Dinis Machado
Dinis Machado nasceu e viveu a vida toda em Lisboa. Para a história das letras portuguesa ficará como o homem que escreveu «O que diz Molero». Foi jornalista desportivo, dirigiu uma revista mítica chamada Tintim, e em 68, porque precisava de dinheiro, escreveu três policiais no espaço de um ano sob o pseudónimo Dennis McShade. Teve um grupo de amigos com quem se deu no Bairro Alto, um grupo de amigos escritores com quem se deu quando escreveu o livro que queria escrever. Assume uma paixão desvairada e sem ordem possível pelo futebol, pelos livros, pelas mulheres, pelo cinema.
Numa destas tardes de sol, a luz espreitava pelas frinchas da persiana e nós começámos por falar de cinema. Só porque me tinham dito que ele gostava de Buñuel tanto como eu e eu quis dizer-lhe que gostava quase tanto de Fellini como ele. E quando dei por ela, estávamos enredados numa teia filosófica que ia bem com o cinema e os livros e as mulheres e o futebol e a vida toda.
Eu gosto, quando estou a escrever, de ser capaz de me surpreender. A frase seguinte, não sabia nada que ela vinha e surpreende-me. Um minuto antes não sabia que ia fazer correr aquela ideia. Vivo um bocado nesse plano inventivo, embora com uma contradição: uma obsessão tremenda pelo real. A imposição do real aparece-me numa altura em que há uma certa desilusão, ou afastamento, do que se pode chamar ficção, e em que começo a aproximar-me das pessoas que procuram interpretar os sinais da sociedade, (porque é que fazemos isto?, como é que fazemos?), num questionamento de ordem existencialista (de onde vimos?, para onde vamos?).
Afastou-se da ficção para se lançar na explicação do mundo?
A tentativa da explicação do mundo é terrível, labiríntica. Vamos inventando sobre invenções. A luta com o real é tremenda; é o quotidiano, o corpo a já não responder, a cabeça a fazer recusas permanentes. Vou-me limitando um pouco ao meu mundo. Por exemplo, este momento, depois do almoço, a fumar uma cigarrilha e a beber café, é privilegiado. Se pudesse escolher a hora da morte, gostava de morrer assim, à tarde, de cigarrilha e café, sossegado. Se pudesse escolher.
Pensa muito nisso, como chegará a morte?
Não gostaria que isto demorasse muito tempo. Não quero viver o tempo superior à minha vontade de viver, que vai desaparecendo a pouco e pouco, embora permaneçam resíduos de vontade de viver; a própria respiração pode ser vontade de viver. Com o tempo e com as dificuldades de adaptação do corpo a uma energia que vai desaparecendo, gostaria de não viver para além do que me é lícito viver.
Não consegue desligar-se da energia do corpo e concentrar-se nos prazeres?
É o que tento fazer. Há outra preocupação, que não sei se posso considerar adjacente ou consequência disso; desenvolvi em mim, com o tempo, uma grande estima por todos os que não são beneficiados. O benefício, a distribuição daquilo a que se chama justiça, é ocasional. Estimo muito o ser humano que não é beneficiado, ou que é prejudicado. Fico do lado dos que não têm bandeira.
Do povo.
Pode chamar-se povo. Gosto muito das pessoas simples. Compliquei-me com a passagem do tempo. Não sei se era o Chaplin que dizia que primeiro somos inocentes, depois vamos degradando, vamos aprendendo, e depois quando perdemos a inocência completamente fazemos um esforço notável para voltar a ser inocentes. Acho que se passa um pouco isso.
Na sua vida, esses momentos são demarcáveis? Consegue situar a perda da inocência?
Perdi a inocência a pouco e pouco. Já na idade adulta comecei a entender-me com mensagens literárias e cinematográficas onde ia recolhendo informação, percebendo melhor as coisas, mas onde ia morrendo a inocência. Quando dei por mim, já estava com uma carga de referências tão grande, de coisas tão complexas... A partir dessa altura, só há um caminho a seguir: ir continuando. Quando uma pessoa já sabe, não pode fingir que não sabe, ou então engana-se. Mas ao saber que sabe, e cada vez sabe menos, (o problema é sempre o mesmo), a tal nostalgia da inocência aparece. É difícil atirar com a carga toda ao mar. Como é que se vive com aquilo que se sabe? Pode-se tentar uma saída pelo lado existencial. Eu amo a minha mulher, a minha filha, gosto muito dos meus amigos, e isso são suportes para mim. A ideia das pessoas que não são beneficiadas, desperta-me também um certo companheirismo.
