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Anabela Mota Ribeiro

André Jordan

02.10.13

Por fim, ele olhou-me nos olhos, como fizera durante toda a tarde, para me dizer que esta seria uma entrevista impossível há trinta anos. «Se eu lhe tivesse contado estas coisas quando cheguei a Portugal, no dia seguinte ninguém me falava». Virar-lhe-iam a cara na rua? Que formas assume o ostracismo? Ele sabe do que fala. Mas sabe que quando se deprimiu e se refugiou na mesa do fundo, os amigos, o meio, se sentaram à sua volta. Imagino que seja agradável estar na mesa de André Jordan. Eu estive sentada numa mesa com André Jordan numa tarde de muito calor. Ouvi as estórias mais mirabolantes: de quando se cruzou no mictório com Frank Sinatra, da carta que Salazar lhe escreveu, do sambista Cartola, do presidente Kubitchek, da menina aveludada que casou com o anjo pornográfico Nelson Rodrigues. E, como diria a sua psicanalista, depois desta matéria que fica bem nos livros, vamos encarar a realidade. Vamos falar de André Jordan e não das pessoas que ele conheceu. Ouvi, então, as estórias tocantes: de como a mãe esperava que ele fosse o melhor do mundo. De quando, num momento decisivo, a amiga Alice Pinto Coelho lhe disse que ele tinha um andar de vencedor e isso lhe deu força para sobreviver.

Há qualquer coisa de desmesurado na vida de André Jordan. Nascido na Polónia nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra, refugiado aos seis anos do horror nazi. A caminho do Brasil, a família fez escala em Portugal, por uns meses, e o pequeno iniciou-se nas letras, no St. Julians, em Carcavelos. No Rio, viviam num quarteirão mágico, ladeado pelo mar e pelo Copacabana Palace. Da janela talvez se vissem as babás passeando as crianças pela mão; as mães usavam vestidos vaporosos e liam livros ao entardecer; os pais faziam negócios que cruzavam o planeta e usavam paletó. Na adolescência, o divórcio dos pais instalou-o em Nova Iorque com a mãe. Viveu interno num colégio, quatro anos?, pergunto eu, e ele, preciso, três. Depois viveu pelo mundo, e não quis voltar onde foi muito feliz. À irrepetível Buenos Aires, à longínqua Polónia. Em Portugal, como é sabido, re-inventou Vilamoura, fez nascer a Quinta do Lago na borda da Ria Formosa, criou Belas nos arredores de Lisboa, um lugar onde se vive e se joga golfe – só para citar os mais famosos. O seu talento maior talvez seja o de criar ambientes. O de tornar a vida macia. A vida de André Jordan foi intensamente vivida e merece ser contada.

 

 

Eu estava a dizer que gostava de o conhecer... E o senhor respondeu: “Também eu gostava de me conhecer”.

Isso porquê? Porque a vida é vivida de tal modo, as solicitações sobre o tempo e as emoções e o intelecto são tão intensas e breves que não há muitas vezes oportunidade de introspecção. A pessoa acaba por agir por instinto, pelas inclinações que tem, as coisas que o atraem, que o motivam. Eu fiz duas vezes psicoterapia.

 

No Rio de Janeiro e em Buenos Aires?

No Brasil e em Lisboa.

 

Toda a gente faz psicanálise em Buenos Aires.

É verdade. E também toda a gente faz [cirurgia] plástica. Mais do que em qualquer outro lugar. A psicanálise se deve ao facto de Buenos Aires ainda ter um contingente muito importante de emigração alemã e austríaca judaica, pessoas ligadas à escola do Freud, que introduziram essa temática na Argentina.

 

É fascinante a Viena do virar do século, em convulsão, com Freud, Wittgenstein, Klimt e os elementos da Secessão...

Ainda agora, vendeu-se um Klimt, o quadro mais caro de todos os tempos, não sei se viu...

 

Com certeza que vi. O que é que procurou quando fez psicanálise? Antes de mais, frente-a-frente ou divã?

Fiz a primeira no divã, a segunda frente-a-frente. A primeira: tive uma crise muito grave na minha vida, nos meus negócios, logo a seguir a ter saído de Portugal depois da revolução, o que foi por si um trauma. Entrei num empreendimento, e na ansiedade de reconstruir a minha vida profissional, não olhei bem com quem estava a me associar. Essa sucessão foi muito infeliz, e a depressão grande. Conheci uma psicanalista que me ajudou realmente a sair da fossa.

