Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Anabela Mota Ribeiro

Herman Enciclopédia

21.03.24

Gud evenaing. Ou, se preferirem, boa noite.

O espectáculo vai começar. O elenco: Lauro Dérnio, Artista Bastos, Super Tia, Mike e Melga, Felisberto Desgraçado.

Mais este:

- “Eu sou uma pessoa que pensa no depressa”.

O senhor Engenheiro do riso alarve e estilo brejeiro: “Parece que temos um pedaço de francesinha na boca…, eheheh”.

O protagonista: Diácono Remédios.

Ei-lo.

- “Ó meus amigos-s-s.”

Censor, moralista, filho de uma mãe “repugnante e hedionda”: a Dra. Rute Remédios. A sexóloga que aparecia semanalmente na televisão para falar de “sexo puro e duro como todos nós gostamos, ceeeerto?”.

O Diácono Remédios foi o verdadeiro artista de um programa recheado de personagens luminosos, esdrúxulos, reveladores do que éramos então: um Portugal ocupado com a Expo-98, em transição. O Diácono instalou-se no imaginário colectivo como alter-ego de uma moral careta, salazarenta, falsamente puritana. Representava um bafio que afinal ainda existia.

Era um tempo em que Portugal repetia, como se fosse uma senha: “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”. Ou “Let’s look at the trailer”. Ou: “Este homem não é do norte, carago!”. Para além do omnipresente: “Não havia nexexidade-e-e”. Era um tempo em que Herman José estava no pico da forma. Herman Enciclopédia, a obra da maturidade, estreou em 1997.

“Acho que é, de longe, o que de melhor se fez em Portugal em matéria de humor. A obra mais iconoclasta, a mais escandalosa, às vezes quase pornográfica. Como dizia o Alexandre O’Neill, somos o país do diminutivo e do respeitinho é que é preciso; este é um humor que escapa a esse respeitinho. O programa é uma espécie de contra-ataque à censura dos anos do cavaquismo. Contra uma moralidade vigente, com cheiro a naftalina. Que estourou assim que Cavaco saiu do poder. No período Guterres, nitidamente, as bolas de naftalina diminuíram de tamanho. O programa transpira isso. Uma maior liberdade. Reflecte uma direcção da RTP menos sensível à censura. À censura íntima, àquela que se faz antes de os programas serem delineados”, diz Clara ferreira Alves, uma das primeiras opinion maker a escrever sobre o Herman Enciclopédia.

António Guterres, então primeiro-ministro, era fã da série.

“Sempre que tinha oportunidade, não perdia. Era para mim, não apenas um entretenimento, mas um tranquilizante. Era um modo de esquecer por um momento as preocupações, as tensões. Não me recordo de ter adoptado nenhuma das expressões do programa de forma regular. Não como uso: “É a vida”, que é uma das minhas expressões favoritas. Mas com grande probabilidade tê-las-ei usado. O impacto do programa e dos personagens foi extremamente forte”.

Guterres, o católico. Alguma relação com o puritanismo do Diácono? “Nenhuma – responde Herman. “Guterres é um espírito maior, e a sua fé serve as suas convicções, não é para ser usada como arma de arremesso. É uma pessoa de bem, e o mais democrata dos primeiros-ministros. Isso mesmo reflecte-se na amplitude da paleta crítica que usámos”.

Nuno Artur Silva quis que o Diácono se chamasse Reverendo. O director das Produções Fictícias, a empresa de argumentistas que escreveu o programa, e que esteve na concepção do personagem com o próprio Herman, José de Pina e Miguel Viterbo, considera que o programa foi “um bom momento, um bom encontro”.