Quando se refere à pessoas não beneficiadas, a sua concepção é sobretudo política? Posiciona-se à Esquerda?
Costumo catalogar-me, por causa das minhas decepções contínuas, como anarquista pacífico e solitário. O anarquista pacífico é um gajo que não atira bombas, que gosta de discutir ideias, que não bate em ninguém. E solitário. Estou na situação de conviver, mas sei que sou profundamente solitário, não consigo integrar-me em qualquer grupo. É um individualismo tão exigente... A questão da relação política é a seguinte: se vou cingir-me às regras disto, tenho de dizer sempre que sim. Talvez não tenha humildade para me sujeitar. Há este lado solto que sei que tenho. Solto e quase afrontoso.
É possível transpor o seu posicionamento político para o campo literário? Foi sempre tido como um desalinhado. Mesmo com os amigos escritores com quem se dava, não falava de literatura.
Era mais sobre futebol e mulheres. O lado sério da literatura é deixá-la estar a arrefecer, e perceber, com o tempo, que os amigos literatos têm caminhos que não têm nada que ver com o nosso. Isto repete-se ao longo de séculos. Se for ao Voltaire e ao Rousseau, estavam no mesmo lado da barricada, mas afastaram-se; se vai ao Camus e ao Sartre, estavam, mas afastaram-se. Na literatura, percebi cedo que não estávamos no mesmo lado num certo número de coisas. Então falávamos de coisas muito mais simples, mais agradáveis, mais saudáveis.
Havia também uma espécie de pudor em relação à literatura, um pudor que a sacralizava?
Falávamos. Como cada um já tinha referências muito próprias, cada um aprendeu na sua cartilha... Conheci-os muito tarde. A minha aprendizagem foi com os meus amigos não intelectuais, que eram turistas da cultura e que gostavam muito do lado lúdico dessa cultura. Quando comecei a procurar um sentido mais sério, fui ainda sozinho. O meu grupo descolou de mim, ou descolei eu deles. Sabe como é isto das gerações; do nosso grupo, seis ou sete muito permanentes, a certa altura começou tudo a casar. Casou o primeiro, casou o segundo, em três anos acabou tudo. Já tinha mais de 30 anos, mas foi o sedimento de tudo o que aprendi. Quando contactei com os meus amigos escritores, já era refractário a ideias novas. Não havia um espírito de grupo, como havia nos dadaístas. Havia a noção que cada um tinha daquilo que lhe interessava. E o futebol é muito mais interessante, não mete filosofia.
Numa entrevista recente, o seu amigo Lobo Antunes confessava que, com Cardoso Pires, falava de futebol e de mulheres, mas nunca de literatura. E que, com alguns amigos, mantinha conversas mais íntimas do que alguma vez tivera com os irmãos.
Ele teve uma relação muito próxima com o Cardoso Pires, e daí talvez esse lado confidencial. Temos sempre o que chamo de catarse obrigatória: alguém do outro lado, ou um gravador, ou um papel para escrever. Ter encontrado um amigo ou amigos com os quais criamos intimidades profundas...
Os conceitos sobre os quais eu indagava eram, justamente, o da amizade e o da intimidade.
Pode ter um lado cego, e necessitado: abrir-se com outra pessoa para se encontrar melhor consigo na solidão. A solidão de cada ser é mesmo radical, lá no fundo é radical. Somos bastante infelizes de um modo geral. Pode-se encontrar na mulher, num amigo, num estranho. Você está a mexer numa zona que é complicadíssima!, vai meter tudo ao mesmo tempo!
É possível puxar de coisas essenciais e deixar outras de fora?
Era isso que estava a querer dizer. Não posso falar muito dos outros. Posso é falar das perdas que tive de amigos, por causa desses caminhos diferentes. Quando encontrei a Dulce, a minha vida mudou. Recuperei a vida familiar, depois da passagem por um grupo de amigos. A primeira fase da minha vida, até aos 30 anos, foi libertina. Chamar-lhe libertina! Libertina significa bastante livre. Por uma série de razões de ordem filosófica, não queria amarras na minha vida. Casei a primeira vez por acaso, nunca estive com as mulheres para casar.
Como é que aparece a Marília?
A minha Marília, que antecedeu a minha querida Dulce, apareceu-me com um namoro simples numa sessão de cinema.
Qual era o filme?
Um filme notável, que contribuiu para o namoro: «A vida é um jogo». Eu ia fazer para o Diário Ilustrado a crónica do filme. Ela ficou ao meu lado e relembrou-me que nos conhecíamos de miúdos. «Amanhã venho ver o filme outra vez, há aqui umas pontas que ficaram por ligar», e ela disse «Venho consigo». A certa altura vi-me casado.
