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Anabela Mota Ribeiro

Ivo Pitanguy

24.01.23

O mais famoso cirurgião plástico do século XX cruzou o mundo como se ele fosse um mapa estendido sobre a mesa. Sabe o que é a joie de vivre. Tem muito para contar. Esta foi uma entrevista exclusiva para a Pública.

Chegámos à ilha de helicóptero. Uma ilha no arquipélago de Angra dos Reis, uma amostra de paraíso, a sua arca de Noé. Faz o tour de grand seigneur. “Aqui faz-se a criação de porcos, aqui alimento meu viveiro de peixes, isto que você está ouvindo é uma sabiá, não chega muito perto da anta, que ela está amamentando.” Pássaros de cores inverosímeis, água translúcida, vegetação luxuriante; mobiliário do jardim e traços arquitectónicos de formas orgânicas. Um silêncio cortado pelo esbracejar das folhas, pelo sons que vêm da terra e do mar. Nuvens ameaçadoras ao fundo. Chuva tropical, por fim. Champanhe e vinho francês, livros e amigos, T.S. Eliot que vem à conversa com a mesma facilidade como que diz que os ovos de codorniz são afrodisíacos. Mas também Schiller, ou Dante, ou Cervantes, ou Tennyson, ou Guimarães Rosa (que descreveu a terra de gente da terra onde o pai nasceu). Citados na língua original, com elegância, como um sopro. As pessoas que passaram pela ilha, Leni “que se sentou aí onde você está”, Brigitte a quem não seria preciso chamar Bardot. Esses e os outros, a população carenciada que trata na Santa Casa, aqueles de quem não sabemos o primeiro nem o último nome. Todos. Um homem é uma ilha, Pitanguy é um arquipélago. De vidas, de pessoas, de viagens. Tudo converge no seu jardim do éden. A ilha é o seu rosebud.  

Quando há 40 anos (número redondo) a comprou, o seu desejo foi o de “agredir o menos possível” aquela superfície. Há partes que permanecem virgens, impenetráveis. Como ele. Aquela seria a sua terra prometida, qual Ulisses. O mundo foi a sua aventura. Que aventura.

 

 

Se vamos inevitavelmente falar de beleza, começo por pedir que descreva a beleza da sua mãe.

Era muito clara, os cabelos eram pretos. Teve a qualidade de nos fazer pensar, e o meu pai também, que os únicos valores que importam emanam da natureza humana. Valores mais espirituais que físicos ou materiais. Tratava todos de uma mesma forma, e indirectamente estava nos ensinando que o ser humano é o mesmo, independente da sua cor, da sua dimensão, da sua postura aparente. Era uma estrela: estrelas têm luminosidade própria, não reflectem luz de ninguém.

 

A paixão pelo belo talvez derive da relação que teve com a sua mãe…

A minha mãe tinha, não uma paixão, mas um amor profundo pela vida, que passou para nós. A vida tem uma estética própria, e essa estética é a harmonia dos factos. A harmonia é o indispensável em qualquer objecto de beleza. Esse sentido que minha mãe me passou é a minha conceituação de beleza. Que não é a conceituação do poeta puro, do artista com a sua tinta, do escultor com a sua pedra. É uma conceituação de sentido amplo, quase dostoiévskiano: “A beleza salvará o mundo”.

 

Alguma vez operou a sua mãe?

Não. Minha mãe nunca fez nenhuma operação estética. Me ensinou também que a pessoa, quando se tolera, não precisa fazer cirurgia nenhuma! [risos] Importante é você gostar de você. A finalidade da cirurgia é trazer o bem-estar; e quando ela pode, tem uma legitimação enorme. Na minha época, minha conversa com minha mãe não era sobre cirurgia; era conversa de jovem estudante. Tinha um peito poético, não sabia se queria ser escritor, médico...

 

Antes de ser o Ivo Pitanguy, o mais famoso e melhor cirurgião plástico do mundo, quem é que era?

A questão é bonita, mas acho que sempre fui uma pessoa como as outras, com minhas indagações, minhas procuras... Quando era jovem, era muito “esportista”. Dos 11 aos 16 nadava todos os dias. No Minas Clube, em Belo Horizonte, foi criada uma equipa para ganhar campeonatos nacionais; eu era parte dessa equipa, junto com o Fernando Sabino.

 

Famoso escritor brasileiro.

