a caminho da quinta filha (que vai nascer provavelmente antes da publicação desta entrevista). A alegria, a energia que me foram transmitidas pelas minhas avós e pela minha mãe, foram fundamentais.

 

No seu imaginário as mulheres encarnam a alegria e o equilíbrio, e os homens representam a seriedade e o cumprimento. Construiu-se como pessoa com estas balizas? Conte-me a história da sua família.

A família do meu pai tem origem no Minho, Barcelos, Santo Tirso. O meu pai veio da terra para a cidade.

 

Há quantas gerações a família tem “muito de seu”? – para usar uma expressão do Porto. Há quantas gerações é que há licenciados – décadas atrás, os que eram letrados quase sempre dispunham de riqueza pessoal.

Capital, não creio que tivessem tido – ou eu não dei por ele – até o meu pai ter construído uma vida confortável. Agora, zelavam absolutamente pela formação intelectual e académica dos filhos. O meu avô, que além de ser meu avô era meu padrinho, desde os meus seis, sete anos levava-me a museus. Contava-me a História de Portugal. Passou-me os seus valores. Deu-me um testemunho muito forte do que é serviço público.

 

Foi uma figura proeminente do Antigo Regime.

Durante mais de 40 anos foi Director-Geral de um ministério, ao serviço de uma visão de país a que era leal. O lado da família da minha mãe é diferente: nasce também na terra, no Douro, Resende, onde os meus pais e os meus tios ainda têm uma pequena casa; vivia no Porto. Era uma família também ligada ao Antigo Regime. O meu avô foi deputado uns anos. Durante as décadas de 50, 60, 70 viviam num conforto material muito maior; tinham propriedades, algum capital.

 

Fale-me da sua relação com o seu avô, além das idas ao museu e das lições de História. É o neto mais velho. Não sei se ele tinha, por isso, uma relação preferencial consigo…

Tinha uma relação muito próxima, é uma sucessão de Antónios, não é? E o mais velho carga sempre um peso, é para ele que se viram em primeiro lugar as expectativas, não é? Passeávamos juntos, íamos lanchar à Garrett, na zona do Estoril. Era uma pessoa muito serena e tranquila.

 

Falava muito?

Dizia-me que mesmo nas alturas mais difíceis da vida dele, e teve muitas, porque sempre viveu a contar o dinheiro, e teve nove filhos, nunca houve uma noite em que não tivesse dormido as oito ou nove horas sagradas. Eu olho para essa serenidade com alguma inveja.

 

Como é que aprendeu a viver com o esquema de valores do seu avô? Estamos a dar um salto enorme, mas imagino que, numa determinada altura da sua vida, tenha interrogado o passado político do seu avô.

Apanhei a revolução de chapa. Tinha 12 anos. O meu avô passado dois ou três meses reformou-se. Mas não teve mais consequências para a família do que essa.

 

Que, emocionalmente, é uma consequência pesada.

Sim, mas eu cresci a contradizer o meu avô e a ser um rebelde. A partir dos 13, 14 anos, era frequente tomar a iniciativa das hostilidades em cada jantar de família ou em cada Natal.

 

Porquê a hostilidade?

Se eu queria fazer alguma coisa na vida, tinha que construir um conjunto de valores que eram meus, que não podiam ser um mero copy-paste do que tinha recebido do meu avô. Também o meu pai foi uma pessoa independente, nunca se colou ao Antigo Regime. Eu queria construir uma vida profissional forte, mas em definitivo não queria ser advogado.

 

Como foi essa revolução familiar? Ainda por cima, logo a seguir à Revolução, que ditou o desmoronamento de um tempo...

Não foi nada intelectual, que tivesse nascido na cabeça; foi epidérmico. Ou construía o meu próprio espaço ou estava tramado. Nunca conseguiria libertar-me daquele peso familiar tão forte. Lembro-me de ter dito ao meu pai, primeiro, e depois ao meu avô, que não iria para Direito – não tendo eu a mínima ideia do que é que iria ser. O meu pai, muito ao estilo dele, escondeu a decepção e disse: “Óptimo. O importante é que sejas bom naquilo que decidires vir a ser, e acima de tudo, que sejas útil”. Já o meu avô, demorou algum tempo a engolir a decepção; tinha criado a expectativa de eu ser a terceira, quarta ou quinta geração, já nem sei: mais um herdeiro daquela linha que tinha dominado a família até ali.