Quanto tempo depois?
Não sei, ela começou logo a tratar de tudo. Um empreendimento notável! Tínhamos 30 e poucos anos. Era uma mulher muito livre, formada, com vida própria; ia ao cinema sozinha. Pertencia a um estatuto social um pouco superior ao meu. A tia dela, que nunca gostou muito de mim, (e eu percebo, representava o outro lado da sociedade), era secretária directa de Salazar, despachou com ele durante 40 anos. Já posso falar nisto porque morreram quase todos.
Tinham discussões políticas, o Dinis e a Marília?
A Marília tinha um lado esquerdista que tinha que ver com o noelismo, porque era profundamente católica, e não com a adoração dos santinhos. Aí é que nos encontrávamos. Eu era um combatente de Esquerda, de uma tribuna dissimulada e pouco importante. A Marília era um escudo numa família que não gostava muito de mim, ou do que eu representava: vinha do Bairro Alto, de uma tradição liberal, boémia, enfim, outras coisas mais.
Que outras coisas?
Essas famílias são educadas num certo estatuto de comportamento social. Tinham uma seriedade de comportamento até no plano das relações afectivas. Eu vinha de um sítio onde a relação com as mulheres era directa e absoluta e permanente. Com mulheres de passagem. E eu queria isso. [voltando-se para a mulher] Posso falar disso Dulce? Nunca quis ter filhos. Dou aqui um beijo à minha Rita, porque foi um erro de pensamento. Não queria responsabilidades para além de mim próprio. Queria estar suficientemente livre para não trazer ninguém refém de mim próprio. Liga-se ao livre arbítrio nos existencialistas, que li já depois dos 30 anos: sou dono da minha vida, tenho o direito de me escolher, e não quero amarrar ninguém à minha possível infelicidade, ou à minha possível escolha definitiva da vida.
Escolha definitiva da vida parece implicar, de forma subjacente, o suicídio.
Sempre implicou isso, o suicídio como escolha, como escolha filosófica. Não era o suicídio da desorientação.
Consegue dissociar uma e outra?
Integrei na minha vida o absurdo que a vida a certa altura me pareceu que era. Pensei, «Quando estiver a envelhecer, tiver doenças, quando a vida se tornar insuportável, quando me chatearem muito, antecipo-me ao meu inimigo». Implica, de facto, uma hipótese de suicídio, nunca a recusei. Mas entretanto criei umas amarras, criei amarras de afecto muito fortes, (para mim são mais importantes as pessoas que amo que eu próprio), e encontro um certo sentido da vida. Pelo menos redimo-me desse absurdo quase permanente, do vazio que defronto com frequência. O que me salva é também uma grande jovialidade, que é muito natural. Tenho um grande optimismo que não coincide nada com isto.
Alguém que tem tanto medo de se sentir refém ou de fazer reféns, tem evidentemente uma enorme capacidade de amar.
Acha que é isso? Ou será transferir um pouco da sua infelicidade para uma barricada chamada Outros? Sei é que não faz sentido para mim pensar a vida sem eles, sem estarem a todo o momento.
Daí a inevitabilidade de amar.
Está tudo ligado como você há bocado disse. A minha vida é feita de perdas sucessivas: do pai, da mãe, dos amigos, (morreram quase todos), da mulher, perdas de afecto com pessoas com quem não me entendi, e na maior parte dos casos não percebi porquê. Talvez seja a consequência dos meus erros, da minha distracção permanente em relação a tudo. Há ainda a minha vontade de tornar brincável qualquer situação, que, às vezes, faz ferir os outros; uma piada boa, mas pode ferir, pode ser mal colocada.
A cumplicidade do riso?
Pois, com os meus amigos do café tive tanto isso... Foi isso que tornou suportável aguentarmo-nos uns aos outros mais de 20 anos. Tínhamos até uma espécie de código: inventávamos alegria! Inventar comicidade para situações trágicas, que é um grande processo de nos defendermos na vida.
Essa não é a essência do seu Molero? Poderia ser facilmente catalogado como uma comédia, quando, na verdade, condensa a vida toda.
A tentativa foi essa. Se calhar falhada, mas foi essa.
Imagino que esteja farto de falar do Molero.
É verdade que sim.
Tudo o que tem dito na nossa conversa, encaixa e está presente no Molero.
É um projecto de vida, uma filosofia de comportamento.
Há um capítulo no «Reduto Quase Final» que se chama «Qual é o lado mais cómico disto?».