Meu amigo de infância. Como era o Hélio Pellegrino.

 

Hélio foi o mais reputado psicanalista do Rio. Amigo íntimo do escritor Nelson Rodrigues.

Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos: todos eram da mesma geração, com uma diferença de três, quatro anos. Belo Horizonte era uma cidade pequena, hoje é uma cidade de três milhões de habitantes. Formávamos um grupo. Entrei para medicina de uma forma muito espontânea.

 

O seu pai era médico. Numa cidade pequena, do ponto de vista social, isso colocava-o numa franja à parte?

Não havia propriamente uma elite (como se diz hoje), mas algumas pessoas eram da alta burguesia mineira – ou seja, médicos, advogados; não havia o industrial. Fui criado num ambiente que não era de grande riqueza, mas que era de grande fartura. Um ambiente intelectualmente muito rico; minha mãe lia muito, meu pai também.

 

O que é que liam?

Líamos sobre tudo, líamos todos os clássicos, cultura francesa. Sem nenhum pedantismo, apenas com o objectivo de cultuar as coisas do espírito. Líamos Cervantes, Benavente, Shakespeare, Goldoni, Papini. Colectámos o que havia de melhor na literatura mundial, alguma coisa portuguesa ou brasileira, mas não obrigatoriamente como referência principal.

 

E havia uma cultura helenista? Tem na ilha estátuas a que chamou Calipso, Circe...

Muito grande. A cultura helenista, na época nossa, se misturava com a cultura genérica. Li a Ilíada e a Odisseia várias vezes. Ulisses é um pouco o meu herói. Porque o Ulisses é um homem que tentou, um homem que ousou. Ulisses aceitou todas as tentações, e a única maneira de conhecer realmente a vida é aceitar a tentação, e vencê-la. Oscar Wilde: “The only way to get rid of temptation is to yield to it”. [A única maneira de se ver livre da tentação é não lhe resistir]. Quando você é um lutador, passa a ter um lado ulissiano de procurar a cultura, o conhecimento além do firmamento.

 

Quando Ulisses parte, intui que a sua demanda será tão exigente? Terá tido ao partir a confiança necessária? Estou a servir-me da aventura de Ulisses para projectar estas questões em si.

Ele parte porque ele não quer ficar enferrujado. “To stay and be rusty or to go, looking for the knowledge on the distant cloud, and this great spirit yearning for knowledge...” [Ficar e enferrujar ou partir em busca do grande conhecimento numa nuvem distante e manter o espírito sedento de conhecimento]. Tennyson. Todos se preocuparam com Ulisses, porque ele representa o mito. A minha relação com Ulisses não foi na infância, mas na adolescência.

 

Em algum momento se sentiu Telémaco? E sentiu o seu pai como a encarnação de Ulisses?

Não, o Ulisses era eu. Queria ser Ulisses, Telémaco e Circe. Circe transformou os homens todos em porcos...

 

A sua ilha chama-se Ilha dos Porcos Grandes. Quem lhe pôs o nome?

Eu não, foram os navegadores portugueses. (Interessante, eu nunca tinha ligado isso. Está vendo aquele?, é um “heron” [garça], balançando na árvore... Bom não importa, tem vários, nasceram todos aqui). Todos nós queremos ter uma vida aventurosa. Ulisses teve muitas derrotas, e foi superando, e foi voltando. A vida não é feita de momentos tão épicos. Mas a constância, a continuidade, e o interesse pelo que teve a sorte de ser abraçado, faz com isso seja uma realidade. E não tenho medo do desconhecido.

 

Repito a minha pergunta: antes de ser o Ivo Pitanguy, era quem?

Era um garoto sonhador, muito curioso. Nunca fiz da realidade, embora respeitando-a, a minha mestra, para que eu não fosse seu escravo.

 

Voltemos à cronologia: foi criado em Belo Horizonte e depois cursou medicina. Se o seu pai gostava, talvez não fosse ruim...

É um motivo, (falei agora), mas podem ter sido muitas coisas. Sempre gostei do ser humano. A medicina é um caminho fácil para ajudar o outro. Eu não sabia que havia cirurgia plástica...

 

Nem sabia que tinha umas mãos tão dotadas...