 

Voltando ao começo da entrevista: deixamos o que é herança e começamos a entrar no que é escolha.

Foi a partir daí que comecei a construir, um bocado às apalpadelas, sem saber muito bem por onde ia, um caminho. Comecei a ter uma vida política a partir dos 30 anos, que foi uma coisa que o meu pai nunca ousou ter – e tinha imenso jeito para isso.

 

Porque é que acha que ele não ousou ter?

Tem que lhe perguntar a ele. Recebi alguns reparos amigáveis do meu avô quando procurei ter uma intervenção dentro desse sistema político – o democrático...

 

Nomeadamente?

Que estava a perder o meu tempo. (Não acreditava num regime democrático, a funcionar com partidos). Que me devia focar na vida familiar e empresarial. Eu adoro o meu avô, adoro o meu pai. O meu pai, do ponto de vista do carácter, do desapego ao poder e material, é uma referência moral muito forte para mim. Mas a necessidade de construir o meu espaço, a minha carreira autónoma, e até a minha vida familiar, levou-me a decidir não ser advogado. Foi uma não decisão, no sentido de não querer ir por ali.

 

Estudou Gestão.

Fiz um curso de gestão e o mestrado fora de Lisboa, em Barcelona. Foi importante, com 21, 22 anos, sair. Nada estava especialmente programado.

 

Esta insistência no seu avô tem que ver não só com o peso de uma figura como ele, mas também porque parece que herdou uma coisa dele: saber mandar.

Não sei se aprendi a mandar com o meu avô. Se alguma coisa aprendi com ele, foi a servir. Causas “nobres” ou perdidas – o caminho vai esclarecendo. O meu avô mandava sempre de uma forma muito discreta. Pelo menos naquilo que eram as relações familiares. Nunca o ouvi elevar a voz, nem manifestar grandes gestos de presença. Passava os fins-de-semana, quando eu era criança, a despachar papelada numa camilha, enquanto me dava livros para ler.

 

O quê? Coisas muito orientadas, ideologicamente?

Livros de História. Aos 14 ou 15 anos, julgo que se terá equivocado na livraria, deu-me dois livros sobre o Holocausto: Um Saco de Berlindes, e o Mila 18, do Leon Uris. Fiquei chocadíssimo com aquilo que li. O meu avô não era nazista, nem pouco mais ou menos, mas havia uma certa aquiescência relativamente à posição que Portugal tinha assumido – e que tinha livrado Portugal da Guerra e a entrada do comunismo na Península Ibérica.

 

Era isso que ele destacava? O facto de o Regime ter poupado Portugal à Guerra?

De ter estabelecido um ordem, que ele achava que era construtiva, e que era um grande contraste com a “bagunça” da primeira República, que ele tinha vivido enquanto jovem.

 

Acha mesmo que foi por equívoco que ele lhe deu os livros?

É engraçada, a sua pergunta. Ele raramente se equivocava.

 

Estava a perguntar-me se ele gostaria de deixar, uma vez ou outra, o gérmen da inquietação, da intranquilidade, que conduzisse à discussão.

Se calhar. Ele prezava bastante o tipo de discussões e polémicas que tínhamos. Dizia que eu tinha um espírito rebelde, que o contrariava sistematicamente. Acho que, ao mesmo tempo, isso o irritava e lhe dava gozo.

 

Era o único contestatário?

Essa rebeldia está presente em muitos dos filhos do meu avô. Um era ligado à extrema-esquerda. Apoiara e advogara causas de esquerda, mesmo durante o Antigo Regime – o Joaquim Pires de Lima. A coisa que o meu avô mais prezava era o carácter. Detestava gente submissa. O meu avô e o meu pai, cada um à sua maneira, foram criando, dentro de mim, algum estímulo para que seguisse o meu próprio caminho.

 

Porque é que acha que ele detestava pessoas submissas, se aquilo que fazia era controlar o Ministério do Interior, que por sua vez controlava as questões relacionadas com a segurança e com a polícia?

Sempre me disse que a questão da segurança, a DGS, era um pelouro que não era dominado directamente por ele. Acho que reportava directamente ao Presidente do Conselho ou ao Ministro do Interior. Mas a verdade é que nenhum dos filhos dele nasceu ou cresceu particularmente submisso.