Sempre me aguentei um bocado nessa área, do lado cómico de qualquer situação: o Mário Soares a discursar, a eleição americana, a filosofia budista.
Inventar a comicidade é também uma tentativa desesperada de nos mantermos à superfície.
É sempre. Os ritos, que incluem o riso e a dor, podem não aparecer numa situação social, mas são a nossa condição humana. Quando as pessoas não riem, ficam muito tristes; quando riem, é acompanhado da tristeza que está a ser coberta pelo riso. Como não há total transparência, há uma questão do comportamento de ordem social. Vivemos a solidão e vivemos com os outros, que são o tal inferno de que falava o Sartre.
Há pouco falávamos da Marília e, atalhando por outras coisas, não soube como apareceu a sua filha Rita.
Aí está outra surpresa. Porque a Marília não podia ter filhos, segundo informação médica. Quando casámos, ela disse-me «Olha, não posso ter filhos», e eu «Ainda bem, porque só fico refém de ti e tu de mim». [pausa] Não sei se isto é curial..., mas no dia em que nasceu a Rita, tanto podia nascer a Rita como morrer a Marília. Ficou a Marília bem e nasceu a Rita. Aceitei o nascimento da Rita com enorme alegria, é sempre uma enorme alegria o nascimento de um filho, mesmo para gente como eu que tem medo ou respeito pela situação. A partir desse momento, fiquei ligado à minha mulher e à minha filha e a minha vida foi condicionada em função de tudo isso, até hoje é, não é Dulce?
Depois de encontrar a pessoa, a Marília, a Rita, a Dulce, entrega-se absolutamente. Precisa de ter uma pessoa em quem se deposita?
Não sei o que seria se fosse sozinho. Era muito mais desorganizado, era muito mais difícil viver, porque tenho grande dificuldade de enquadramento social. Talvez conseguisse uma solidão aceitável. Não tenho medo da solidão, não tenho é sentido prático para a vida. Dou muito pouca importância ao dinheiro, já o tenho dito; não consigo acertar com esse lado necessário. Você pergunta-me? «E não ganha dinheiro?» Sempre ganhei dinheiro a fazer aquilo que queria! A minha vida foi ganha toda a escrever.
Acredita nos anjos da guarda?
A que é que chama anjos da guarda?
À Dulce. A alguém que o salva.
Em certa medida são. A vida da Dulce é vivida em grande parte em função de mim. Num plano metafórico, podemos chamar-lhes anjos da guarda. Aí pode incluir-se o que referi há pouco; tenho uma grande estima pelos não beneficiados. Se não tivesse pessoas que me ajudassem directamente, seria um não beneficiado.
Não foi propriamente um menino sozinho. Era um rapaz de rua, que fugia do pai severo.
Pois! Ia ao cinema e não ia à escola, era um faltoso. Tinha dificuldade em concentrar-me nas aulas, se bem que houvesse uma ou outra disciplina onde era brilhante.
Que eram?
Português, sempre fui muito inventivo nas redacções. Não sei se escrevia bem ou mal, mas os professores achavam que devia ir para Letras, e eu nunca fui. Também Geografia, liguei sempre a Geografia a um certo sentido de diáspora. Sempre gostei muito dos lugares imaginários do cinema e dos livros. Nunca senti necessidades que fossem reais.
Porque é que foi para a Escola Comercial e não para as Letras?
Andei na Escola Industrial, onde perdi por faltas por causa do cinema. Na Escola Comercial perdi também por faltas por causa do futebol à porta da escola. Enquanto houvesse luz!, e quando não houvesse luz havia a luz dos candeeiros! Fiz até ao terceiro ano.
Mas porque não as Letras?
A obrigação oficial transtornava-me os planos pessoais. Preferia ir buscar os livros que queria e que por fora me indicavam; digamos que era uma escola paralela. Achava a instituição pesada, chata, cheia de obrigatoriedades, de enganos. Não obstante, estou a falar há uma hora consigo e a minha ignorância é enorme! Não descobri nenhum tesouro de informação, tenho imensas falhas de ordem académica. Nem sequer há, nesta minha apropriação das coisas, uma linha de organização interna.
As suas paixões foram desde sempre três ou quatro: o futebol, o cinema, os livros, e as mulheres.
A ordem é que é complicada! Não sei pôr ordem nisso! O carácter lúdico do futebol; enquanto tive pernas para jogar à bola, andei a jogar à bola. Nunca fui jogador, como se calhar não sou escritor, significativo. Mas sempre cumpri o desejo das pernas jogarem à bola.