Não: defendo que a mão é o instrumento primordial do cérebro. O fundamental é o que você pensa, o que você concebe –  a mão executa. O pensamento é la clarté [a clareza]. A mão segue, ela não decide nada. Já vi cirurgiões que operavam quase tremendo, e outros fantásticos de movimentação que faziam uma porcaria. É evidente que uma habilidade mínima é necessária para qualquer ofício que seja artesanal, mas é só isso. Procurei sempre conceituar os factos antes de actuar sobre eles. A procura é um temperamento. Tem pessoas que não procuram, eu procuro. E tem pessoas que gostam de fazer tudo junto; “choisir c’est renoncer” [escolher é renunciar], Sacha Guitry disse – é perfeito!

 

Ainda não percebi porque é que foi médico e não foi escritor.

Eu lhe expliquei com vários motivos porquê; exactamente porquê, não sei, até hoje não sei. Fui médico e achei que aquilo era um caminho; porque é que fui cirurgião? A primeira operação que vi, desmaiei!

 

Como é que foi?

Eu era estudante de medicina, e meu pai me levou numa clínica para ver uma cirurgia. Tinha medo de sangue. “Meu filho, você viu o sangue como espectador, e qualquer pessoa normal tem uma reacção como essa”. Foi muito bom comigo, meu pai. Às vezes, a palavra, no momento preciso, ajuda uma vida. “Posteriormente vai sentir que o sangue é uma parte do acto cirúrgico, vai interrompê-lo, vai salvar alguém de uma hemorragia”.

 

O que é que o faz vir para o Rio?

Estava no quarto ano médico. O Rio foi um acidente na minha vida. Naquela época, a cavalaria era obrigatória, e não tinha destacamento de cavalaria em Belo Horizonte; eu teria que perder um ano ou ir para o Rio, (que tinha um destacamento de cavalaria). Vim para os Dragões da Independência para não perder o ano na universidade. Havia um concurso no pronto-socorro do Hospital do Rio, para interno; sem saber, estava preparadíssimo, tirei um dos primeiros lugares. Junto com a cavalaria, fazia internato num hospital de urgências, numa época de navalhadas, de avenidas que se abriam com navalhas.

 

Avenidas que se abriam com navalhadas? Significa um grande corte?

Da comissura labial até ao trago. Era uma maneira de marcar. Para deformar. Muitas vezes dava uma paralisia. Você consertava, fechava a ferida, mas ficava aquela cicatriz. Encontrei outro tipo de cicatriz: de queimaduras, sequelas... Voltar à vida, para essas pessoas, era difícil. Então, depois de salvar a vida e atenuar a deformidade, procurei, com os meus meios precários, ajudar.

 

Nasceu o cirurgião plástico assim?

Vi que aquilo era importante. Comprei umas agulhinhas melhores, menores que as do hospital. Senti que estava indo para uma cirurgia de detalhe. Na época não havia um ensino formal de cirurgia plástica – mesmo as escolas europeias não ensinavam. Fui para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos, que ganhei num concurso.

 

Foi fazer essa especialização directamente da licenciatura?

Tinha 22 anos. Fiz aqui mais um ano de profissão e fui para Cincinatti. Me deu um conhecimento importante do que eram os Estados Unidos, todos esses países, uma nação. Trabalhei dois anos, em cirurgia plástica, reparadora geral.

 

Era o pós-guerra. Operou estropiados?

Não. Isto se passou em 1952, por aí. Já tinham voltado há muito tempo os estropiados de guerra. Operei as pessoas estropiadas dentro da violência urbana. O hospital em que eu trabalhava, o Longacre, era um hospital de cirurgia plástica geral; operava deformidades congénitas, deformidades pós-traumáticas. Ao voltar ao Rio, criei um centro de cirurgia plástica da mão.

 

Começou aí, verdadeiramente, a sua carreira?

Eu já tinha um começo de clientela aqui e deixei tudo para voltar a ser estudante. Tinha mais de 26, 27 anos, e fui para Paris. Morei lá dois anos. Era o bouillon [caldo/mistura] do pós-guerra, com Sartre, Jean Genet, Édith Piaf, Juliette Gréco. Fiquei muito amigo da Juliette Gréco. Ela me adoptou. Naquele princípio, eu era um garoto simpático, agradável. Convivi muito com o Alain Delon, que já esteve aqui na ilha. Eram anos muito ricos. O mundo todo tinha se voltado para Paris, de novo.

 

Foi introduzido nesse mundo pela Juliette Gréco?

