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Anabela Mota Ribeiro

João Gilberto

01.10.24

As coisas que a seguir se podem ler, são coisas que só o coração pode entender. Não é razoável que um japonês tenha vindo do Japão para ver João Gilberto; pagou 1000 reais por um ingresso, vestia uma tshirt do Brasil, e no fim do concerto posava com Caetano Veloso no foyer. Uma pequena irmandade. Um encontro de fãs. Uma coisa boba? Tanto quanto ir a Lourdes em peregrinação. Ou abraçar as colunas do Parténon, (quando se podiam abraçar as colunas do Parténon). Ou visitar a casa onde nasceram os nossos pais. O que se passou domingo à noite no Rio de Janeiro é do domínio do sagrado. João não cantou o Samba da Bênção. Mas foi isso que aconteceu no Teatro Municipal: uma bênção.

É Inverno no Rio de Janeiro. Os dias nascem bruscamente, em tons róseos, logo depois das seis – em minutos, faz-se claro. Um acordar vigoroso. A temperatura ronda os 30 graus. As praias são lindas, cheias de luz – nenhuma tem o encanto que Copacabana possui, canta Dick Farney.

João também não cantou essa ode à princesinha do mar. Mas essa não é uma canção que ele cante. O seu tributo ao Rio faz-se, por exemplo, em “Lígia”: “Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba, não vou a Ipanema (…) e esqueci no piano as bobagens de amor que queria dizer”. Ou quanto canta “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (…) moça do corpo dourado, do sol de Ipanema, o seu balançado parece um poema”.

O sol declina cedo, e o crepúsculo acende as luzes da cidade. O azul persiste, como pano de fundo. O cenário altera-se durante os minutos em que somos transportados para o Teatro Municipal. Quando chegamos, é escuro, e à saída do táxi somos bombardeados com uma frase que se transforma numa espécie de senha:

“Tem ingresso sobrando?”. A polícia circunda o edifício, há uma fila longa para levantar convites, há um clown da televisão brasileira a comentar, em directo, quem atravessa a passadeira vermelha. Havia, deveras, uma passadeira vermelha: dentro do teatro. Mas todo o cenário era operático. As madames, noutros tempos, usariam a “sandália bordada” da baiana de Caymmi. As madames, noutros climas, usariam peles de Maria Callas. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro não é o Scala, mas João Gilberto é o melhor cantor do mundo. Vivo.

Oito da noite. O concerto está marcado para daí a uma hora. Se tudo correr bem – entenda-se: se João aparecer – é provável que comece com uma hora e meia de atraso. O público está preparado para esperar. O público está preparado para tudo, desde que possa participar na liturgia. O bafafá estava apenas a começar.

Bafafá: agitação social; confusão, com fofoca metida ao barulho – segundo acepção popular. O bafafá já era considerável pelas oito da noite. Mas verdadeiramente o bafafá atingiu o seu clímax quando chegou Caetano e Gil, com a ex- Paula Lavigne e a actual Flora (respectivamente). Flashes, beijos, meu irmão, acenos, Caê, quer uma balinha (nada de ilegal, balinha, de bala, é um rebuçado), será que ele vem?, em tendo ingresso sobrando, eu compro. Uma senhora de camisa de cetim verde, uma Prada fake e o cabelo apanhado, entusiasma-se por segundos: “Tem?”. O dealer é sumário: “Só galeria, 250 reais”. Mármores e colunas, prosecco no terraço, uma loura roliça coberta de brilhantes dourados, você vem com um sapato dessa altura – queixa-se um marido ou pai ou namorado, alguém que se julga com autoridade, em todo o caso. Uma tshirt do Obama for president, outra tshirt onde se lê Fear no Art, cariocas bacanas, cariocas sofisticados, Adriana Calcanhotto. Isabel Diegues, filha de Cacá e Nara leão, que nunca viu João, Moreno Veloso que estava no Japão quando soube da morte de Caymmi, quer amendoim quer?, Gisela Pitanguy e Raul num camarote, uma actriz de telenovela de apelido Ximenes que foi ali para ser vista, e legal se também acaba ouvindo o mito. Parece que ele ainda está no hotel. Sérgio Cabral, o governador. Sérgio Cabral, o pai. Uma plateia transgeracional. Os que ouviram a Bossa Nova quando ela surgiu, há 50 anos. Os que ouviram falar desse tempo como quem ouve a história de um interminável feriado; e que vão ouvir pela primeira vez o astro.

Chega de bafafá.

Chega de Saudade. João não cantava no Rio há 15 anos. Outros dizem que a última vez foi há 17 anos. Cantou em S. Paulo nos dias 14 e 15. Vai cantar em Salvador no dia 5 de Setembro. Apetece cruzar o Atlântico de novo para ouvi-lo na sua Bahia com H – que é o mesmo que dizer em casa. Mas ouvi-lo no Rio é também ouvi-lo chez lui; é, de qualquer modo, ouvi-lo no lugar onde uma onda se ergueu do mar.