 

O que é que aprendeu de si nesse período?

Uma coisa fundamental, que é me livrar da bagagem. Deixar para trás as coisas que me chateavam, os conflitos que tinha vivido. Na análise, quando se conta determinada situação, no momento em que se está a contar, a pessoa percebe que não vale a pena carregar aquela história. Porque a análise é um espelho. O que o analista faz é pôr espelhos diante de si e obrigá-la a ver a situação e a si próprio.

 

E a segunda vez?

Eu já era mais velho e continuava num conflito desde a adolescência: se era um intelectual, se era um homem de negócios, se era isto, se era aquilo. Aprendi que era essas coisas todas e não precisava de estar em conflito com essas várias facetas.

 

Não entendo o que é que o levou a fazer a segunda análise...

Foi uma crise conjugal de um dos meus casamentos. Me levou a esse equacionamento e à análise. A questão conjugal foi rapidamente esclarecida e resultou na necessária separação. Passámos a um outro capítulo, que era esse conflito eterno, um bocado imaturo, que tinha vivido a vida inteira.

 

Quantos anos tinha?

Perto de sessenta.

 

Não é extraordinário, como podemos viver até perto dos sessenta anos com conflitos imaturos?

Todas as pessoas têm um lado infantil, mais ou menos escondido ou mais ou menos sublimado. O que me permitiu assumir essas várias personalidades e agir em conformidade foi reconhecer que não tinha que ser o melhor em tudo. Eu tinha a ideia que para fazer uma coisa, por exemplo, fazer livros, tinha que ser grandes livros... Descobri que não. Tenho alguma coisa para contar, ou para transmitir, e transmito, acabou-se.

 

Foi educado pelo seu pai e pela sua mãe para ser o melhor e para ser um vencedor?

Havia muito essa expectativa na minha família. Durante muitos anos, havia um conflito com a minha mãe, que é uma mulher admirável, uma intelectual e fascinante na convivência; custava-lhe a aceitar que eu não fosse o melhor do mundo.

 

Num tom edipiano, era como se ela não o amasse incondicionalmente; só o amaria se fosse o melhor do mundo.

Talvez, é a sua interpretação e eu aceito. Quando passei por grandes dificuldades, vim a saber que não era assim, que ela era muito, muito solidária.

 

Posso saber que tipo de dificuldades?

Dificuldades financeiras e emocionais ou afectivas.

 

Temos sempre a ideia de que os muito ricos nunca passam por dificuldades.

Isso é uma das maiores falácias que pode haver. A falta de dinheiro faz uma pessoa infeliz, mas o dinheiro não faz a pessoa feliz. Aquelas pessoas que entendem que o dinheiro os protege, que cria uma espécie de redoma à roda de si, são muito infelizes. Porque não é assim. Quem é que está protegido de ficar doente? Veja o Pavarotti, veio a descobrir que tem um câncer no fígado. E veja as guerras, na minha família tem umas oito a dez nacionalidades, e todas estão ali por terem sido deslocadas pelos grandes conflitos.

 

Ainda que a sua formação tenha sido católica, o lado judeu é em si muito vincado. Não faz só parte da genealogia. É uma maneira de estar, e marca uma errância.

Absolutamente. A igreja católica me dá um abrigo físico e moral, o que não me obriga a ser um súbdito do Vaticano. Não quero me fazer aqui de santo nem de piegas, mas realmente o “leitmotiv” da minha vida tem sido esse: amor ao próximo e ajudar as pessoas a serem felizes.

 

Estávamos a falar de ter sido educado para ser o melhor. Vamos mais atrás ainda? Viveu até aos seis anos na Polónia, no seio de uma família poderosa, ligada ao petróleo. Dos herdeiros esperam-se sempre grandes coisas.