 

São insubmissos porque o patriarca era autoritário e era preciso fazer o jogo contrário?

Não. Tanto ele como a minha avó, não creio que prezassem filhos, netos, pessoas moles...

 

Mole é a canalha.

Depois do 25 de Abril, para além das pessoas que eram a sua referência, o meu avô valorizou figuras como o Álvaro Cunhal, mais do que os democratas do CDS, PSD ou do Partido Socialista. Quando o meu pai foi Bastonário, um dos seus mais próximos parceiros foi o Garcia Pereira [MRPP]. Isto é típico na família Pires de Lima: serem de direita, ou, no caso do meu avô, de extrema-direita, e terem uma relação forte com quem está do outro lado da barreira ideológica.

 

A relação do seu avô e do seu pai com o filho e irmão, Joaquim Pires de Lima, que estava nos antípodas politicamente e na forma de estar, era igualmente boa? Este tópico interessa-me para saber como se lidou na família com a sua rebeldia. Não era a única ovelha tresmalhada.  

A natureza das minhas divergências e das minhas rupturas nunca foi tão radical quanto a do meu tio Quiqui. Continuo a dizer que sou uma pessoa de direita, embora muito diferente daquilo que é a pessoa de direita típica neste país. Profissionalmente sempre tive um caminho próprio, mas muito certinho.

 

Muito certinho?

Sim: nunca fui pegar touros, como alguns dos irmãos dos meus pais. Consegui conciliar independência e rebeldia com valores que me foram inculcados. A minha vida tem sido sempre esse jogo: respeitar esta vontade de fazer diferente, e ser diferente, e manter um equilíbrio com tudo aquilo que de bom recebi.

 

Disse que foi amado obsessivamente em criança. Depois há a barreira dos 12 anos, com o 25 de Abril e o fim de um tempo. A seguir, um período de rebeldia, como é normal na adolescência.

Ao contrário, tive uma adolescência muito angustiada e pouco rebelde. Tive uma infância muito feliz, calma e serena, apesar de o meu pai ter sido chamado pela segunda ou terceira vez para o serviço militar. Vivemos em Luanda dos [meus] quatro aos seis anos. São as primeiras imagens e cheiros que tenho. O facto de ser filho de uma figura do Regime não o beneficiou. Voltámos quando eu tinha seis anos. O meu pai, com 31 ou 32 anos, ainda estava a recomeçar a vida. A infância dividia-se entre Lisboa e Resende, onde passávamos as férias, e onde chegavam a estar 50 ou 60 primos e tios juntos, durante duas ou três semanas.

 

Família claustrofóbica?

Isto eram os Magalhães. Boémios, divertidos, estroinas. O mês de Setembro era passado no Douro, na quinta de Lamelas. Íamos para o rio, matar galinhas, jogar futebol. Éramos quase todos homens, duas ou três primas. Fui crescendo assim, entre o [colégio] São João de Brito, as férias na praia, as férias no Douro, os anos em Angola. A partir dos 12, 13, 14 anos comecei a sentir uma inquietação interior – que nunca revelei, fui guardando para mim. Era muito tímido, vivia num universo relativamente fechado. Não tinha namoradas, não me conseguia aproximar das pessoas, não sabia como interagir. Só depois comecei a ganhar segurança e confiança naquilo que estava a fazer.

 

O que é que leu nesses anos?

Parei de ler. Tinha lido tanto até aos 13,14 anos... Camilo, Eça de Queiroz, tudo aquilo que via em casa e que se devia ler. Sabe que só retomei o gosto da leitura já adulto, aos 25, 26, 30 anos...

 

E escrevia, um diário? O que é que fazia?, se era tímido, se não se relacionava...

Fazia muito desporto, tinha um grupo social, que apesar de tudo, ia funcionando. No meio daquela confusão interior, fui para Engenharia; antes de entrar no Técnico passei para Economia; a meio do curso percebi que não queria ser economista e fiz um MBA. Li livros que me ajudaram a distanciar da educação religiosa que tinha tido – A Neurose Cristã, alguns textos do Nietzsche. E comecei a identificar-me com algumas imagens políticas, fundamentalmente de Francisco de Sá Carneiro, que apelavam a uma vida rebelde.

 

O que é que era rebelde em Francisco Sá Carneiro?, Snu Abecassis?