Jogava descalço ou de sapatilhas?
Jogava na rua com uns sapatos velhos que a minha mãe me dava. Os polícias corriam atrás de mim, eu corria muito bem, fugia muito. Estafava-me a jogar à bola, chegava a casa e a minha mãe batia-me, dava-me palmadas porque eu não almoçava, passava a vida no futebol ou no cinema. A minha vida foi muito isso. Já nos jornais, tinha uma grupo noctívago, íamos para a Brasileira. No «Gráfico de Vendas com Orquídeas» há uma nota fúnebre sobre o Roussado Pinto, que foi meu companheiro, e que define bem esse espírito de grupo dos jornais. No fundo, sabíamos todos que estávamos contra; havia um inimigo localizado, agora o inimigo é um bocado invisível, está disseminado.
Fixemo-nos, ainda, no futebol e na infância. O seu pai era um antigo árbitro de futebol.
Não gostava que fosse árbitro, mas do lado heróico dele gostava muito. Enganava-se a marcar faltas, insultavam-no nos campos; em casa dizia-lhe «Ó pai, os gajos não percebem nada daquilo», e sabia que ele às vezes se enganava. Era um personagem curiosíssimo: árbitro de futebol, escrevia artigos para o «Record», escrevia letras que os fadistas da época cantavam, e tinha sempre um olho em mim para ver o que ia fazendo. Então comecei a fazer versos de circunstância. Eu, e um grupo de gente, decorávamos os poetas e dizíamos poemas uns aos outros. Os de fora ficavam a olhar para a gente, «Mas quem são estes maluquinhos que estão a dizer poemas uns aos outros?»
É verdade que escreveu uma letra para o Tristão da Silva?
O meu pai pediu-me uma letra para o Tristão da Silva, a ganhar 50 paus. Fui ao Salvaterra ver a estreia e ele pagou-me os 50 escudos nessa noite. Era uma coisa inclassificável!, relacionada com «a bandeira, nobre dano, esfarrapada»! Não tinha classificação! Ele cantou aquilo bem; mas depois nunca mais ouvi e suponho que nem foi recolhido para nenhum disco. Nunca mais vi o Tristão, nem voltei a escrever versos para o fado.
Em casa cantava-se o fado?
A minha mãe cantava muito bem fado, o meu pai escrevia versos. Eu fazia versos, não eram para fado, seriam para um possível livro, mais tarde. Um amigo meu do Diário Ilustrado acabou por caçar os meus poemas que estavam espalhados pelos suplementos literários, mandou-os para um concurso da Ática. Foi feito à minha revelia, «Já estão lá os poemas!» Eram uns poemas, pá..., enfim, cheios de ressonâncias do Cesário e do Eugénio de Andrade.
Qual foi o resultado do concurso?
Fiquei em segundo lugar, com menção honrosa, para ser publicado oportunamente! Nunca mais soube disso. A minha vida é feita de grandes buracos.
Como foi a sua relação com o Eugénio de Andrade?
Foi muito importante para mim. Leituras que fiz, que ele se calhar não fez mas que me mandou a mim ler... A história, que já tenho contado e recontado, é a seguinte. Fui para as Caixas de Previdência, emprego arranjado pela minha tia Edite que tinha uma certa relação com os poderes instituídos. Conheci lá o Eugénio de Andrade e o Jaime Cortesão Casimiro, que perceberam que eu tinha algum jeito para as palavras e andaram três anos a leccionar-me literatura. Não foram só as conversas, e verem os meus poemas e emendarem-nos; cada um procurava dar-me linhas de orientação que lhes eram adstritas. O Eugénio depois de ler um poema meu disse assim: «Ó Machado, você sem o Pessoa não vai lá, ninguém vai lá». Com 18 anos, fui ler o Pessoa todo para a Biblioteca Municipal. Trouxe-o para a mesa do café, foi uma festa com o Pessoa, descobrimos imensa coisa com o Pessoa.
Era nessa altura que ia à Barateira alugar livros?
Aí está. Misturava os policiais com as aventuras e com os filósofos.
O Eugénio sugeria-lhe policiais?
Não, não. O Eugénio era de literatura mais refinada. Eu e os do meu grupo íamos buscar livros policiais porque gostávamos de comparar os textos policiais com os textos mais sofisticados, ver como isso funcionava.
As pessoas da minha geração não conseguem imaginar o que é alugar livros numa livraria.