“O programa surge numa época de abertura depois de um fechamento que coincide com o cavaquismo. O Herman Enciclopédia beneficiou de total liberdade depois da tentativa de censura do sketch da “Última Ceia” no programa anterior [Parabéns]. Surge na ressaca desse episódio, com algumas sequelas, com quebra de contratos publicitários, por, supostamente, o Herman ter hostilizado a Igreja Católica. A Igreja não é o único alvo, o programa dispara em muitas direcções. Critica os modelos de jornalismo; estava a despontar o estilo: “Põe a manchete primeiro e faz as perguntas depois”.

A Igreja não era o único alvo. Mas basta rever alguns dos episódios, no DVD que foi lançado recentemente, para perceber que o tirocínio é constante.

Alguns exemplos, em separadores inócuos, entre sketches e personagens. Uma manchete anuncia: “Claudia Schiffer é um homem. Para mim foi uma grande desilusão, diz o Papa João Paulo II”. Como consequência: “Basta de brincadeiras com sua santidade”, pede em título o Infelizmente. “Ex-Papa apanhado nas malhas do doping. O actual Papa: não comento”. Outro exemplo: o Papa passeia no Papa-móvel e antes dele, há elefantes mecânicos a copular.

Porquê esta fixação na Igreja? Herman esclarece que “na altura, estávamos convencidos de que um dos problemas maiores da sociedade portuguesa seria a pressão obsessiva da Igreja Católica sobre o poder político. Já em 1988 – apesar de ninguém mo ter confirmado – consta que o final do programa Humor de Perdição teria tido mão pseudo-divina. Estava no entanto longe de imaginar que, dez anos mais tarde, teria a prova de que os mais perigosos garrotes da liberdade de expressão desta espécie de democracia residem dentro das togas e não das batinas”.

Joaquim Vieira, o director de programas da RTP que aprovou, com o director-geral Joaquim Furtado, a série, nunca teve dúvidas acerca da aposta no programa, apesar do seu carácter subversivo. “Nunca considerei o Herman Enciclopédia uma aposta errada, porque achei que este era o tipo de programa que correspondia melhor ao enorme talento do Herman. A questão do suposto radicalismo nunca me preocupou, pois só assim se poderia construir um programa de humor saudável. Não tenho ideia de ter havido alguma pressão. Penso que depois de termos resistido a uma outra pressão de meios católicos, quanto a um sketch sobre a "Última Ceia", se terá chegado à conclusão de que não valia a pena”.

A pedido da PÚBLICA, Joaquim Vieira reviu alguns episódios do Herman Enciclopédia. Com esta distância, não hesita em identificá-lo como “expressão de uma época de expansão, tranquilidade e bem-estar da sociedade portuguesa, com muitas referências ao consumo, a projectos públicos e a prazeres de uma forma geral. Se fosse hoje, haveria diferentes preocupações, embora me pareça que não mudámos assim muito no que respeita à cultura de massas. Veja-se as caricaturas feitas aos programas de TV: parecem antecipar o que veio depois. Não acho o programa nada político, mas a ligação aos anos do guterrismo pode ter a ver com uma certa visão despreocupada da vida. Caminhávamos alegremente para o abismo (do défice) e nenhum de nós tinha consciência disso”.

Sobre que é o programa, afinal?

“O tema dominante eram os costumes, e não a política”, pensa Clara Ferreira Alves. “Aliás, o Herman e as Produções Fictícias nunca foram muito para a política. Mas há uma grande sátira social. O que ali se critica é um modo de ser português. Um modo mais estreitinho dá lugar a um modo às vezes boçal, à boa maneira de Bordalo Pinheiro, e outras vezes mais refinado. O sexo era um grande tabu. O episódio dos “Óscares da pornografia”, ainda hoje, não tenho a certeza de que pudesse ser feito com a liberdade com que foi. Teve a sua importância que a RTP tivesse na sua direcção o Joaquim Vieira e o Joaquim Furtado. Dois jornalistas, duas pessoas que gostam de liberdade. E que chegaram a ser ferozmente satirizados no Herman Enciclopédia”.