Na altura, era muito rebelde. Sempre foi uma figura incómoda para o Antigo Regime. Na relação com Snu Abecassis foi determinado e férreo. Pôs a sua independência e a sua liberdade acima dos valores que tinha herdado. Isso acabava por servir de referência a muita gente que, como eu, estava a crescer.

 

A verdade é que, quando se aproximou da política, foi para um partido mais à direita do PSD; um partido que o aproximava mais do seu passado familiar. É como se a Revolução não tivesse rebentado completamente dentro de si.

Sim, não rebentou, nem do ponto de vista familiar. A nossa família não passou por aqueles incómodos…, nem tínhamos nada que pudesse ser expropriado.

 

O seu pai não tinha dinheiro? Foi tudo construído, depois, com a carteira de clientes?

Tudo o que ganhou na vida foi à custa dele. Até aos meus 16, 17 anos tinha um carro, um Volkswagen 1300, onde viajava com a minha mãe e os quatro filhos. Vive com o que tem, não é rico, tem uma vida confortável. Eu fui educado a prezar esta ideia de que não herdamos nada, e que tudo aquilo que temos na vida é conquistado de forma quase braçal, como os nossos ascendentes seguramente faziam há 100 anos.

 

Apesar de tudo tiveram uma vida muito burguesa, com o colégio São João de Brito, as férias na praia, as férias no campo...

Sim, tivemos uma vida tranquila, mas sem luxos.

 

O que é um luxo?

É fazer uma viagem grande, é fazer uma compra desorbitada no Natal, é atirar-me a qualquer coisa que não seja muito necessária. Ainda hoje tenho dificuldade em fazer determinados gastos quando vou em viagem com a minha família, ou na minha vida pessoal. Não é que eu não viva bem, não preciso de pensar muito no dinheiro que tenho – a vida tem-me corrido bem. Mas sempre olhámos para o dinheiro com uma certa distância, porque nunca o tivemos.

 

É um homem novo e acabou de dizer que não tem que fazer grandes contas. Ganhar dinheiro foi um dos propósitos da sua vida?

Não.

 

Foi o que pensei. Porque esteve sempre entre a política e os negócios. Entre a militância e a necessidade ou vontade de ganhar dinheiro.

Não. Eu preciso, para manter o nível de vida que tenho, e com cinco filhas, de ser relativamente bem sucedido. Mas aquilo que me motiva não é, de todo, ganhar dinheiro. Aquilo que me motiva é ser respeitado, ser considerado, e ser útil nos projectos em que estou. No princípio da minha vida [profissional], senti que o meu lado devia ser aquele que serve projectos com um cunho nacional, por muito bacoco que isto possa parecer.

 

Porque é que isso era importante? Ainda por cima, vindo de Espanha.

Em primeiro lugar, por educação, pelo exemplo do meu avô e do meu pai. E depois apercebi-me do enorme contraste que existia entre a pujança espanhola em 86/87 e a depressão que vivíamos em Portugal nos anos 83/84. Senti um apelo forte para regressar e ajudar, na minha profissão, naquilo que pudesse, o meu país. Houve uns anos em que trabalhei em multinacionais, porque era aí que havia a maior fonte de recrutamento, e foram uma boa escola; mas a partir de 92/93, tinha 30 anos, comecei a procurar projectos que me permitissem trabalhar para grupos empresariais portugueses. Foi também nessa altura que me filiei no CDS e comecei a ter alguma intervenção política, ainda que muito discreta. Senti uma necessidade de me amarrar a Portugal.

 

Explique melhor a necessidade de se amarrar a Portugal.

Tem a ver com os afectos, com a família, com a terra, tudo aquilo que esteve presente no meu crescimento. [Trabalhar] em empresas multinacionais iria conduzir-me necessariamente para longe de Portugal, para longe de pessoas que me são queridas. É uma coisa que condiciona a nossa vida durante 10, 15, 20 anos. Vai-se para onde nos mandam. Senti a capacidade que tinha, quando estava ao serviço dessas multinacionais, de provocar dano a empresas portuguesas.

 

A Compal foi essa oportunidade?, foi a grande oportunidade?

ACompal foi onde pude, em primeiro lugar, testar as minhas capacidades. É mais difícil ser líder de uma equipa portuguesa, e às vezes sozinho, do que estar acompanhado sistematicamente por comités das multinacionais. [Quis] provar que nós, portugueses, temos a capacidade de nos bater de igual para igual. Isso deu-me um certo drive [motivação], excitou-me...