Não. Viajei com ela, ficámos amigos. Todo o mundo se conhecia. Tinha uma resistência incrível: trabalhava, andava de motocicleta para baixo e para cima, morava em Nanterre e ia para St. Germain. Convivi muito intimamente com essa Paris romântica. E guardando toda a curiosidade. A maior parte dos médicos têm formação numa coisa só; eu tinha uma formação ampla.

 

E mergulhou em Paris num momento em que a cidade estava em ebulição. Deu-se com os protagonistas, foi um deles.

Jacques Prevért: íamos muito ao La Rose Rouge, Rue des Reines, nº10. “Barbara, rapelle toi Barbara, rapelle quand même ce jour-là, Il pleuvait sans cesse sur Brest, il a crié ton nom, Barbara...” [Bárbara, lembra-te Bárbara, lembra-te quando naquele dia, chovia sem parar em Brest, ele gritou o teu nome]. Eu tinha dentro de mim aquela curiosidade profunda do garoto mineiro, que foi impregnado da cultura francesa, mas que nunca tinha tido a oportunidade de conhecer Paris.

 

Esse mundo que descobria em Paris era uma materialização de qualquer coisa longínqua, que estava nos livros e nas conversas com a sua mãe e com o seu pai.

É. Seria uma materialização de várias coisas longínquas, de que tinha conhecimento por livros, por conversas; eles mesmos só tinham conhecimento através de livros e conversas, não tinham conhecimento físico. De modo que havia o encanto do encontro, e o encontro com aquele pré-conhecimento. Essa Paris que encontrei, já não era a Paris dos anos 20, do Scott Fitzgerald, do Hemingway; era um país após a guerra, que ressurgia de novo.

 

De Paris foi para Inglaterra.

Foi onde fiz minha formação final.

 

Que ligação é que tinha com o Rio de Janeiro, ou com o Brasil, nessa altura? Escreviam-se cartas? Fernando Sabino trocava correspondência regular com Clarice Lispector, quando ela vivia no estrangeiro, com o marido, diplomata.

Praticamente não tinha ligação com o Rio.

 

Os seus amigos de Belo Horizonte vieram para o Rio. Desencontraram-se?

Vieram todos, e foram todos para literatura ou jornalismo. Indo para medicina, você se isola um pouco. E me isolei muito porque fiquei quase seis anos fora, nessa peregrinação de um lugar para outro, nessa aprendizagem. Fiquei expatriado. Quando regressei, não conhecia ninguém. Tive que me reintroduzir.

 

Fez sozinho a peregrinação?

Entre os Estados Unidos e a Europa, conheci a Marilu. Ela estava voltando, porque passou uns sete, oito anos estudando na Europa. Eu a conheci na casa de Nélio Baptista, que era o meu chefe de serviço do pronto-socorro; gostei muito dela logo de início, e senti que gostaria de tê-la para minha vida.

 

Do que é que mais gostou nela?

Não sei... Gostar não se define, se se define é porque não se gosta. Eu gostei do todo, da delicadeza, da presença, da inteligência, da cultura, da forma como se movia, e da beleza. Era muito bonita, e não tinha o papo das meninas que não tinham interesses culturais. Depois me ausentei de novo e ela foi para a Alemanha. Nós nos reencontrámos uma vez, em Espanha. Ela tinha até um namorado em Valência... “Não tem namorado nenhum, vai casar é comigo!” [risos]... Fui levando a coisa com força e convicção.

 

Raptou-a!

Quando voltei para o Brasil, ela ainda estava na Alemanha. Nos casámos fim do ano de 55? 59?, nem sei mais. Marilu...  Recomecei meu trabalho, com muito entusiasmo. Senti que este conhecimento adquirido era uma responsabilidade e que devia transmiti-lo. Não era usual: as pessoas que aprendiam guardavam para si. Não sei porque tive isso. Criei uma escola.

 

O serviço que continua a dirigir, na Santa Casa?

Sim. É uma escola que há mais de 40 anos vamos levando adiante. E ao criar a [minha] clínica, estabeleci uma união entre a parte privada e a parte universitária. Sem essa união, sentiria que a parte universitária era pobre. Eu tinha que enriquecê-la com meu ganho pessoal, da minha própria clínica.

 

[Segunda parte da entrevista, na sua clínica, em Botafogo. Uma semana depois]

 

Dalì fez desenhos para si e dedicou-os. “À mon ami...”. Conte-me porquê.