Herman sublinha também este aspecto: “Era o serviço público ao serviço da inteligência, com dois “inteligentes” ao leme da direcção de programas. Lembro que o programa sucumbia nas audiências em confronto com a efervescente SIC de Emídio Rangel”.

As audiências do Herman Enciclopédia começaram por ser tímidas. Foram precisas semanas para que o programa se transformasse no fenómeno que continua a ser passados 13 anos sobre a sua exibição. Os portugueses pareciam não se rever nos personagens histriónicos de Herman&Companhia. Ninguém dizia nas ruas: “Grandes fitas, Greites faites”, numa glosa a Lauro Dérnio. Ou “Qual é a senha?”. Ou “Você “num” se desgrace!”

Nos jornais e nos cafés discutia-se o tema da regionalização; na televisão, numas caves infectas da muy distinta cidade do Porto, discutia-se em reuniões clandestinas o Pintismo Narcisismo.

Pinto da Costa era (e é) Presidente do Futebol Clube do Porto, Narciso Miranda, “rosto do poder local”, ascendia a Secretário de Estado, Fernando Gomes, presidente da Câmara do Porto e ministro socialista, servia de base para a composição do Senhor Engenheiro de Herman. Embora nunca se tenha ouvido da boca de Gomes: “Graande sticada”.

“É um mister!”, dizia dele um dos assessores-acólitos. Uma expressão que ficou, para Clara Ferreira Alves, indissociável daquele grupo. Herman, revendo, diz-se “positivamente espantado com a jactância da rubrica dos Homens do Norte”.

Nuno Artur Silva tem no “Partido do Norte” um dos momentos preferidos do Herman Enciclopédia. “É uma ideia colectiva, depois escrita pelo Rui Cardoso Martins e pelo José de Pina. Sempre imaginámos que deveria ser representado à Yes, Minister. Ou seja, com contenção. O Herman fez exactamente o contrário. Representou à Irmãos Marx, completamente em delírio, quase à desenho-animado. O que começou por nos parecer terrível acabou por ter um resultado brilhante. Tem imensa graça a maneira como se movimentam e a opção por aquela direcção de actores. É raro ter no mesmo sketch o Herman, o José Pedro Gomes, o Miguel Guilherme, a Maria Rueff, a Lídia Franco. Um grupo de actores em estado de graça”.

As reuniões do PNRN (Partido Nacional da Região Norte) representavam o momento mais colado à realidade política de um programa que não era eminentemente político. Mas Guterres não se revia no conteúdo do sketch. “Aconteceu-me várias vezes fazerem humor sobre mim, e sempre encarei isso com grande naturalidade. Quem quiser estar, não apenas na política, mas em qualquer função que implique exposição pública, tem de encarar isso com naturalidade. O que é importante dizer é que, apesar da irreverência do Herman, ele nunca foi ofensivo. O humor do Herman sobre as mais diversas personalidades da vida portuguesa, merecia, na minha opinião, ser encarado com grande fair play”.

Entre o “não ofensivo” de Guterres e o “quase pornográfico” de Clara Ferreira Alves, vale a pena rever algumas das cenas e expressões usadas para compreender o que estava em causa.

Pelo Herman Enciclopédia apareciam personagens como a Teresa Trucla, no programa Vibratório. Logo censurada pelo Diácono Remédios:

- “Um vibrador? E de tamanho familiar! Valha-me Deus!”

O Artista Bastos repetia a frase:

- “Lá vinha ele com o seu castor debaixo do braço…”,

como uma espécie de intróito ao famoso:

- “Onde é que tu estavas no 25 de Abril?”

Havia convidados que não entravam no monólogo secreto do Artista Bastos e eram zurzidos com pérolas deste quilate:

- “Eu acho que eras umas besta, há que dizê-lo com frontalidade” ou

- “Vou-te partir o trombil, há que dizê-lo com frontalidade” 

ou,

- “Vai levar na peida, vai fazer broches a cavalos”,

que os “pis” sobrepostos mal disfarçavam, como era intenção manifesta da equipa.  

