Rui Ramos
É um livro que pretende fazer uma “síntese interpretativa da História de Portugal desde a Idade Média até aos nossos dias”. Assinada por Rui Ramos (que coordena), Bernardo Vasconcelos e Nuno Gonçalo Monteiro, a obra está a transformar-se num fenómeno. Porque permite olhar para quem somos de um modo integrado, cruzando os planos político, económico, social e cultural, sobre cada época.
A edição do livro serve de pretexto para a conversa com o historiador Rui Ramos. Para olhar para Portugal, desmontar mitos, lançar luzes sobre aspectos inesperados. O retrato surpreende. Afinal somos este país?
Comecemos pelos mitos acerca de quem somos. Portugal é assim, os portugueses são assado. Quais são as coisas que achamos que somos, mas que não correspondem, vistas à lupa, ao que realmente somos?
Somos dez milhões, um rectângulo de cerca de 800 mil metros quadrados, com fronteiras muito antigas. Isso convida-nos a imaginar uma população bastante igual… não somos. O primeiro mito é que somos um povo uniforme, homogéneo. E somos plurais, sempre o fomos. Uma parte da nossa história tem como base essa pluralidade. Na Idade Média percebe-se um contraste entre o norte cristão e o sul muçulmano. Há actualizações disso noutras épocas, noutras formas; quando, por exemplo, o norte vota à direita e o sul à esquerda, desde 1975. Corresponde também a configurações agrícolas diferentes, dialectos diferentes, a estruturas de parentesco (antigamente) diferentes.
O que está na base dessa diferença norte-sul?
Essas diferenças têm a ver com a geografia, com a cadeia montanhosa central. Um rio, como o Tejo, divide o território e é a base para histórias diferentes.
É mais a topografia do que a economia? O país divide-se em norte-sul, mais do que em ricos e pobres?
A divisão faz-se depois em diversas linhas.
Concretize.
As civilizações rurais são diferentes. No sul, assentam na exploração em grande escala. No norte, numa pequena escala. Isso permite uma divisão diferente da propriedade, e tudo o que deriva daqui em termos de estatuto da população. Em termos de riqueza-pobreza, o contraste não é tão óbvio. Flutua. O que interessa é o seguinte: não sendo as bases da diferenciação sempre as mesmas, ela repete-se. Esse é um dos mitos, que tem consequências interessantes, quando, por exemplo, classificamos alguns produtos como sendo nacionais. O fado como canção nacional? Altamente discutível!
Não há relatos de em Trás-os-Montes o fado ser uma forma de expressão nacional…
Exactamente. Ou as touradas. Não são um costume nacional. Só no século XIX, com o veraneio nas praias do norte, foram levadas para cidades como a Figueira da Foz. Primeiro era preciso ter touros de lide, que não havia no norte; também era preciso ter um tipo de sociedade, que não era a do norte. É curioso como uma parte da nossa identidade é uma negação do que somos.
Outro mito.
A ideia de que somos únicos, de que a nossa história não tem paralelo.
E aí pensa-se sobretudo na Expansão.
Não só. Pensa-se na Saudade e no Sebastianismo. A História dos historiadores é por vezes o desmentido disso. Não fomos os únicos que. Que: o que quer que seja. Durante anos, a História de Portugal foi ensinada como uma história extraordinária. A única Expansão; o pequeno país que construiu o Império – isto pelo lado positivo. Do lado negativo: o único país que não passou por uma Revolução Industrial, onde a modernização falhou. Ora nada disso é verdade. Essas afirmações pressupõem um modelo da História que nunca se confirmou. Resulta da comparação com um outro caso que, esse sim, é extraordinário: o da Revolução Industrial Inglesa. Os ingleses é que são extraordinários, nós somos a norma. Nós achávamo-nos extraordinários porque não a tínhamos feito no século XIX, porque a tínhamos falhado. Quase ninguém na Europa a fez.
Porque é que uns a fizeram e outros não?
Hoje, os historiadores percebem que não tem a ver com características nacionais, tem a ver com características regionais. Com os recursos naturais, com a sua situação em termos dos circuitos comerciais. Outro exemplo: fizemos um Império. Mas também a Holanda, que é um país mais pequeno e vulnerável do que o nosso, o fez.
Não somos tão gloriosos quanto pensamos?
Não estou a dizer que a identidade portuguesa não seja fundamental para as pessoas que nascem em Portugal, que são aqui educadas, quer sejam do Porto, Lisboa ou Faro, e que se sentem portuguesas. E também não estou a dizer que temos uma História que podemos considerar uma banalidade. Mas não é única. E nos períodos mais recentes, algumas características da nossa História, alguma singularidade, passam pela nossa posição periférica. Mantivemo-nos à margem de grandes tragédias, como a Segunda Guerra Mundial.