 

Quando é que percebeu que era capaz? O rapaz inseguro e tímido que descreveu precisou de muito para acreditar em si próprio.

Barcelona puxou muito por mim. Ao fim de dois meses, estava a viver numa espécie de república, com um norueguês, um colombiano-espanhol e um chileno... Foi uma experiência…, para quem foi educado na linha, entre Lisboa e o Douro. Tinha saído do país quatro ou cinco vezes até essa altura. Fui fazer um MBA em inglês e não sabia falar inglês... As notas do MBA eram dadas em função da nossa participação nas aulas e dos trabalhos de equipa. Se não participasse, era corrido.

 

Como é que aprendeu inglês?

Eu tinha aprendido inglês no São João de Brito, mas era péssimo. Fiquei nos 14% mais baixos. Entendia o que as pessoas diziam, mas não conseguia falar. Aprendi a desembaraçar-me em inglês, sozinho, no meio daquele curso. A safar-me. A desenrascar-me.

 

Saiu verdadeiramente fora da concha familiar.

No primeiro ano de trabalho, numa empresa espanhola, ainda estava relativamente protegido. Depois fui contratado por uma empresa americana para abrir a delegação em Portugal; tive que contratar pessoas, aos 25, 26 anos estava a chefiar uma equipa de 20 pessoas... A gente vai ganhando confiança à medida que se vai experimentando – não conheço outra forma. Só se aprende a nadar atirando-nos ao mar, não é? E à medida que vamos dando braçadas e percebemos que somos seguidos e que confiam em nós, essa confiança vai-se alimentando.

 

O impacto de um líder mede-se assim? Quando se é seguido, quando confiam? Ou é no gabinete, frente ao espelho, que diz: “Sou mesmo bom”.

Já me achei mais “sou mesmo bom” do que hoje em dia. Aos 30 anos a gente tem essa veleidade… Tenho 46 anos. À medida que o tempo passa, percebemos que o nosso sucesso é feito de coisas muito frágeis. Que a diferença entre ser bem e mal sucedido é fundamentalmente feita pelas pessoas de quem nos rodeamos.

 

Pensei que fosse ao contrário: que fosse o grande líder a pôr a equipa a trabalhar bem ou não.

Já deixei esse registo há uns tempos [risos] É muito importante dar o exemplo, mas, definitivamente, a grande qualidade de um bom líder é saber escolher aqueles que estão com ele.

 

O que é que representou na sua vida o encontro com o Paulo Portas?

Conheço o Paulo desde os seis anos. Fizemos juntos da primeira classe ao segundo ano do liceu. Era um dos meus amigos mais próximos. Distanciámo-nos a partir da universidade, porque o Paulo cresceu de uma forma completamente diferente de todos nós. Era precoce, só se dava com figuras que eram para qualquer outro miúdo de 13 ou 14 anos inacessíveis... Até ao 25 de Abril, fazíamos as brincadeiras típicas dos miúdos “betinhos” do São João de Brito. A partir da Revolução, o Paulo tornou-se uma referência no São João de Brito, deixou aquilo que eram actividades normais...

 

O berlinde e o futebol.

Aos 13 anos já não jogávamos ao berlinde, mas jogávamos futebol! Passou a desenvolver uma vocação fortíssima, de político. Percebia-se que em casa dele só se respirava política. Mas fui sempre tendo uma relação muito próxima, de amizade, com ele; a ponto de termos feito uma lista para as eleições do São João de Brito, em que ele era o Presidente e eu o Vice-Presidente. Já na altura era assim. Eu era a figura popular internamente e ele era o rapaz especial que trazia figuras como o Ministro da Educação para um debate.

 

Ele conhecia essas pessoas através da mãe e do pai.

Os fins-de-semana que ele nos contava eram irreais!, passados na piscina do Estoril Sol com figuras como a Helena Roseta ou o Santana Lopes ou o Sá Carneiro. Aquilo, para mim, era uma aventura. Eu passava os meus fins-de-semana com pessoas da minha idade… Chegar à segunda-feira e ouvir o Paulo descrever as conversas políticas e os projectos que tinha, as pessoas com quem se dava, deu continuidade ao interesse pela política que eu tinha desenvolvido com o meu avô.