Pois não sabem. Misturado com isso, éramos espectadores diários de cinema. O filme mudava todos os dias, e eram dois. O filme de fundo era o mais recente, e o filme que completava cartaz era o melhor. Essa triagem no cinema, na literatura, não sei como tínhamos tempo para tanto. Trabalhava já nos jornais, e tinha horários tremendos: entrava às seis da manhã, saía às duas da tarde, conseguia a noite livre para ir ao cinema. Nos intervalos entre o jantar e o cinema, tínhamos os livros e a discussão na mesa do café, «Dá cá este, dá cá aquele», era assim feito o aluguer dos livros. Consoante agora se alugam vídeos. Íamos à Barateira e escolhíamos os livros. Tirei obras primas só pelo título, e depois vi que eram obras primas. Aconteceu-me com o primeiro Camus, os primeiros Boris Vian, com o Céline da «Viagem ao fim da noite». Foram milhares de livros lidos assim, uns deixados na primeira ou segunda página, e noutros fui seduzido. A empatia do leitor com o livro não tem explicação. Andar à procura do livro ideal, não há! Há leitores para livros. No fundo, o leitor faz o livro seu. E ainda tínhamos tempo para ir jogar futebol ao domingo todo o dia, de Inverno ou de Verão.
É um mistério insolúvel como o tempo dava para tudo.
Era um tempo mais lento e aproveitável. Aproveitávamos todo o possível excesso e integrávamo-lo na nossa existência. Foi muito rico, aquilo. Muito rico porque muito feliz. Éramos só nós. Fui o único que veio para o plano público. Havia um que fazia poemas todos os dias; nunca lhos vi.
Mostrava os seus ao grupo?
Eles queriam ver o que escrevia. Quando fiz o Molero, a Marília foi a primeira que ouviu. Depois chamei os meus amigos lá a casa, os sete, e fiz a leitura do Molero. «Ó pá, esses somos nós, mas como é que tu conseguiste fazer uma coisa tão nossa?» Identificaram-se completamente.
O grupo ainda existia? Já tinha 47 anos quando escreveu o Molero.
Já estavam todos casados e com filhos e barrigudos! «Venham ver o que escrevi por causa da nossa juventude e da nossa infância».
A reacção do grupo foi sobretudo emotiva?
Foi. A surpresa foi, talvez, ver um texto escrito que procura unir pontas diversas. Já depois do livro impresso, foi para o Eugénio e para outras pessoas. Nunca mais vi o Eugénio.
Há uma aparente incongruência: como é que alguém que quer ser escritor desde sempre espera até aos 47 anos, se exceptuarmos os três policiais que foram escritos numa contexto muito específico, para escrever o seu primeiro livro e tem depois a coragem de o dar à publicação?
Fiz uma espécie de tirocínio pessoal até essa altura. Os próprios romances policiais, eram um bocado subvertores; a linguagem procurava ser americana, mas muito cortada por paródias europeias. (Imagine um tipo, no mercado do crime americano, implacável, que tem cultura! A incongruência dos romances policiais, é que o tipo fala aos outros do mundo do crime como se estivesse num plano superior, «Pois o Rimbaud também pensava assim»; o outro gajo sabe lá quem é o Rimbaud, o que é que isso interessa para a conversa!). Este lado gozão dos romances policiais era também um apetrechamento para uma possível escrita minha. Estava a fazer um curso de aprendizagem da minha própria escrita para escrever um dia um livro.
Assumidamente sempre quis ser escritor?
Sempre quis escrever um livro. Queria ser jogador de futebol, actor de cinema, um pouco filósofo, e queria ser um novelista, um poeta. A certa altura tive de fechar portas. Ficou a porta do escritor possível. Escritor possível, porque sempre tive um grande respeito pela escrita e pelos grandes escritores.
Uma vez disse que procurava uma literatura desencasacada.
Talvez seja isso, e uma liberdade de linguagem que não sei se seria aceitável na estrutura cultural. Se calhar não era. Tenho a sensação de que os poderes culturais me colocaram à margem, e sinto até um certo orgulho disso; não a praça pública, que o livro foi sempre muito bem recebido. Colocaram-me à margem porque aquilo não tem colocação possível no que podemos chamar o desenvolvimento da literatura portuguesa.
Não ter catalogação é uma coisa, ser incontornável na produção portuguesa do século XX é outra.
Então o que é que acha?
Também pode ser por não frequentar os grupos alinhados.
A Dulce às vezes fala nisso.
Imagina-se a frequentar a Feira de Frankfurt ou o Salão de Paris?
Aí é que está. Talvez saibam que não me querem e que não quero ir para lá. Não sou facilmente arrumável, nem no livro nem no meu comportamento no dia a dia. Às vezes vou a colóquios e não sei bem porque lá estou. Não sou convocável de uma forma geral. É um bocado preguiça, também... As minhas razões fundamentais têm que ver com o meu estado de espírito.