Na introdução à História de Portugal que coordena, lê-se que vivemos menos envolvidos em guerras do que outras nações europeias. O que deve deixar uma marca, no país e no seu povo.
Certamente. No século XX, aquilo que distingue Portugal de outros países europeus é não ter estado na Segunda Guerra Mundial. A Espanha também não esteve, mas teve uma guerra civil destruidora. Quando olhamos para a literatura, cinema, para a memória dos outros povos europeus, aparece a experiência da guerra; não apenas do combate, mas o sofrimento da população civil, o bombardeamento, deslocação, limpezas étnicas, para não falar de extermínios. É uma experiência única, avassaladora, a que fomos poupados.
E que não tem paralelo com a guerra em África, que é aquela que marca a segunda metade do século XX português.
Não tem comparação. O que é que teríamos sido se tivéssemos sido envolvidos na guerra? Em determinados momentos, parecia que isso ia acontecer. Fomos envolvidos indirectamente: vendemos volfrâmio à Alemanha, deixámos as ilhas para os ingleses, tivemos dificuldades de abastecimento, sobretudo em 41 e 42 (combustíveis e determinado tipo de alimentos). Não vivíamos num momento à parte. Tivemos 100 mil soldados mobilizados para os Açores… Mas não tivemos um trauma que a maior parte das sociedades europeias tem, e com o qual ainda hoje vive – tudo o que está ligado à ocupação, ao colaboracionismo…
Portugal não esteve na Segunda Guerra Mundial. Mas participou de outros movimentos e processos que marcaram a Europa.
Sim, em processos sociais e políticos. As emigrações (tal como os espanhóis e italianos; emigrámos para França e Alemanha). E o próprio processo de construção europeia. Muito mais cedo do que, durante este regime, se tornou politicamente correcto dizer. Houve uma tendência para apagar o facto de já estarmos muito integrados, praticamente desde o princípio.
Desde quando?
Entrámos [na CEE] em 1986, fizemos um pedido de adesão, neste regime, em 77, mas já tinha havido um pedido de adesão em 63. Já tinha havido um acordo com o Mercado Comum em 72. Já fazíamos parte da EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre) desde 59/60. E estávamos na actual OCDE desde 1948.
Não estávamos tão orgulhosamente sós quanto se faz crer? É outro mito.
É outro dos mitos, exactamente. A ideia de que estivemos orgulhosamente sós é fabricada. Primeiro pelo Regime Salazarista. As pessoas, hoje, acham terrível. Mas tinha a ver com a Inglaterra na Segunda Guerra Mundial. Era uma expressão comparada à de Churchill (a Inglaterra, frente à Alemanha, estava só; era a única a ter razão contra Hitler). E era uma expressão que os ingleses usavam no século XIX: splendid isolation. [Significava] estar descomprometido em relação às potências continentais.
A expressão foi treslida, então?
O que o Regime dá a entender é que Portugal não temia ter razão contra o mundo, que estava errado. Ao mesmo tempo, a expressão oculta a inserção internacional de Portugal. Era membro da Nato e da EFTA. Sem estas coisas, a guerra em África não teria sido possível. Não seria possível sem a formação e o abastecimento militar que acontece por intermédio da Nato. E sem a prosperidade económica que veio por intermédio da EFTA. [A expressão] ocultava também todas as cumplicidades de que o país beneficiou, até 74.
Cumplicidades?
Uma posição muito ambígua dos Estados Unidos, França (sobretudo) e Alemanha. Mesmo quando o país parece mais isolado, e segue uma política ultramarina contrária às Nações Unidas e à maior parte das nações europeias, não estava. Pelo contrário. Terceiro mito que podemos derrubar: não tendo passado por determinadas experiências, sobretudo pela sua posição excêntrica, esteve mais integrado numa história europeia do que às vezes se faz crer.
Temos também a ideia de que Portugal, desde sempre, malbarata recursos. Recursos de toda a espécie. Somos a choldra, o país que não acolhe os seus talentos, o país que não consegue prosperar, o país que teve todas as oportunidades e defraudou todas as expectativas. É um mito?
É. O que o Estado e a população integrada pelo Estado português nunca tiveram foi recursos suficientes. Provaram também uma enorme disponibilidade para correr riscos – sair daqui para tentar encontrar recursos. A história da Expansão o que é senão a do país que não tem recursos e cuja população (ou uma parte dela) está disposta a aventurar-se?
Mas o que aí aparece, também, é o gigante com pés de barro. Ou seja: encontra recursos lá fora e não consegue, cá dentro, provocar mudanças estruturais.