Eu acho que a questão judaica e a fuga acentuou isso. Fomos sobreviventes. Nunca tinha pensado nesse sentido, mas já que você levanta... Acentuou e motivou muito a minha vida. Tenho quatro filhos, oito netos. Realmente, a vontade e a necessidade de perpetuar a raça e a família foi sempre muito forte. Quase toda a nossa família directa desapareceu no Holocausto. Mas não quero dizer com isso que foi opressivo. É a tal coisa de que falámos ao princípio, a vida foi vivida com tal intensidade por todos nós...

 

Mas não eram impelidos a essa intensidade, justamente por serem sobreviventes e terem de merecer a cada segundo ter sobrevivido.

Está a dizer que havia um sentido de culpa nessa sobrevivência? Talvez nos meus pais, em mim não. Em mim houve sempre a motivação de demonstrar que uma pessoa, de qualquer origem, podia sobressair no meio e sobrepor-se a eventuais racismos ou preconceitos. Tive a felicidade de ter vivido grande parte da minha vida em dois países onde não há racismo e certamente não há anti-semitismo, que é o Brasil e Portugal. Apesar de termos em Israel um sionismo militante, que pode parecer que os judeus são racistas e intolerantes, isso não é verdade. Isso é a sublimação da tal necessidade de sobrevivência que Israel representa para eles.


Confesso que estava a pensar no Primo Levi quando lancei a questão da responsabilidade por ter sobrevivido. Há em relação a esses, que partilham uma história comum, um passado trágico comum, uma solidariedade e uma atenção particular?

Sim, mas as pessoas são seres humanos, têm simpatias e antipatias que transcendem as afinidades obrigatórias.

 

Antes de vir para cá, estava a ouvir Sylvia Telles e a pensar que a única coisa em que verdadeiramente o invejo é ter vivido a mítica década de 50 no Rio de Janeiro. É fácil sonhar com o ambiente do Copacabana Palace e dos apartamentos da zona sul...

Sonhar é bem a palavra, porque foi um sonho. Tenho recebido cartas de pessoas que leram o livro [«O Rio que passou na minha vida»] e que, invariavelmente dizem: “foi a década mais feliz da minha vida”. Foi um despertar colectivo de uma nação, foi um processo de criação, de uma libertação criativa. Resultou de uma série de circunstâncias, fortuitas e deliberadas. O Brasil eram umas cinco mil pessoas, estavam todas concentradas no Rio de Janeiro. Nós nos conhecemos todos.


Mas não é sempre assim? Sempre que se fala de si fala-se das pessoas com quem se dá, com quem se deu. Das princesas Grimaldi, dos príncipes árabes, da Marylin e da Jackie Kennedy. Estes “happy few”, não são sempre cinco mil?

Claro que há uma elite que se conhece entre si e sente atracção por fazer parte desse clube. Há muita gente nesse meio que, se você for aprofundar, não têm grandes qualificações nem atractivos, mas fala aquela linguagem, tem aquele estilo de comportamento, que é uma regra. São regras que não são escritas, e os que não fazem parte não conhecem.

 

Entra-se para o clube por que vias?

Entra-se pela grande vontade de entrar e pela persistência. Acho que é muito mais um produto de vocação e persistência do que de qualificações.

 

Pensei que alguns tinham a vocação suficiente, ou o dinheiro suficiente, ou o poder suficiente para entrar.

É um truísmo, e não deixa de ser verdade, que hoje em dia o dinheiro é um factor fundamental, seja do ponto de vista da formação do capital ou do ponto de vista de ganhos. Há categorias de pessoas que ganham fortunas como se fossem grandes empresários, ou grandes industriais, como artistas de rock ou jogadores de futebol. Eu conheci, e conto no livro, artistas como o Tom Jobim, que já era casado com filhos, trabalhava num bar à noite e não tinha dinheiro para tomar um táxi para casa. Outra das coisas que conto no livro é que o whisky, que era o que se bebia naquela altura, na burguesia, tinha um papel muito importante nas relações e nas vidas das pessoas.

 

Como se fosse uma senha de pertença a um clube?

Era talvez uma coisa cultural. O whisky desobrigava as pessoas de uma maior profundidade. Os políticos bebiam, os artistas bebiam, os jornalistas bebiam, toda a gente bebia. As mulheres, pouco. As mulheres que bebiam eram conhecidas e notórias. Há uma história famosa: o Lúcio Rangel, que era crítico de música popular, convidou o Tom [Jobim] para vir se encontrar no centro da cidade com Vinícius de Moraes, que tinha decidido musicar o “Orfeu da Conceição”. O Tom pouco sabia quem era o Vinícius... Quando acabaram de explicar o que queriam, o Tom, que não era um compositor conhecido naquela época, respondeu: “Me diz uma coisa, há um dinheirinho nisso?”.