Herman Enciclopédia satirizava o novo-riquismo nas “Aventuras da Super-Tia” e da sua amiga Robinha (um magistral Joaquim Monchique). “Uma super-tia llena de possidonite, de nome Batata, epítome de uma high society que vive na tesura e que mantém as aparências. Obviamente usa malas Louis Vuitton.

- “O tio Babas diz que a última moda em Paris é um Picasso no canto da parede e um Pollock no rodapé”.

Repete palavras como:

- “Caturreira!”

Num estilo afectado, exala boa educação quando se dirige à empregada:

- Ó não sei quantas (nunca sei o nome da criadagem)…

Acha que “os jipes na cidade não podiam estar mais na moda!” Fazem sentir “aquela coisa da ligação à terra”.

Os assuntos eram os de um Portugal próspero, em vésperas da Expo-98 e das grandes obras de construção. O Senhor engenheiro falava, cobiçoso, do “contratozinho”.

- “Le boilá!”

Ao mesmo tempo que frequentava casas de alterne, e deixava implícita a ligação entre política – corrupção – prostituição.

- “Tou-me a sentir comichoso. Bou até Amarante…”

(o incêndio no bar Mea Culpa tinha sido nesse ano).

Decisão que merecia o aplauso do personagem interpretado por José Pedro Gomes:

- “Este homem é um senhor!”

Neste mosaico da sociedade portuguesa, coexistia a micro-realidade de Alfama, onde se faziam campeonatos de lerpa, os homens vestiam fatos de treino fluorescentes e onde se cantava o fado, claro.

“Ai Mãezinha, não te apagues” era uma novela burlesca que tinha em Felisberto Desgraçado o personagem central. O seu sonho era levar a mãezinha aos Estados “Onidos”.

- “Corre-me tão mal a vida! É esta maldita caspa, é o cancro da próstata da Felismina, e a mãezinha que não volta... Menzinha volta por favor! Mãezinha não tapagues!”

Era o tempo das boys band, constituídas por rapazes espadaúdos, “repescados da valeta e das obras”. Da televisão “em movimentos”, feita de planos oblíquos – uma hiperbolização do já de si frenético Big Show SIC. A música que se ouvia era de Abrunhosa, Prince, Cesária Évora. No Herman Enciclopédia promoviam-se encontros improváveis. Entre Madonna e Carlos do Carmo, Amália e Bob Dylan a cantar um malhão-malhão.

A música também era a dos Fried Potato Suicide – deixa para nova aparição do Diácono Remédios:

- “Batatas fritas a cometerem suicídio? O suicídio é um pecado, mesmo para as batatas fritas.”

Nem o hino nacional foi poupado. A Dra. Rute Remédios, nas consultas de sexologia, considerava-o uma boa base musical para o sexo. Porquê? Porque daí se pensa em militares… Pelo contrário, os Madredeus eram desaconselhados.

- “Com isto é impossível ter uma erecção capaz! Madredeus, Manoel de Oliveira, meio litro de leite morno, bolachinha de água e sal, e obtenha uma embalagem de Xanax!”

De onde é que saía tudo isto?

Herman e Nuno Artur Silva explicam o modo de fazer do Herman Enciclopédia.

“Tínhamos reuniões de ideias todas as semanas, brainstorming à volta da mesa. Passavam-se as ideias para o Herman, que contribuía com algumas sugestões. Por exemplo, deu-nos uma frase da mãe: “Ó filho, és um bom artista, não tinhas necessidade de fazer aquilo”, e pediu-nos: “Façam alguma coisa com isto”. Daí resultou o “Não havia necessidade” do Diácono. A ideia era depois trabalhada por dois guionistas. Trabalhavam em liberdade total dentro daquela regra que o Herman estabeleceu comigo quando começámos a trabalhar: “Escreve o que te apetece, eu uso como me apetece, e não vamos perder muito tempo com explicações”. Esta regra manteve-se com a equipa toda e funcionou muito bem. No Herman Enciclopédia, de uma maneira geral, respeitou muito o texto. Eu próprio fazia a ligação com o Herman e os actores”.