Consegue ao nível do que era possível. Estamos muitas vezes a exigir a épocas diferentes o que nós próprios não fizemos. Por exemplo, o nosso regime democrático, a nossa classe política actual, lamenta imenso que não se tivesse apostado na Educação. Trinta e cinco anos depois chegamos à conclusão de que também eles não o fizeram... Provavelmente vão concluir que não o fizeram por razões que vão além das boas intenções. Que não chegam. Olhamos para a Expansão e perguntamo-nos porque não fizeram mais; fez-se o que se pôde. Aproveitou-se o máximo que se pôde. Basta pensar que mais de metade do Orçamento do Estado nos séculos XVI, XVII, XVIII, vinha do controlo dos tráfegos ultramarinos. Por causa disso, poupou-se o país a uma pressão fiscal que teria de exercer se não tivesse estes recursos.
Pela positiva, o que demonstra é uma disponibilidade para encontrar soluções. Fora.
O que é a história da emigração? Aldeias, gente que viveu como os seus antepassados e que num ano, num mês, decide partir para países que não estavam perto. Não falavam a língua, não sabiam o que iam encontrar. E foi um milhão de pessoas que saiu dessa maneira.
Outro mito: somos aventureiros. Mas por causa, para começar, de uma necessidade económica que nos impele a encontrar uma saída?
Talvez seja o que mais nos distingue. Somos aventureiros pobres, não somos aventureiros ricos. Os ingleses têm aventureiros ricos, gente excêntrica, com dinheiro para ir ao Pólo Norte, a África… Os portugueses nunca se puderam dar a esses luxos. Não tem a ver com uma característica nacional, tem a ver com uma situação. Mas os portugueses saíram também por razões religiosas, por espírito missionário.
Essa dimensão é significativa?
Como é óbvio. Basta pensar no que os Jesuítas fizeram no Oriente, na China, sobretudo no Japão, o modo como conseguiram introduzir-se naquelas cortes. Também em Marrocos. Ou no Brasil, onde entravam no Sertão e convertiam tribos índias ao cristianismo.
A religião era o instrumento dessa entrada?
Para nós, é o instrumento. Para eles, era a razão principal. Muitos iam para ser martirizados, para morrer.
Cada vez mais se diz que somos um país que não evolui. Porque é que acha que não evoluímos, ou não evoluímos tanto quanto outros países?
Esse é outro mito que não tem razão de ser. A sociedade portuguesa é das que mais mudaram nos últimos 30 ou 40 anos. Seguimos um percurso que outras sociedades seguiram em 50, 70, 100 anos. Passámos de uma sociedade rural para uma sociedade urbana, de uma ocupação agrícola para uma ocupação no sector dos serviços. Isto tudo no tempo de uma geração. Uma pessoa como eu, com 40 e tal anos, consegue lembrar-se de um mundo completamente diferente aqui em Portugal. Em Inglaterra não há ninguém que faça isso.
É tão diferente assim?
É. Em Inglaterra ninguém veio do campo para a cidade nos últimos 200 anos. “Na minha aldeia?”, não há! Em Portugal temos pessoas que viveram na aldeia, ou cujos pais viveram na aldeia, ou os avós. Temos gente que em duas gerações transformou completamente as suas qualificações e estatuto social.
A permeabilidade social é maior em Portugal? É um facto?
Foi em determinado momento. Porquê? Porque houve uma grande transformação do sector manual para o terciário. O pai veio do campo para a fábrica, e a filha é médica e faz parte de um mundo que não tem nada a ver com o do pai, nem com o do avô, que devia ser analfabeto.
O que possibilita isso é a qualificação?
O que possibilita isso é a transformação da sociedade, da base económica, que atira as pessoas para o grande Porto e a grande Lisboa, onde vive hoje a maior parte da população portuguesa. Não é só a qualificação; é as pessoas viverem num mundo completamente diferente e terem comportamentos que na sua aldeia não podiam ter. Na cidade, a pressão social é outra; é a do consumo. Terem de ter determinada roupa, fazer um determinado tipo de vida, e até mostrar uma abertura de espírito que na aldeia não teriam de adoptar. A explosão das cidades portuguesas… A maior parte das casas em que vivemos foram construídas nos últimos 20, 30 anos. É como se vivêssemos num país conquistado!
Um país recém-construído.
É. Em Inglaterra vivi num bairro onde a casa mais moderna tinha sido construída no fim do século XIX. Aqui vivemos em prédios novos.
Ter estudado fora, fazer o doutoramento em Inglaterra, fê-lo olhar para Portugal de maneira diferente? Não só porque estava fora, mas também porque dispunha de outra grelha de leitura da realidade.