E a ambição?
Não tenho ambição. Fiz o que queria fazer, que era escrever um livro. Fiz mais do que isso, que foi escrever outros livros, que não pensava escrever.
Qual era a sua intenção, queria escrever «O Livro» ou ser um escritor tout-court?
«O Livro» era fundamental. Não me preocupava a carreira de escritor. Os outros livros foram acontecimentos inesperados. Eu saio de um drama enorme, a morte da Marília, e saio para um fado patético que é o «Discurso do Marceneiro». E depois aconteceu-me escrever com a Dulce a meias...
[Dulce - Ai a meias...]
Chamo-lhe a meias porque escrevia eu à noite e ela de manhã lia e chorava! Depois levava o texto para a minha letra ficar legível e eu nessa mesma noite dizia: «Não Dulce, já não é essa página». Estava sempre a refazer o livro, o «Reduto Quase Final», um livro quase de arrumação final das coisas. Tive quase sempre a tentação de desistir.
Não me parece que seja desistir apenas da literatura. O que aí está é o horizonte da morte em permanência.
A intimidade com a morte é saudável. O medo da morte condiciona as pessoas, «Ai a morte, ai a morte». Não. A aceitação da morte obrigatória é útil: torna-nos mais soltos em relação às coisas, menos necessitados de honrarias. Percebe a minha ideia? A minha relação incapaz com o poder talvez se relacione com isso.
Vamos, então, à preocupação e ao desejo de escrever «O Livro». Sentiu-se exaurido depois do Molero?
No fundo era isso. Numa entrevista que o Nuno Artur Silva me fez, perguntou-me «Quanto tempo demorou a escrever este livro?». Eu disse «Talvez a vida toda». Estando ali a vida toda, do que queria dizer e que era fundamental, não se justificava que fizesse outro livro por razões de carreira.
O começo do Molero remete-nos para «o sótão da infância», matricial da vida toda. Depois do ajuste de contas com a sua infância, acha que está a viver para escrever «O segundo livro»?
Parece que as pessoas me estão a empurrar para isso. Não sei se tenho horizonte para isso. Estou há dois anos a escrever um texto semanal para o Jornal de Notícias e as minhas reflexões já não têm que ver com a invenção da ficção. Estará a mudar o meu sentido das coisas? Acho que está. Recuso fazer ficção neste momento, desliguei um pouco. Daí não ter lido ficção nos últimos anos.
O que é que lê?
Leio os investigadores, os gajos que procuram explicar o mundo e o sentido da vida, essa coisa toda, e que também não me explicam grande coisa. Faço parte de uma geração que estava à espera de uma renovação do Homem, no sentimento e no comportamento. Trago uma herança, pequena, dos escritores que chegaram à terra de ninguém: essa gente que se confrontava com a perda de uma harmonia universal, que se defrontava na sua solidão e se interrogava. São muito assim os existencialistas franceses e os realistas americanos. O real americano é muito forte; e a angústia e dificuldade de percepção das coisas dos existencialistas...
É também dessa terra de ninguém que fala quando fala no Molero da última fronteira?
Onde tudo é possível? Claro que na vida normal não é possível, esse seria o lugar da utopia. Que não há! Pelo menos nos tempos mais próximos parece que não há lugar para ela. É também uma forma de fraternidade humana, (cá estou eu falando dos não beneficiados!), em relação a tudo o que não resulta, às vidas apagadas e anónimas. O lado virtual rouba-me o espaço do real. No entanto, aquilo que escrevi tem uma componente virtual que é uma espécie de sucedâneo de um real impossível. Será que é o que acontece hoje, o virtual substitui o real que já não é possível?
Qual é que prefere? Em qual é que vive? É como se fosse uma dupla existência: o homem que pensa e escreve estas coisas e o homem que tem uma filha, que dirigiu a revista Tintim, que escreveu romances policiais.
Sou como todos, um ser cheio de contradições. Se lhe disser que fiz o Tintim com um enorme prazer, era o meu lado infantil aos 30 e tal anos, não condiz com o que estou a dizer! Assumo a contradição permanente. Assumo a contradição de preferir o Chandler aos escritores americanos famosos. Porque é que prefiro? Talvez a minha atracção pela causa menor, ou aparentemente menor; às vezes não é menor.
A atracção pela causa menor faz rememorar a simplicidade dos anos do Bairro Alto.