Houve um momento em que ele se recolheu sobre o violão enquanto a plateia aplaudia “Chega de Saudade”. Como se pronunciasse, de si para si, um monólogo. Pensaria no momento em que tudo começou? Evocaria Tom Jobim e Vinícius de Moraes? Pensaria em quem? Cantaria para quem? Estaria comovido? Estava distendido. Nesse final apoteótico, João já havia desapertado o botão de punho, dobrado sobre a manga do fato. Seria o mesmo se soltasse a gravata. Mas não foi preciso.

“Num momento em que João estava cantando uma das suas músicas mais clássicas, fechei os olhos e viajei. Era como se o tempo não tivesse passado e eu estivesse na casa dos meus pais, em Copacabana, com João cantando e a turma em volta: Nara, Menescal, Ronaldo, Chico Fim de Noite, Vinícius, a maioria sentada no chão, encostada na parede, e extasiada, no mesmo silêncio de hoje, quando João pega no violão e começa a cantar. A única diferença é que ele não usava gravata, e era bem mais novinho, mas de resto, era o mesmo, de pouco papo. O negócio dele era a música, nada mais”. A casa dos pais a que Danuza Leão faz referência, numa crónica que assinou para a Folha de S. Paulo, é o mítico apartamento da Avenida Atlântica onde Nara e amigos praticavam a Bossa como modo de existir. Mas a linha essencial desse texto talvez seja quando ela diz: “Acho que estava se exibindo para a filha Luiza”.

A menininha. Uma história improvável que não faria parte deste roteiro se não tivesse a sua importância. Talvez importância capital. Não podemos saber se não devemos a essa menininha os concertos que João decidiu dar (é certo que também há os dois milhões de reais pagos pelo Itaú…). Mas João só canta quando quer.

Cláudia Faissol é uma mulher de 36 anos que acompanha João há 12. Faz um documentário que teve a curiosidade como ponto de partida: “Poxa, por que ele faz tanto mistério?”. Pintou um clima. E uma transa. (Estamos em plena telenovela, mas não nos capítulos cruciais). Cláudia era casada, marido rico, boas famílias, esse troço. Numa discussão, insinuou que talvez a criança não fosse do marido… Xi. O marido, não querendo se fazer de babaca, fez um teste de paternidade. E não é que o DNA não batia com o da menininha? Aí, Cláudia pensou: se não é do marido, é do João. E João fez o teste de paternidade. E não é que o DNA batia com o da menininha? Pathos grego. Desmancha casamento, conta a história nos jornais. Aos 76 anos, João Gilberto soube que tinha uma filha de dois anos. A menininha tem agora quatro e assistiu ao show do papai na primeira fila.

João poderia cantar para ela: “Mas só não quero que me faça de bolinha de papel”. Talvez faça. E ainda bem. João não só aparece para cantar, como, pasmo geral, está simpático! Não se levantou e foi embora quando dois telemóveis tocaram (por brevíssimos segundos, mas tocaram), não xingou a plateia porque ela tossiu incontáveis vezes, não disse mal do banco que patrocinou o espectáculo (para acautelar essa possibilidade, foi incluída uma cláusula especial no contrato). João estava tão caloroso que o público atreveu-se a cantar num sussurro “Chega de saudade”, do princípio ao fim. E não é que ele gostou? “Ouvi um sussurrinho e gostei muito. Vamos fazer isso de novo?”. Foi o momento apoteótico da noite. Um dos. O público cantou baixinho, afinadinho, e João cantarolava e tocava violão. No fim, aplaude, e resume: “Vocês já estão entendendo: não quero ir embora”.

Foi aí que desapertou o botão de punho. Fez uma interpretação vigorosa de “Garota de Ipanema”, e pediu novamente a colaboração da plateia, “Cadê vocês?”, para terminar com “O Pato”. Talvez Danuza tenha razão. Talvez ele estivesse se exibindo para a filhinha.

Eram onze e quarenta. Ele entrara em palco às nove e cinquenta e cinco. Cantara “Doralice”, “Samba do Avião” (uma das versões mais inventivas, como quem diz: “E se agora tocasse assim?”), “Caminhos Cruzados”, “Rosa Morena”, “Wave” (o público fez um burburinho, um estremecimento varreu o teatro, a matéria era sagrada), “Estate”. Cantara os versos que milhões de pessoas sabem de cor: “Um cantinho, um violão”, “Só privilegiados têm um ouvido igual ao seu…”, “Isso aí o que é? Também um pouco de uma raça”. Dissera com urgência: “Como é que eu posso contra o encanto desse amor que eu nego tanto, evito tanto e que no entanto…”. Cantou também este verso em forma de epitáfio: “Eu quero morrer num dia de sol”.

Quando voltou para um longo encore, eram onze e cinco. Sorria. Tinha um evidente prazer em cantar. Para a menininha. Para os cariocas. Para o japonês que veio do Japão. Para o público que saiu catatónico. Com uma sensação de embriaguez. Ou feitiço. O que se passou ali, foram coisas que a razão desconhece. Dá para voltar atrás no tempo?

 

Publicado originalmente no Público em 2008