 

O que tinha era um desejo de aventura. Que lhe acontecesse a aventura que o Paulo vivia ao fim de semana.

Era um estilo de vida e uma forma de estar diferente. O Paulo era filho de pais divorciados, o que, para a minha família, era uma heresia. Nessa altura, era alinhado com o Sá Carneiro e o lado mais à esquerda do PSD. Trazia um conjunto de ideias e novidades, uma abertura de espírito… Era interessante falar com ele, ouvi-lo. Era diferente da comida que me davam em casa!

 

Antes disso: quando se davam muito, o Paulo era a figura solar? O que contrasta com o menino tranquilo e tímido?

Não me lembro muito do Paulo dos seis aos 10, 11, 12 anos. Era mais culto do que nós, isso sim. Mas destacou-se das outras pessoas – e não é que isso o tornasse mais popular no Colégio – a partir da Revolução. A nossa prioridade era formarmo-nos, termos uma carreira, um curso; o Paulo vivia sempre num mundo à parte – como, aliás, acabou por acontecer.

 

Porque é que era mais popular do que ele?

Estou a dizer-lhe isto, mas hoje em dia ele é muito mais popular do que eu!! [risos]

 

As pessoas conhecem mais o Paulo Portas do que o António Pires de Lima, mas a sua figura é mais moderada. Os moderados estabelecem mais facilmente relações empáticas com o público, são menos ameaçadores... Por isso era mais popular no Colégio?

Eu era mais popular porque era um protótipo. Sempre fui o delegado desportivo, era eu que organizava os campeonatos de futebol, de andebol, de basquetebol, ganhava os corta-matos, era o capitão da selecção de futebol do Colégio (que tinha para aí 12 campos de futebol). Isto é muito mais popular para os miúdos do Colégio do que alguém que convida o Nuno Abecassis, o Vítor Crespo e a Ministra da Educação para um debate sobre o ensino privado e o ensino público. Em 1977, quando tínhamos 14 ou 15 anos, era mais fácil as pessoas identificarem-se com o Pires de Lima do que com o Portas!

 

Era assim que lhe chamavam?

Era! Depois cada um seguiu o seu caminho: ele foi para Direito, eu fui para Economia. Víamo-nos muito raramente, uma vez por ano íamos jantar juntos. Quando formou O Independente, tive algumas conversas com ele; havia pessoas que me eram próximas a serem atacadas pel’O Independente de uma forma desagradável. A certa altura percebi que o Paulo estava muito mais interessado na reconstrução do espaço à direita do PSD do que propriamente n’O Independente. Isso interessou-me. Desenvolveu-se uma cumplicidade, apesar das diferenças que temos.

 

Porque é que lhe interessa a política e a direita, quando o grosso da sua vida foi uma tentativa de criar distância em relação ao seu pai e ao seu avô – que personificam isso?

Foi distância mas também foi proximidade. Sou naturalmente conservador.

 

O que é que representou para um conservador, católico, o falhanço do primeiro casamento?

Foi preciso coragem. Não vou entrar em detalhes, até porque é um tema que não me sinto à vontade para aprofundar.

 

O seu avô ainda era vivo?

Era. Ainda viveu um ano e meio, mas nunca lhe contámos. Ele apercebeu-se, porque no último Natal apareci sozinho; mas nunca falámos sobre o assunto. A minha avó percebeu logo, ao fim de dois ou três meses – as mulheres são muito mais intuitivas na família, mais espertas do que os homens... Apesar de algumas discussões, nunca me senti desapoiado pelos meus país. A minha mãe foi fenomenal durante esse período. Fui educado para tudo, menos para que me pudesse acontecer aquilo. Casei muito novo. Precisei de me separar, de viver sozinho durante um par de anos, de reconstruir a ideia de parceria. Isto implicou muita dor. Uma das coisas que ainda me custam é não viver tão próximo, fisicamente, das minhas filhas mais velhas como gostaria.

 

Interrompi-o. Estava a dizer que é um conservador.

Porque tenho respeito pela tradição e herança que recebi. Também fui educado a ser contestatário e a prezar a liberdade individual das pessoas. Aquilo que mais me irrita na direita é a falta de respeito que tem pela autonomia e pela liberdade das pessoas. A direita tem muita dificuldade – no meu partido, por exemplo – em respeitar a diferença, a divergência.