Herman José recorda que o ritmo de feitura do programa era sempre alucinante, mas que o processo de apropriação dos textos e composição dos personagens era variável. “Eu diria, que atrás de cada boneco está alguém. Há os óbvios, como o Lauro António ou o Baptista Bastos, mas em todos os outros estão a vizinha, o motorista, a vendedora de jornais, a prima, o sócio, o polícia, etc... Havia textos que tinham tratamento copy/paste. Eram respeitados na íntegra e reproduzidos tal e qual. Havia outros que tinham tratamento bovino. Mastigava-os, engolia, e eram finalmente regurgitados depois de devidamente tratados. Outros não chegavam sequer a entrar na digestão – eram modificados e compactados no papel, em longas horas de trabalho (como aconteceu com alguns episódios dos “Homens do Norte”). Imagino que nessa altura jovens autores me tenham rogado algumas pragas. Mas foi por uma boa causa – espero eu”.

O ambiente era “muito solidário, distendido, divertido, mas penosamente profissional. Gravar mais de 50 minutos de ficção científica com aquela variedade de personagens e cenários foi uma tarefa ciclópica. Havia muito pouco espaço para brincadeira”.

O Herman Enciclopédia constituía uma das grandes apostas do canal. Numa fase inicial, as gravações, foram acompanhadas de perto pela direcção. “A única questão que se colocou de início teve a ver com valores de produção que quanto a nós, (eu e o Joaquim Furtado), não estavam a ser devidamente concretizados, o que tinha menos a ver com conteúdo e mais com imagem”.

Em todos, exista a ideia de se estar a fazer um grande momento de televisão, que perduraria. “Era uma equipa de argumentistas em boa forma e um Herman de regresso, depois de uma das suas mortes anunciadas. O programa é uma amostra da incrível paleta de cores que o Herman tem na composição de personagens”, sintetiza Nuno Artur Silva.

Era, como disse Carlos Pinto Coelho, himself, numa aparição no Herman Enciclopédia, um programa de “audiências modestas, mas um fenómeno planetário”.

Talvez fosse excessivo falar em fenómeno planetário, antes da vulgarização da internet como suporte privilegiado de conteúdos media. A geração youtube ainda não tinha nascido. Mas no Portugal de então, o programa era um espaço de convívio. (Convaive, para Lauro Dérnio.)

O que é que o fez resistir? O que é que faz que estejamos a falar sobre ele, 13 anos depois da sua exibição (e assumindo que a edição em DVD não o justifica completamente)?

“O que resiste melhor ao tempo é o Herman José”, pensa o antigo primeiro-ministro António Guterres. “Na maior parte dos casos, os programas de humor ficam tão terrivelmente datados que perdem a graça. São apenas expressão de um tempo. O que é mais interessante no Herman Enciclopédia é sentir que (exceptuando histórias mais específicas), o humor não perdeu a sua oportunidade. É uma qualidade rara”. E faz o paralelo com um clássico da história do humor. “Continuamos a ver Yes, Minister e continuamos a rir. Mesmo que o programa tenha a ver com a política do seu tempo. Porque é um humor de grande qualidade. É o que acontece com o Herman. A qualidade não é datada”.

Herman, o verdadeiro artista, elenca os momentos do programa que, na sua opinião, melhor resistem à erosão do tempo. “A actualidade do Diácono Remédios, o non-sense groucho-marxiano da novela “Ai Mãezinha, Não te Apagues”. Também me encanta o talento dos actores. A série resiste bem, apesar de ser pontualmente atraiçoada pelo timing menos frenético de alguns sketches, e pela própria duração de cada episódio, o dobro daquilo que é praticado hoje em dia”.