Você vê a grandeza do pintor: com um desenho simbolizou quase tudo o que a gente faz. Porque ele colocou Monsieur Pitanguy, e o M é a espada de um cavaleiro, eu estou montado a cavalo, o P é a espada. Aquela espada não está inclinada como D. Quixote, nem para a frente nem para trás, com medo; ela está em tensão, e o cavalo levanta uma pata também.

 

Reviu-se nesse desenho?

Revi aquilo simbolizando o meu ofício, o meu metier. A minha pessoa?, também, um pouco, o quanto eu posso estar ali dentro do meu ofício.

 

Privou com todas as figuras míticas do século XX. No outro dia, referiu-se à presença da Leni na ilha. Mas só depois de eu perguntar, esclareceu que era a Leni Riefenstahl. Importa que a Leni seja a Leni Riefenstahl? Em que é que é diferente tê-la como paciente ou ter como paciente uma pessoa carenciada da Santa Casa?

Se faço uma retrospectiva, diria que o importante são as pessoas que se encontram no dia a dia. É delas que você aprende muito mais e é com elas que pode sentir aquele aprendizado…, uma compreensão maior do ser humano. As pessoas que fizeram coisas importantes, na arte, na literatura ou no plano social, são todas pessoas interessantes, mas não transmitem obrigatoriamente coisas interessantes. Elas são interessantes pelo que fazem, pelo que representam.

 

Quando é que aprendeu a fazer essa divisão, a perceber a diferença que havia entre o sujeito público e o privado?

A pessoa é uma só. A pessoa que separa o que ele é e o que ele faz não é bom carácter. Por isso nunca quis fazer política. Eu sou a mesma pessoa. Guardo o mesmo respeito, trato da mesma forma. Isso aprendi na convivência com o ser humano: que ele é um só. E sobretudo, essas pessoas que você diz que poderiam ser importantes, quando estão dependendo, elas são tão dependentes quanto qualquer outra.

 

É sobretudo na fragilidade e na vulnerabilidade que nos parecemos?

É sobretudo na vulnerabilidade, na fragilidade, que demonstramos a nossa força. Porque, paradoxalmente, quando está mostrando a sua força, está mostrando alguma coisa, não está sendo. E quando está sendo, está sobrevivendo ao que os outros poderiam pensar, está sendo o que você é. É difícil avaliar o que é força e o que é fragilidade. Tem uma coisa muito bonita numa peça de Bernard Shaw, Candida – eu te contei isso, não contei?

 

Não contou. Como é que é?

É o marido, que é muito forte, e a mulher, que tem dois pretendentes; um deles, Marchbanks, é poeta. Quando tem que fazer uma escolha, ela diz: “What do you offer me?” [O que tens para me oferecer?], o marido diz todas aquelas coisas de potência que um homem pode dar a uma mulher, “My dignity, my position, my love...” [A minha dignidade, a minha posição, o meu amor…]. “And you, Marchbanks?”, “What can I give you?, my love, the weakness of my heart” [O que posso dar-te? O meu amor, a fraqueza do meu coração]. Ela diz: “I’ll go with the weaker of you two” [Vou com o mais fraco dos dois]. E vai com o marido. Quer dizer, aquela força era aparente, a fragilidade era uma força até maior.

 

Porque é que acha isso tão bonito?

Simboliza muitos aspectos da vida. Por exemplo, quando me perguntam porque é que os homens hoje fazem mais cirurgias do que faziam anteriormente, posso responder de mil maneiras; mas uma das coisas que digo é que a mulher ocupou uma força tal no mundo que ele pode se permitir aquela que é talvez a sua maior força: a sua fragilidade, e fazer o que quiser com o seu corpo. É uma coisa que parece tola, mas não é.

 

É diferente, para si, operar homens ou mulheres?

É a mesma coisa. A coisa mais importante, em qualquer cirurgia, é indicar bem, e perceber que aquilo que a pessoa está pensando não vai além das suas possibilidades. Ela não está te vendo, te endeusando, como um Doutor Fausto – falando de Goethe, uma pessoa mágica. Ela está te vendo como uma possibilidade.

 

Olham para si um pouco como um Doutor Fausto, aquele que restitui a juventude perdida, a frescura, a beleza?

Quando a pessoa olha, e acredita mesmo, não faz mal. Mas eu não tenho a poção mágica, nem quero ficar com a alma de ninguém.