 

Mas há um detalhe realmente importante: o Tom não era apenas um bêbedo de Copacabana, não era um pé rapado. E isto conta.

A família dele tinha um colégio, era aquela burguesia do Rio. A Bossa Nova [que Tom iniciou] era a música nascida da classe média. Enquanto que o Samba vinha do morro.


Um dia levou os seus amigos finos à escola de samba da Portela e provocou um congestionamento de tráfego nunca visto – deu direito a notícia no jornal. Conheceu Cartola, um dos maiores sambistas de todos os tempos?

Conheci.

 

Cartola era um “nego” do morro. Além de músico genial, foi gasolineiro a vida toda. Mas o que importa aqui é saber se se deu com pessoas simples.
Na altura, não foi nessa perspectiva de gente poderosa ou gente humilde. Foi na atracção pelas pessoas, no interesse pelas pessoas. Havia muito contacto entre as classes. O Brasil sempre foi um país de uma imensa mobilidade social. Basta ver o Lula.

 

Em Portugal a mobilidade social não é tão evidente assim. A questão é: dá-se apenas com pessoas do seu meio social, ou continua a ter atracção pela “gente humilde” (cantada por Chico Buarque, também ele um menino-família)?

Eu fui para a Quinta do Lago em 1970/71 e criei uma empresa. Naturalmente, não fazia uma vida solta, como fazia naquela juventude no Rio de Janeiro, em que não tinha responsabilidades. Mas recrutei muita gente, humilde, trabalhadora, e tive relações de amizade e solidariedade com a minha equipa.

 

Mas isso são relações simpáticas com os empregados, não são relações entre iguais.

É claro que a vida depois não proporciona. Mas eu tive e tenho amizade com muitas pessoas que entraram para trabalhar nas minhas empresas. Não estou a reclamar ser uma pessoa do povo, eu não sou uma pessoa do povo, sou uma pessoa da elite. Mas a elite tem para mim muitos valores para além do dinheiro ou mesmo da cultura. Há muita elite de sentimentos, de qualidades do ser humano.


Como é que percebe essa qualidade humana? Costuma dizer-se que é nos momentos difíceis que as pessoas se revelam.

Como em todas as situações, sente-se. Sente-se. A gente conhece a pessoa do ponto de vista ético, do ponto de vista afectivo, do ponto de vista de lealdade. Claro que nos enganamos. Mas as desilusões que tive na vida, que foram algumas, nunca me desanimaram.


Ainda o Rio: começou por trabalhar como jornalista antes de enveredar no mundo dos negócios, por via do seu pai. Já vamos saber como mudou a sua vida com a morte do seu pai. Para já, essa atracção pelo jornalismo passava por quê? Pelo contar histórias?

Passava pelo interesse pelas causas públicas. A minha mãe é que dizia que eu não era um grande jornalista.

 

A sua mãe gostava do Nelson Rodrigues (jornalista, folhetinista, cronista, dramaturgo, escritor maldito, “anjo pornográfico”)?

Não o conhecia. Era muito longe do universo dela. Eu conheci o Nelson Rodrigues. Vou contar-lhe uma história triste. O Nelson Rodrigues, já tarde na sua vida, juntou-se ou casou com uma menina da melhor sociedade carioca. Além de tudo o mais, ele era muito mais velho, tinha trinta anos mais do que ela. E tiveram um filho cego.

 

Uma filha. A crónica em que fala da filha cega dá nome ao livro, «A menina sem estrela».

Sempre achei cruelmente irónico que o Nelson Rodrigues tivesse na sua própria vida uma situação assim. Não terá nunca, por ser um escritor em português, e ser muito ligado a um determinado meio, a projecção que a genialidade dele merece.

 

Ao contrário de Clarice Lispector, que está traduzida. Clarice Lispector dava-se com certeza com as pessoas do seu meio.

A Clarice, a judia? Foi casada com um grande diplomata brasileiro. Sim, Clarice teve um grande impacto no Rio. Acabei de comprar um livro dela.