Talvez seja. Nunca perdi esses códigos. Mas já não vou ao Bairro Alto nem me entendo com o que se passa lá. Entendo-me com o meu imaginário. A procura de um real que me vá permitindo sobreviver.Talvez «O que diz Molero» seja uma fuga, o meu entendimento de que esse real já não tem aplicação. É uma afirmação de linguagem, pronto. Fernando Pessoa diz que a minha pátria é a língua portuguesa, e houve um agora que disse «A minha pátria é a minha linguagem». Tem muito que ver com a linguagem. A vida do Joyce talvez seja a linguagem do Ulisses, a linguagem de um sítio. A minha será um pouco isso. Já não tenho esses instrumentos. A novidade em mim desapareceu.Tenho pena de não me surpreender quando escrevo, já não sou capaz.
Ainda no princípio da conversa se espantava de não saber que frase diria e hipoteticamente escreveria no segundo a seguir.
Isso sou eu nos meus melhores momentos, nos meus melhores momentos quando escrevo. Já não sou o rapaz que andou a fazer o Tintim. O lado solitário da escrita é muito verdadeiro. Se calhar não é tão solitário porque tenho o apoio caseiro. Tenho um primeiro leitor, é o princípio de tudo. Estamos sempre à procura de destinatário.
A sua âncora à vida são as palavras?
Continuam a ser, mas cada vez mais difíceis, fogem-me. Quero fazer o jogo das palavras e comunicar com o outro. Mas às vezes sinto-me... Qual é a palavra Dulce? Sou sincero quando escrevo, mas é uma sinceridade de passagem. E acho que nunca saiu bem.
As crónicas?
Tudo, tudo o que escrevi nunca saiu bem. Tive sorte nalguns momentos em ter conseguido encontrar a linguagem. Há uma grande sensação de perda na minha vida. Os ganhos que tive, são acompanhados da perda da não conclusão. Mas se calhar isto não tem que ter conclusão! Esta nossa conversa, que é uma conversa fraternal, talvez explique o melhor que há na vida: não há soluções que possam ser milagrosas. Porque tudo o que se procurou organizar embateu sempre no exagero do poder. Daí a minha costela anarquista! Quando nós não precisarmos de tantas coisas inúteis, estamos no bom caminho.
Não sente o prazer do supérfluo?
Por vezes o supérfluo é uma grande substituição para o real abominável. Falei há pouco da minha juventude; nós inventávamos a vida a cada minuto! O prazer do supérfluo é uma grande compensação. Os valores atribuíveis ao que se chama sucesso particular, a mim não me dizem muito. Procuro outra coisa qualquer que não sei bem o que é. A solidão a arranhar, a arranhar... É natural que o Goethe no leito de morte tenha dito «A luz, a luz», que ele nunca encontrou.
Trata-se sempre de uma demanda: a última fronteira, a última palavra.
É isso mesmo. E é quase inesgotável. É ganhar as coisas e perdê-las logo a seguir. Lá está a tal história, faz-se caminho andando. Não há metas. Eu gostaria que houvesse uma meta de harmonia universal, mas não há. As pessoas são diferentes; e nessa diferença encontraram um processo de harmonia.
Pode ser ainda a demanda da inocência. E é ainda e sempre de morte que falamos.
É muito nova ainda para pensar nisso! E eu estou a incutir-lhe ideias tenebrosas. Mas isto tem um fim. E que raio de coisa é esta que tem um fim?
Defrontou-se com a ideia da morte aquando da morte da Marília?
Já antes, nas leituras, num acto teórico. Olhava para o lado e via um homem de 60 anos, para mim era velho. Pensava, «Mas eu vou chegar a esta idade, com bengala, para quê?, isto faz algum sentido?».
Então, abençoados os néscios?
Hum. Não sei. Se for um néscio premeditado, «Eu não quero saber disto para nada», já não é, é uma escolha filosófica. Agora, os simples que vão chegar ao reino dos céus...
Os inocentes?
Não é bem a mesma coisa. Ainda preservo alguma inocência organizada através do intelecto. Uma inocência que já perdi e que quero recuperar, não sei como. Recuperando a pouco e pouco, nestas tentativas de ser sincero, de ser outra vez o melhor que fui. Um florescimento permanente, uma primavera que foge todos os dias. É estranho como envelhecendo, perdemos tudo. Ganhamos alguma sabedoria que não serve para nada, e temos necessidade da simplicidade das coisas. É isto, não é?
Acho que sim.
Que idade tem?
28.
Eh pá, tão pequenina.
Publicada no DNa, do Diário de Notícias, a 25 de Março de 2000
Dinis Machado morreu em 2008