 

Já teve a conversa à volta do mito Fausto muitas vezes? E com muitos paciente? 

Fausto é um tema muito interessante. É uma lenda que pertence à humanidade, Goethe tomou-a, outros poetas também usaram Fausto. [Christopher] Marlowe usou-o de uma maneira muito bonita; ele dizia a Helen: “May I find eternity through your lips?” [Posso encontrar a eternidade através dos teus lábios?]. No final, vem a beleza. A beleza, no sentido goetheniano, (e isso é um tema muito meu), é superior ao bom; ela contém o bom em si mesma. Os gestos se confundem, belus e bonus. Beau geste é o gesto bonito, e o gesto bonito tem que ser um gesto bom. A bondade está junto com a beleza.

 

O seu gesto representa a esperança. De vir a ser, parecer.

Existe uma promessa permanente. É o sentido stendhaliano: “La beauté n’est qu’une promesse de bonheur” [A beleza não é senão uma promessa de felicidade]. Porquê une promesse? É muito bonito: quando aspira o perfume de uma rosa, ele continua... “La beauté n’est qu’ un moment de bonheur [A beleza não é senão um momento de felicidade]: é um pouco mais duro, já é balzaquiano. Sempre pode falar da beleza eternamente, mas tangenciando, sem falar dela mesma. Porque não consegue defini-la.

 

Transformou-se no cirurgião que é, também, graças à sua cultura e erudição, tudo o que leu, tudo o que viveu? Ou o exercício médico é pura mestria técnica?

A medicina é uma arte aplicada, não é uma coisa normativa. É uma criatividade permanente, é um bom senso. E não existe uma habilidade – como lhe disse, a mão é o instrumento primordial do cérebro.

 

Operou mulheres lindíssimas, que não imaginaríamos que recorressem a si. Tem no gabinete fotografias suas com Marc Chagall, Sofia Loren. Estes encontros foram especialmente enriquecedores?

Tenho aqui, por acaso, algumas fotos. Nunca fiz colecção de fotos, não colecciono coisas assim. Todo o mundo dá a alguém alguma coisa. O mais enriquecedor é o contacto com a vida, o dia-a-dia, o esperar o dia de amanhã. A minha vida não é só encontrar as pessoas que querem fazer cirurgia...

 

O que é que aprende com uma milionária árabe que vem fazer uma rinoplastia?

O doente, de um modo geral, está muito preocupado com ele mesmo. Eu me enriqueço, no sentido humano, com você, com a sua entrevista. A pessoa te surpreende. Sempre tive uma vida muito rica, viajei muito, dei muitas conferências. É um tipo de..., não sei se a palavra existe em português: serindipity,...

 

Existe serendipidade: significa fazer descobertas e encontros felizes por acaso. Mas é uma palavra que quase não se usa.

Serendipismo vem de “serendipi”, que é o antigo Ceilão; os reis de Ceilão notaram, quando faziam um relato final da missão, que, muitas vezes, as coisas que tinham aprendido eram tão importantes, ou mais, do que a própria missão. Tudo o que souber associar na sua vida é serendipismo. Eu acho que a minha vida foi muito rica de serendipismo. [O meu trabalho], esse convívio, fez com que conhecesse muitas pessoas. Algumas me decepcionaram, outras me enriqueceram, tudo isso faz parte da vida. Umas foram pacientes, outras foram amigas, outras foram circunstanciais... Mas estou sempre preparado para encontrar outra pessoa.

 

Explique melhor da importância de manter a funcionar a unidade (que tem o seu nome) da Santa Casa. Podia, simplesmente, ter continuado a enriquecer na clínica privada.

A Santa Casa, para mim, é o maior enriquecimento. Pessoa não enriquece só com dinheiro, não. Sou o responsável directo por uma estrutura que criei. Acho que é meu mérito tê-la criado com pessoas muito capazes, com um espírito semelhante ao meu: querer dar, ensinar. É um grupo docente que funciona dentro do atendimento aos pacientes, sem nenhuma finalidade mercenária. Cada um deles dá um pouco do seu tempo e dá o outro à sua clínica privada. Quando perguntam porque é que a pessoa faz isso quando poderia estar fazendo outras coisas, é porque nunca fizeram isto...