 

O que é que mudou na sua vida com a morte do seu pai? O senhor tinha trinta e sete anos. Podemos apontar este momento como um momento...

De transformação, transformador. O meu pai era brilhante, e muito aventureiro. Não gostava de falar no passado. Vivia sempre o presente e o futuro. Tinha muita iniciativa, mas era pouco persistente. Os negócios dele eram muito complicados. Envolviam grandes capitais e pessoas muito proeminentes. De modo que havia sempre situações de tensão que eu, desde muito novo, fui recrutado para amainar. Era um grande sedutor, e tinha muitas viúvas... Quando morreu, tive uma dor muito grande, apesar de ter tido relações muito tensas com ele, através dos anos. Mas no sentido da vida, foi uma libertação para mim.

 

Porquê?

Porque todo esse clima de grande complicação emocional e de conflitos e de tensões, desapareceu. A minha vida começou de novo. Ao mesmo tempo, financeiramente, comecei muito sem nada, para ser objectivo, e as coisas foram acontecendo.

 

De que ferramentas dispunha, então?

Tinha uma profissão, tinha um nome, que era também construído pelo meu pai, e fui um pouco ao sabor dos acontecimentos e das oportunidades. Para já, havia um problema de sobrevivência: tinha-me divorciado da minha primeira mulher, tinha dois filhos que estavam com ela, que me faziam uma enorme falta, e tinha casado de novo com uma mulher que tinha uma filha.

 

A primeira mulher é a que é princesa (do Liechtenstein)?

É. Vive na Quinta do Lago, há muitos anos, porque quis estar perto dos filhos, e mudou-se para cá.


Essa parte da história, a das suas mulheres, se posso dizer assim, dá-nos a noção de estarmos a ler um romance!

É verdade. Mas nunca nada foi pensando assim. Aliás, quando fiz a primeira análise, contava histórias, essas histórias dos casamentos; e passado uma meia-dúzia de sessões ela me disse: “agora que já temos o começo de um livro, vamos falar da verdade e do seu efeito”.

 

Avançou ao sabor das oportunidades e dos acontecimentos.

Sabia que não queria estar no Brasil naquela altura. O meu pai tinha deixado aqui em Portugal muito bons contactos e amizades - no tempo da guerra nós passámos por Portugal a caminho do Brasil. Ele era maçon e tinha ligações muito próximas com maçons portugueses. Nos Estados Unidos trabalhei na maior empresa imobiliária americana, e queria desenvolver coisas no exterior. Um sueco que estava ao meu lado disse assim: “O lugar que realmente interessa para o futuro é o Algarve”. Eu tinha acesso ao Algarve, e pronto, vim para Portugal.

 

Foi assim que nasceu a ideia da Quinta do Lago.

Foi assim que eu vim para a Quinta do Lago.

 

Pensei que a Quinta do Lago fosse a importação de uma ideia já concretizada no Uruguai.

Não é bem a ideia, é o estilo de urbanismo e de vida, de Punta del Este, que também já não é nada daquilo que era no meu tempo, porque aquilo praticamente não tinha edifícios e hoje é um mar de edifícios.

 

Isto passou-se em 70. Esteve cá até à revolução de Abril, e depois regressou ao Brasil.

Voltei ao Brasil depois do 11 de Março de 75. A minha empresa entrou sob intervenção do Estado, eu fiquei desempregado, a administração foi demitida. Foi um processo curioso, porque não foi uma nacionalização, foi uma intervenção na gestão das empresas: o Estado assumiu a gestão de uma série de empresas turísticas, principalmente no Algarve, desalojou as administrações e meteu lá interventores.

 

Teve que iniciar uma outra vida. De novo.

Sim, que não correu bem, já falámos disso. Não correu bem do ponto de vista dos negócios, e tive aquela depressão. Nunca afectou a minha posição pessoal, sempre mantive os meus amigos, sempre fui muito bem tratado.

 

Não temeu ser abandonado? Pelos amigos, pelo meio? É muito comum quando se está em dificuldades.