Na opinião de Joaquim Vieira, resiste porque há nele “um registo de humor burlesco e anárquico, demolidor das convenções, que é intemporal e muito bem compreendido pelos jovens”.

A geração Gato Fedorento, (denominada sumariamente assim para definir um tempo e um modo de consumir conteúdos de humor), não assistiu à emissão do Herman Enciclopédia no canal 1 da RTP. Mas Herman pensa “que são eles os grandes catalisadores do estatuto de culto que o programa tem vindo a ganhar”.

Vão ao youtube e percebam do que estamos a falar.

Clara Ferreira Alves reviu recentemente o programa com dois adolescentes. “Adoraram!, mesmo que não saibam quem é o Lauro António. A personagem criada é naturalmente cómica. Essa é que é a marca do grande humor e da genialidade do Herman: transformar uma situação particular numa situação universal, que todo o mundo percebe, em qualquer lugar. Transformou uma pessoa num tipo imortal. Isso, o Herman faz. O Eça de Queirós também fazia”.

É verdade que há expressões, como essa, que continuam a usar-se. Mesmo que a sua origem seja desconhecida. “Eu é que sou o presidente da junta” é outro exemplo, que se aplica de forma exemplar a contextos de poder.

Herman ouviu recentemente “Onde é que estavas no 25 de Abril?” na Assembleia da República, numa interpelação de um deputado ao Governo.

Mas o seu personagem preferido, “pela sua importância histórica e capacidade de sobrevida, é o Diácono Remédios. Infelizmente mais actual do que nunca”.

Para Joaquim Vieira, “o provedor Diácono Remédios diz muito sobre os preconceitos da nossa sociedade. Ainda há gente que parece hoje em dia querer imitá-lo, mas à séria… A minha preocupação tem sido não usar a expressão “Não havia necessidade”. Não é agradável ser comparado a um Diácono Remédios.”

Clara Ferreira Alves também escolhe o Diácono como o grande personagem da série. “O “Não havia necessidade” fez esse grande milagre, que fazem alguns versos de grandes poetas: entrou na língua portuguesa”. E continua a usar “Lets look at the trailer”.

Nuno Artur Silva tem uma predilecção pelo Artista Bastos, escrito por Eduardo Madeira e Henrique Dias, pelo Herman Geographic, em cuja criação participou, e que foi escrito por João Quadros.

Depois, veio o declínio.

“Se o Herman tivesse nascido nos Estados Unidos, sobretudo na Califórnia, seria uma estrela absoluta. Em Portugal, é difícil agradar. Há sempre um desejo de matar alguém em Portugal, e o Herman foi um desses casos bem sucedidos. Havia um desejo compulsivo, a partir de certa altura, de não achar graça e de dizer que o Herman estava acabado”.

Como é que Herman se revê?

“Com ternura e inveja. Ternura por me sentir, aqui e ali, relativamente imaturo; e inveja porque aquela pele de 43 anos imprime muito melhor do que a actual. Toda a perda é dolorosa. A perda de uma certa inocência e quixotismo. A perda de dezenas de amigos cuja saúde não resistiu à passagem do tempo. A perda de uma inconsciente felicidade de quem se sente praticamente imortal e centro do mundo. A perda da visão total que me permitia ler o teleponto a metros de distância sem qualquer ajuda”.

O Herman Enciclopédia teve duas séries. Frequentemente, depois de terminado o programa, no decorrer da ficha técnica, aparecia, cereja no topo do bolo, o Diácono Remédios.

- “A minha mãe a portar-se como aquelas cadelas infiéis... Uns seios enormes, como as bossas de um camelo. Enquanto vários homens abanam os seus bacamartes-s-s”.

E abanando a mão sapuda e mole, exortava ao recolhimento:

- “Ide, ide para as vossas casas”.

 

ps: "Let's look at the trailer" foi criado por Nuno Markl

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010.