 

O escritor Ruy Castro, no seu dicionário de figuras de Ipanema, refere-se a si como um Robin Wood da cirurgia plástica…

É mentira! [riso] Sabe que os ricos não pagam muito? Isso é conversa fiada... Trabalhando muito você vai produzindo, o normal, mas não tem nada de extraordinário. O que é importante é que criei uma estrutura que é universitária e é privada, e a privada ajuda a universitária.

 

É uma forma de dádiva ao seu país? Apostar na formação é apostar no futuro. E ajuda pessoas que de outro modo não teriam acesso a este tipo de serviço.

É. O futuro é o presente que você vive com intensidade e qualidade.

 

Na Santa Casa faz cirurgia reconstrutiva e também cirurgia plástica por razões puramente estéticas.

Fazemos as duas. Serviço de cirurgia reconstrutiva existe em toda a parte, mas um serviço que faça também estética, e que dê dignidade à cirurgia estética, não só académica como do ponto de vista do valor humano, não. A única forma de poder atender a essa população, era formando cirurgiões tanto na reparadora como na estética, e apelando à população para tirar esse lado de elite da cirurgia estética...

 

Num outro livro, Carnaval no Fogo, Ruy Castro fala da possibilidade de existirem meninas na favela da Rocinha com um nariz igual ao da Sofia Loren… Operadas por si.

Sabe que as coisas muito bonitas nunca foram tocadas? Ela [Sofia Loren] nunca mexeu no nariz dela. O bonito é sentir que existem pessoas bonitas em toda a parte, e a Rocinha, é um pedaço do Brasil…

 

Que idade tem? Oitenta?

Por aí.

 

Pensa no que deixa, no seu legado?

Todo o mundo quer ter um legado. O legado que posso deixar é o meu ofício. Que transmiti, que algumas pessoas vão seguir. Lancei agora um livro chamado Aprendiz da Vida, mas estou fazendo um outro chamado Carta a Um Jovem Médico. Falo da importância do lado humano, do contacto.

 

Fale-me do prazer de operar. Do prazer táctil.

Não é um prazer físico, não diria isso. Há um prazer no fazer, no dizer uma coisa que você acredita que é a sua verdade. Não há sensualidade na cirurgia. As leis são muito rígidas – a anatomia – não trabalha com a liberdade do escultor. Não é um prazer de Miguel Ângelo, que falou: “Parla Moisés!”.

 

Ainda não falámos da sua relação com o seu corpo.

É muito espartana, como com a vida. Sempre mantive uma relação com o meu corpo dentro do meu biótipo, com o melhor que ele pode me oferecer, e com muito respeito. Embora possa me permitir alguns excessos, mas não vou viver neles. O corpo merece um cuidado especial, é o nosso santuário. Até hoje tenho o cuidado de exercitar.

 

No seu livro de memórias tem uma fotografia de uma menina com a legenda: “Uma namoradinha que o Fernando Sabino e eu disputávamos”…

Eu sempre fui muito namorador, sempre gostei muito de namorar... não por esporte! A mulher é o animal mais bonito que Deus concebeu; apreciar a sua graça, sua beleza, é uma coisa que aprendi, e até hoje aprecio.

 

Quando, adolescente, disputava a namoradinha com o seu melhor amigo, olha-se ao espelho e perguntava-se: “Sou suficientemente bonito? Sou suficientemente alto?”. Coisas que, como bem sabe, interferem na auto-estima…

Claro. Se olhar para fotos minhas, de garoto, você vai ver que…  [aponta para outra fotografia no livro] Continuo esquiando.

 

E continua a nadar...

Continuo a nadar. Naquela época, o disputar tinha um sentido muito interessante… Está vendo aqui, a cavalo? [numa outra página] Era um garoto, tinha um físico muito bom! Ainda jogo o meu ténis pela manhã. Eu não vivo a idade, eu vivo o que eu sinto. Nunca me achei muito bonito, mas nunca me achei feio; era uma pessoa mais ou menos dentro do normal. Às vezes tinha que fazer um certo esforço para conquistar.

 

Já foi trocado?, recusado?

Claro, todo o mundo já foi, não é? Inclusive, você já foi. A mulher tem sempre uma postura de poder recusar e cabe ao homem considerar isso normal. O homem aceita um pouco mais, mulher é mais dura, mais capaz de dizer “Não”. O homem tem uma certa pena de dizer “Não”! [risos]

 

Sonhou alguma vez com as suas mãos?

Com as minhas mãos, não. A minha mão é mão de trabalhador, é larga, forte, com dedos curtos e finos.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2008