 

Não poderia ser de esquerda, como seu tio Joaquim?

Eu não sou de esquerda, não sou capaz de me travestir como pessoa de esquerda, nem creio que a esquerda seja mais amiga da liberdade individual que a direita. O meu papel num partido como o CDS é, precisamente, procurar abrir algum espaço para que a direita do CDS seja mais tolerante, mais respeitadora daqueles que pensam ou vivem ou sentem de maneira diferente daquela que faz parte da matriz democrata-cristã. Estou mais próximo do CDS do que dos partidos do centro porque estes sempre me pareceram um bocadinho “desvertebrados”.

 

Houve algum momento em que tenha pensado seguir uma carreira política mais séria, em dedicação exclusiva?

Vou contar-lhe uma coisa que nunca contei a ninguém: na véspera da data limite para entregar as moções de estratégia ao congresso que o Dr. Ribeiro e Castro tinha marcado para que desafiassem a sua liderança, eu tinha uma moção escrita com mais duas ou três pessoas. E para não a entregar nessa data, tomei uma pastilha para dormir. Quando acordei, fui jogar golfe o dia inteiro. Só saí do campo depois de me assegurar que tinha passado a hora limite para entregar a moção. Se tivesse entregado essa moção, tinha tido que me candidatar à liderança do CDS e fazer da política a minha vida durante um bom conjunto de anos. Foi difícil resistir naquela altura em que o Dr. Ribeiro e Castro estava na mó de baixo e todos me empurravam para disputar a liderança. Foi difícil domar o impulso que me atirava contra ele e que me podia atirar, com alguma probabilidade…, não sei.

 

Porque é que resistiu?

Aquilo era demasiado imprevisível para o meu gosto. Não sei como é que se vive da política e se tem um nível de conforto razoável. Isso pesou mais nessa altura. Andei a trabalhar, a estudar para fazer um determinado percurso profissional, e agora vou deitar tudo fora para me meter numa coisa que não sei muito bem o que é? Num partido, ainda por cima, isso eu sei, intimamente, que não aceita metade das minhas ideias?Tive oportunidade de testar muitos dos meus discursos dentro do partido sobre a tolerância perante a liberdade dos outros; sei a reacção que causam. Ter um partido político, pegar no partido e transformá-lo numa coisa diferente, é um sonho...

 

Adiado?

Quase afrodisíaco e adiado. É um impulso difícil de resistir. Ia abdicar de uma vida que tenho para me pôr à frente de um partido que eu talvez não soubesse representar? O CDS é um partido demasiado conservador, muitas vezes até dogmático, para ter um liberal como eu.

 

E medo de ir a votos? Teve também? Medo que o rejeitassem publicamente. Que a outra moção fosse mais votada.

Não, não foi isso. Tive medo de deixar a vida que tenho, isso tive. Porque é boa, gosto dela, dá-me prazer. Não renego o partido a que pertenço, mas a maioria das pessoas que conheço tem um discurso mais dogmático e autoritário do que aquele que eu gostaria de fazer.

 

Isso significa que, agora, a sua intenção é continuar na vida empresarial, adiando um sonho político que pode, ou não, desabrochar no futuro?

A vida tem graça se for vivida com um mínimo de incerteza. Não faço planos a cinco ou 10 anos. A dois anos, estou comprometido com os accionistas da UNICER e com a equipa que entretanto formámos. Depois disso, logo se vê.

 

Para terminar: ama as suas filhas obsessivamente, tal como os seus pais o amaram a si?

Amo, mas é um estilo de dedicação diferente. Desde logo porque, fisicamente, não estou tão próximo, não controlo tanto as coisas, e vivo uma época diferente.

 

Quando o vêem nos jornais ou na televisão, a fazer um papel completamente diferente, elas reconhecem e gostam, ou é como se fosse outra figura?

Não, sou eu. É pretensão minha, mas eu sou exactamente aquele. Às vezes temos que fazer alguns papéis, mas eu sou muito aquilo que sou quando apareço nas minhas vidas públicas, seja aqui na UNICER seja na política. A mais velha, Marta, tem 18, entrou em Medicina este ano. A segunda é a Joana, tem 17. Depois tenho a Madalena, que tem seis, a Matilde, que tem dois, e a Patrícia que vai nascer um destes dias! Muitas mulheres! 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2009