Eu é que queria fugir das pessoas. Estava em muito mau estado psíquico. Quando a pessoa está a viver grandes dramas, há pequenas coisas que acontecem ou que as pessoas dizem que dão um ânimo quase de sobrevivência. Quando estava nessa situação muito difícil, vim a Portugal tentar recuperar a Quinta do Lago. Qualquer vinda a Lisboa era sempre problemática para mim, do ponto de vista do dinheiro, passagens, hotel, essa coisa. Nas negociações que estavam a decorrer aqui com os vários sócios, um rapaz portou-se muito mal comigo para marcar pontos com o seu cliente. Para mostrar ao cliente que podia ser meu amigo, mas que estava a defender os interesses do outro. Fiquei muito deprimido com essa situação, entendi que as negociações estavam a correr muito mal e que me ia embora. Escrevi umas cartas a explicar porque é que partia no dia seguinte, e escrevi para esse rapaz, esse advogado, que estava hospedado no Ritz. Liguei para uma amiga minha, Alice Pinto Coelho, e pedi: “Você me leva ao aeroporto?”. Ela tinha um carrinho, um fiatzinho, eu tinha uma mala pequenina, e disse: “Vamos primeiro ao Ritz, vou deixar lá uma carta”. Entrei no Ritz, deixei a carta na portaria, e quando voltei ela disse: “Estava te olhando e não tens um andar de um perdedor, tens o andar de um ganhador”. Essa frasezinha, naquele momento, me carregou durante não sei quanto tempo.

 

É uma história bonita.

É bonita, me comove ainda hoje.


Quando é que a sua vida estabilizou?

Quando vim para Portugal a primeira vez, e quando voltei para Portugal há vinte e cinco anos. A partir daí sempre correu bem, do ponto de vista profissional e financeiro.

 

Ainda teme, em momentos de maior sobressalto, que as coisas possam correr mal? O que perderá, se correrem mal?

Vou correr o risco de desafiar a sorte e dizer que não temo. É uma coisa sempre perigosa de a pessoa dizer. Não quero dizer que nestes vinte e cinco anos não houve tensões, lutas, interesses, invejas, ciúme, tudo isso. A vida ensina a dar a cada coisa o valor que ela tem. A palavra em inglês é “overreact”: não reagir em excesso aos fluidos negativos que os outros volta e meia mandam para nós.

 

Recuemos, novamente. Se canta o “Parabéns a você”, em que língua é que é?

Em português. Sou um cidadão português, profundamente ligado à comunidade, e até fiz um papel com as coisas não-profissionais que estou a fazer nesse momento [está sobre a mesa]. Do ponto de vista emocional, sou um carioca da década de 50. Também eu ainda não me libertei da década de 50! Por isso precisei de fazer esse livrinho.


Em que língua falava com a sua mãe?

Polaco, falava polaco com a minha mãe e o meu pai.

 

Porque é que o “Parabéns a você”, que é a primeira canção que os meninos aprendem, não é em polaco?

Eu nem sei mais como é que é o “Parabéns a você” em polaco. O meu pai morreu há quarenta anos, e a minha mãe morreu em 91, há quinze anos. Nunca mais cantei o parabéns em polaco. Ainda hoje falei pelo telefone, mas me custa um bocadinho, já é um pouco uma língua estrangeira.

 

É curioso, como é que a língua materna se transforma numa língua estrangeira.

Por falta de uso. Tenho que pensar as frases.


E nunca mais foi à Polónia.

Não. Vou voltar um dia. Desanimo em voltar quando, volta e meia, leio histórias do anti-semitismo polaco - apesar de os polacos serem um povo encantador, muito valente. O anti-semitismo na Polónia tem uma génese explicável, no século XVI. É um anti-semitismo que é, também, um anti-aristocracismo. Apesar de compreender a génese desse anti-semitismo, eu o sinto, quando falo com um polaco. Nunca disse isso. E para não viver essa experiência... Há lugares na vida onde tivemos experiências importantes e que é melhor preservar.

 

Nunca voltar onde se foi feliz...

Buenos Aires é assim. Estive lá num período extremamente intenso da minha vida. A Polónia é um pouco isso também. Eu tenho a imagem que o meu pai e a minha mãe tinham da Polónia. A minha mãe era de Varsóvia e vivia no meio intelectual e artístico que era muito importante na Polónia.


O seu pai não pertencia ao meio intelectual?