Sim. Não há melhor maneira de nos conhecermos do que sairmos de nós próprios. Isso permite comparações. Aquilo que considerávamos singular, não é assim tão singular; e o que considerávamos natural, também não é tão natural quanto isso. Estive cerca de dez anos fora, embora não tenha estado completamente ausente; mas apercebi-me de como a sociedade portuguesa tinha mudado. Alguém que estava aqui, imersa, talvez não tivesse percebido. Estar lá ajuda a escapar a algumas rotinas que aqui estão instaladas; e aqui não há quantidade – para não falar na qualidade – para provocar rupturas.
Outro mito: o de que, isolados, somos extraordinários. E temos Siza Vieira, Amália, Cristiano Ronaldo, António e Hanna Damásio, Manoel de Oliveira, Saramago, Lobo Antunes – refiro-me a nomes de grande repercussão internacional. Mas colectivamente falhamos. O problema é o da organização?
Creio que não. O nosso sucesso colectivo é o sucesso dos indivíduos. Isto é, esses indivíduos que referiu têm essa projecção e devem-na a eles próprios, ao trabalho que fizeram, mas também ao país que têm e onde a maior parte deles desenvolveu inicialmente as suas capacidades.
São valorizados pelo seu talento? O seu impacto internacional tem que ver com isso, apenas?
Também por serem portugueses. Eles têm, como a Paula Rego, um adicional de interesse para um público internacional.
Porque é específico, porque não é globalizado?
Exactamente. Num mundo globalizado, as identidades serão cada vez mais importantes, como forma de nos distinguirmos uns dos outros. O Vinho do Porto é o que é, não pelo consumo em Portugal, mas pelo consumo internacional.
Outra ideia feita: a de que é preciso uma caução internacional para que as coisas sejam, depois, valorizadas internamente.
Isso tem a ver com a dimensão portuguesa. “Santos da casa não fazem milagres”. Desconfiamos todos uns dos outros. Como acontece nas famílias: ninguém acha que o primo ou o irmão é um génio – mesmo que ele seja. Mas também não podemos ter um grande cientista português desconhecido internacionalmente. Nem nós nem nenhum país. A ciência desenvolve-se a nível internacional. Há um mercado internacional que não funciona só para nós. Mesmo os americanos: a importância que por vezes dão ao facto de terem sido traduzidos em França… [riso] A única explicação para isso é histórica.
Prestígio.
Sim. Patine.
Estivemos sobretudo a derrubar mitos. O que é que acha que nós somos? O que é que importa?
Diria que somos várias coisas. Mudámos muitos e somos diferentes entre nós. Tudo o que dizemos que somos deve ter presente essa dimensão.
Invejosos? Inveja é a última palavra d’ Os Lusíadas.
A inveja tem várias dimensões. É feia quando corresponde apenas ao desejo de que os outros não sejam melhores do que nós. (Porque é que ele tem um iate e eu não? Porque é que ele é bonito e eu não?) Não é feia quando corresponde ao desejo de ser pelo menos tão bom como os outros. Neste caso, já não é inveja, é emulação. Se fôssemos conformados, no nosso cantinho, modestos, seríamos mais insuportáveis do que invejosos.
O que é que somos? – estávamos aí.
O que é que fizemos? – é melhor. Somos uma população que mostrou sempre uma grande disponibilidade para ter expectativas acima dos recursos que tem. Um Estado sempre com défice, com uma dívida gigantesca, o endividamento das famílias: o que é que isto revela? Revela uma sociedade aspiracional que não vive com os recursos que tem, que pretende proporcionar às gerações seguintes melhores condições de vida do que aquelas que conheceu. Também temos a verrina, a má-língua, o reduzir tudo a proporções mesquinhas. E, mais uma vez, são coisas ambivalentes: alguém que tem sucesso em Portugal, tem sucesso contra tanta coisa, que algum mérito há-de ter!
Seria diferente se tivéssemos outra dimensão?
Sim. Uma grande parte das características dos portugueses é de meios pequenos. Temos uma posição excêntrica na Europa e as características de uma ilha. Citei isto no livro: mais de 80% do nosso comércio externo era feito por mar, com países distantes. Somos uma população europeia, envelhecida, que não tem os recursos que gostaríamos de ter para ser aquilo que achamos que merecíamos ser, e que era justo que fôssemos. Somos um país com uma certa tendência à frustração, ao mal-estar, à irritação. Portugal não é um país contente consigo próprio. Actualmente somos isto. Já fomos outras coisas. Não sei se daqui a 20 anos vamos ser isto…
Publicado originalmente na Revista Selecções do Reader’s Digest em Junho de 2010