Sim, mas o meu pai era de uma velocidade intelectual tal que se falasse com um poeta, o poeta achava que ele era poeta.

 

A propósito da conciliação de mundos improváveis, são co-pagináveis para si o Felinni com o empreendimento turístico da Quinta do Lago.

Sim, sim.

 

Sempre que se fala de si, fala-se de ter conhecido toda a gente. Como se tivesse os cromos todos: o cromo das Grimaldi, o cromo da princesa Diana, o cromo do Kubitschek. Em que é que a sua vida mudou pelo facto de ter conhecido essas pessoas todas.

Vamos dizer assim, para se publicar: a vida é um teatro. Há dois tipos de conhecimento com grandes figuras: há o conhecimento da convivência, que é extremamente enriquecedor e até educacional. E há o contacto social. No social, a coisa é como ir ao teatro, ver uma peça. Você vai a um evento onde está Marilyn Monroe, qualquer um dos actores... Na minha geração, o grande astro era o Frank Sinatra. Eu estava numa “boite” de Nova Iorque, o El Morrocco, entro na casa-de-banho e me encontro ao lado do Frank Sinatra. Me volto para ele e digo: “os meus amigos não vão acreditar que eu estava mijando ao seu lado!”. Foi assim. Portanto, a vida é um teatro. Agora, a convivência... dizem que os grandes personagens na intimidade são decepcionantes; não é a minha experiência.

 

Mas consegue ter conversas...

Sim, de grande interesse. Valeu-me muito a minha formação de jornalista. Quando tive a oportunidade, entrevistei essas pessoas. E como todos, como eu aqui, hoje, gostam de falar de si próprios, acabam gostando... O que é que há de mais fascinante do que o “eu”?

 

Que entrevistas o marcaram?

O meu pai, por causa da ocupação comunista da Polónia, era um homem da Direita e ligado aos movimentos da libertação da cortina de ferro. E ele tinha uma ligação com a família Kennedy porque a irmã da Jacqueline Kennedy era casada com um príncipe polaco, que era amigo e sócio do meu pai. O meu pai gostava muito de mexer nessas coisas, de grande política. E através do príncipe, chegaram ao presidente e conseguiram alguma tolerância em relação a Portugal e África, que não era na retórica das Nações Unidas, mas na prática. Salazar ficou profundamente reconhecido ao meu pai por isso. Quando o meu pai morreu, com 61 anos, ele escreveu-me uma carta.

 

Que tipo de carta?

Um cartão, aqueles cartões grandes, dos dois lados, numa letra quase ilegível, que eu perdi aliás, nessas mudanças, na revolução. Dizia: “Vem a Portugal, você tem aqui o nosso apoio”. E eu vim, com a Mónica, e pedi para lhe fazer uma visita para agradecer o cartão. Ele estava naquele forte do Estoril onde passava o Verão, um pouco queixoso, “são os médicos que me obrigam a estar aqui, por causa do clima”. E fiz uma entrevista ao Salazar. Comecei a fazer perguntas e ele respondia a tudo, encantado da vida, coisas interessantíssimas, sobre a sua filosofia, as suas relações com o mundo, com os ingleses, com os alemães, com a Espanha, com Franco, uma coisa fabulosa, realmente uma coisa fantástica. Uma voz feia, tinha uma voz um pouco esganiçada. E bonito, com feições bonitas. Conto essa história como exemplo: se a pessoa vai buscar o melhor dos melhores, a experiência é riquíssima.

 

Onde é que quer morrer ou ser sepultado? Tem várias pátrias, a sua pátria talvez seja o mundo.

O meu pai morreu no Rio de Janeiro, está sepultado no cemitério de São João Baptista e fui lá uma vez. Voltei uma vez uns anos depois, me emocionei muito, fui com a minha mulher para um café e me embebedei. A minha mãe está aqui em Lisboa, numa caixinha, no cemitério do Alto de S. João, nunca fui lá. Não preciso de ver a caixinha, a minha mãe está dentro de mim, como o meu pai também está. É-me completamente indiferente, aonde é que vou morrer. Tenho tido alguma preocupação nos últimos tempos de registar o meu trabalho, as minhas ideias, através de livros, através de coisas. Agora, o corpo... não interessa. 

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios