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Anabela Mota Ribeiro

Maria de Medeiros

28.10.13

Os chocolates de Viena eram saboreados com o prazer ilimitado que só se experimenta na infância. Ao fundo, a música do pai, então adido cultural na capital austríaca, envolvia as suas vidas. As manas frequentavam uma escola onde os meninos tinham proveniências várias; eram do Líbano, de Israel, havia uma influência do Oriente de que se lembra bem. Também se lembra de, entre os seis e os dez anos, ter uma percepção agudíssima da vida. Que se mantém sob a forma de espanto. A mãe, a jornalista Maria Armanda Passos, filha da escritora Odette de Saint-Maurice, incutiu-lhes o gosto pelas letras e pelo estudo. Quando se mudaram para Lisboa, Maria tinha dez anos.

Há fotografias maravilhosas que a mostram nessa altura, ao lado da irmã, a actriz e realizadora Inês de Medeiros. O que havia então é o que ainda hoje se pode decalcar: uma frescura exaltante, uma sensibilidade denunciada no olhar. O mais certo é que a voz de Maria fosse aquilo que é hoje: uma flor branca. Era essa a voz que ela tinha quando aos 15 anos protagonizou «Silvestre», filme referência de João César Monteiro, amigo lá de casa que a fez debutar.

Mas quando Maria deixou o Bairro Alto para se instalar em Paris, o propósito era estudar Filosofia, e antes disso, Belas Artes. O grupo, a irmandade, da qual faziam parte Teresa Villaverde, Pedro Proença, os irmãos Melo, Manuel João Vieira, Patrícia Cabral queria para si a excelência. O mundo pertencia-lhes. Ela partiu, e o resto é conhecido – como diz no início da nossa conversa.

Teatro Nacional de S. João, Porto, meio da tarde. Subimos as escadas em direcção ao Salão Nobre. Comenta-se a beleza extraordinária do teatro, excepcionalmente bem tratado, o recorte dourado e a carpete vermelha. Os lustres só serão acesos mais tarde, volvido algum tempo sobre o início da conversa. Estão dispostas duas cadeiras junto ao piano de cauda e é aí que a entrevista tem lugar.

Maria de Medeiros tem 37 anos. É actriz. Portugal tem orgulho nela. Em 94 recebeu no Festival de Veneza a Copa Volpi pela sua interpretação em «Três Irmãos», de Teresa Villaverde. Também em 94 a Palma d’Ouro do Festival de Cannes distinguiu «Pulp Fiction», o filme de Quentin Tarantino no qual era a namorada francesa do gangster Bruce Willis. Antes disso foi a escritora Anaïs Nin no «Henry and June» de Kaufman. E logo depois assinou a realização d’ «A Morte do Príncipe», a partir da peça co-interpretada por Luís Miguel Cintra. «Capitães de Abril», a sua primeira longa-metragem, centrada na figura de Salgueiro Maia, foi a produção mais cara de sempre do cinema português, (2000). Fez teatro, interpretou os clássicos no início de carreira, em França. Em Portugal pisará pela primeira vez os palcos a sete de Março. Ricardo Pais dirige-a n’ «A Castro», de António Ferreira.

  

Sobre o que é que lhe apetece conversar?

Não é que me apeteça muito conversar... A seguir a um ensaio d’ «A Castro» apetece-me ir dormir. O teatro é um esforço físico e mental tão grande... As condições ideais do teatro são sair da cama para ir para o teatro e sair do teatro para ir para a cama.

 

Este texto d’ «A Castro» é muito difícil e intenso. Pode sentir-se exaurida depois de ensaiar estas duas cenas?

Sim, sim. Os textos clássicos e a tragédia são práticas extenuantes.

 

Alguma vez interpretou a «Medeia» de Eurípides?

Não. Quando fazia tragédia não tinha idade para ser mãe. Fiz várias tragédias, sobretudo de Corneille, «A morte de Pompeu», a «Sophonisbe». É na «Sophonisbe» que mais encontro pontos de semelhança com «A Castro».

 

O mais extraordinário na «Medeia» é que depois de leituras sucessivas, o texto continua a ser razoavelmente incompreensível. É uma ambição, interpretar uma personagem como Medeia?

Não particularmente. A história faz-me muita impressão. As tragédias clássicas gregas têm pontos de absoluto mistério, que, aliás, fazem também a beleza destes textos.

 

Numa entrevista antiga referiu-se ao cinema de Andrei Tarkovski deste modo: «Muitas vezes as coisas ditas por enigma chegam-me mais profundamente as óbvias». Falava do fascínio pelo enigma, das coisas que vão directamente para o inconsciente.

A tragédia é completamente um desses casos. O actor transforma-se quase em máscara para deixar jorrar esse texto, fica quase coisa. É um exercício bonito e interessante e cansativo.

 

Em relação às pessoas advoga também a ideia de que é bom que fique sempre uma reserva, um espaço para o mistério.

Mesmo que queiramos conhecer tudo de uma pessoa, ficará sempre. Essa dimensão de desconhecido que há nas pessoas, é importante que persista e deve-se respeitar. Tenho agora muito essa sensação como mãe. Há uma parte da minha filha que é só dela e que devo respeitar absolutamente. 

 

É um jogo permanente. A vontade de tomar o outro, de o incorporar, e ao mesmo tempo respeitar o seu espaço e individualidade.

Sim. Durante a gravidez já tinha essa sensação, que abrigava uma pessoa que era completamente ela, que não me pertencia. As pessoas não pertencem umas às outras. As pessoas dão-se. Não se pode pretender possuir uma pessoa que não se dê. É aproveitá-la enquanto ela se dá. É ir contra o amor pretender que outra pessoa, mesmo que seja nosso filho, possa ser objecto nosso. Dizer que uma pessoa nos pertence é passá-la de sujeito para objecto. Outra pessoa, por mais pequenina que seja, será sempre um sujeito. Falando da maternidade e da paternidade, há um dever de respeito pela independência e espaço da criança, mas também um dever de autoridade, que é curioso. Ela precisa de uma certa autoridade para se orientar.

 

Coordenadas?

Sim, coordenadas. Essa autoridade, sem ser em excesso, obviamente, nem que seja para ela aprender a rebelar-se, deve lá estar. É preciso conhecer a autoridade para se ir contra ela. As crianças estão sempre a medir os limites.

 

A sua filha está cá consigo?

Está. Somos uma família zíngara, cigana, nómada. Ela segue-nos e vai à escola onde estivermos. De momento podemos fazê-lo porque não vai à escola obrigatória [Júlia tem cinco anos]. Já foi à escola no Brasil, em Nápoles, (onde aprendeu italiano, que esquecerá, mas alguma coisa ficará), e agora vai à escola do Porto. Está encantada porque é uma escola onde falam a língua dela. Não costuma ser assim.

 

Fala sempre em português com ela?

Sempre. O pai é catalão.

 

Qual é o sentimento que a sua filha tem de língua materna e de casa? São sentimentos muito fortes, e entroncam nas coordenadas de que falávamos.

Nós temos sempre casa. Ainda não vivemos debaixo das pontes! Vão é mudando as casas.

 

O sentimento de casa está confinado a um espaço?

Há casas referência. Paris é certamente uma base. Mesmo noutros países há o sentimento de casa. Só que não é para sempre. Fico surpreendida, agora que estamos a construir este projecto fantástico da Europa, que não se revolucione o ensino de forma a que as crianças, desde pequeninas, comecem logo com três línguas. Não lhes custa absolutamente nada. Começa-se o ensino das línguas quando começa a ser difícil, pelos dez anos. Seria uma das bases para a Europa e para as novas gerações se habituarem a viver na diversidade de culturas e línguas, que é extremamente enriquecedora.

 

Que línguas fala a Júlia?

Domina bem as três línguas: francês, português e catalão. Já me perguntaram várias vezes qual é a língua materna dela. Suponho que são duas, uma língua materna e uma língua paterna.

 

E a sua noção de casa? Não me refiro ao espaço físico, mas ao espaço onde se sente confortável. Viveu os dez primeiros anos em Viena, os oito seguintes em Lisboa, e desde aí vive fora.

No meu caso, minha pátria é minha língua. Sou portuguesa porque falo esta língua. Não é pelo contacto quotidiano, assíduo com Portugal. O espaço afectivo foi sempre o português. Os pais falavam português e os avós, que determinaram um espaço afectivo muito importante, também. Isso fez do português a língua materna. As outras línguas, foram-se adicionando.

 

Em pequena, quando viviam em Viena e frequentava a escola francesa, dava-se com meninos do mundo todo. Aprendeu sobretudo a lidar com a diferença. Havia poucos semelhantes, no sentido linguístico.

É uma coisa pela qual estou muito grata aos meus pais: talvez pela força das circunstâncias, inculcaram-me o não ter medo da diferença, o gostar da diferença.

 

Estes primeiros tempos foram determinantes para vincar a sua tenacidade e o lado temerário que a fez, por exemplo, ir para fora aos 18 anos?

É bem provável. Essa bagagem inconsciente é muito útil.

 

Quando decide ir para Paris, a ideia inicial é estudar Filosofia.

A ideia inicial eram as Belas Artes, depois é que mudou para Filosofia e depois voltou a bifurcar para o teatro. Fui um ano antes de terminar o liceu ver como é que era. A escola de Belas Artes de Paris é belíssima, voltei toda contente, estava tudo decidido. Entretanto no último ano do liceu surgiu a Filosofia com um professor que foi muito importante na minha vida, o Philippe Friedmann; encenava também peças no Liceu Francês. Abriu completamente este entusiasmo pelo estudo da Filosofia e pelo teatro. Foi uma das duas pessoas que me empurraram para Paris; ocupou-se mesmo de me inscrever na escola de Filosofia.

 

Como foi o encontro entre os dois? Ele reconheceu-a como aluna com potencialidades...

Não fui só eu. Foi um grupo, fomos vários para Paris. Esse último ano foi realmente platónico, no sentido em que tivemos acesso a todos aqueles textos nobres. Sobrevoámos de Platão a Nietzsche, passando por Hegel. Desse ano, de que é que me lembro? De fazer ensaios de teatro, de ter aquelas maravilhosas aulas de filosofia. Começámos por fazer os gregos, o Ésquilo, as «Coéforas» e tal. Foi um ano idílico, um ano de espanto, e sem o sentimento de esforço. Chegámos a França e entrámos em todas as escolas, que tinham selecções fortíssimas, íamos extremamente bem preparados. Para mim, continua a ser um ideal de educação.

 

O Friedmann acontece depois do «Silvestre», o filme de João César Monteiro que protagonizou quando tinha 15 anos. Com uma experiência tão singular como esta, tão aplaudida, o caminho mais previsível seria o da representação. Mas a Filosofia, com o Friedmann, interpôs-se.

O «Silvestre» foi também uma aventura fundadora. O contacto com o João César, [falecido no dia anterior], que apesar de tudo foi um dos grandes génios das nossas artes, foi extraordinário. Mas não definiu uma mudança de rumo.

 

Referiu-se ao «Silvestre» como uma aventura.

Eu era uma aluna, tinha 15 anos, e de repente..., «Agora vais faltar dois meses à escola e tens este papel enorme no filme». A minha mãe era muito amiga do João César, ele e a Margarida Gil estavam constantemente lá em casa. O João César já tinha começado a filmar o «Silvestre» com outro casting, em exteriores. A certa altura, já tinha gasto metade do orçamento, decidiu que ia fazer tudo com um casting diferente, em estúdio. Foi aí que..., pronto..., que decidiu que eu era a pessoa para fazer a personagem. Eu era uma miúda, a inocência personificada. Provavelmente era a isso que ele achava graça.

 

Como é que recebeu o convite?

Fiquei contente. Era uma aventura, mas nem era especialmente temerário. Como estava um pouco em família, sentia-me protegida. Era um projecto no qual já estávamos imersos há algum tempo.

 

Presumo que não tivesse a ideia do impacto que o filme viria a ter. O «Silvestre» é um marco no cinema português, há quem continue a considerá-lo a obra-prima de João César Monteiro. E marca a sua estreia. Não tinha esboçado a intenção de ser actriz.

De facto. Na família sempre se tinha dito que a actriz era a Inês. A Inês era muito mais extrovertida. Eu sempre tinha dito que seria pintora, não havia dúvida sobre isso. Só depois é que percebi que ser actor, em muitos casos, é uma forma de lidar com a timidez.

 

Não tinha ideia que era assim tímida.

Não era doentiamente tímida. Era introvertida.

 

Seria improvável ser doentiamente tímida, na sua família.

Às vezes é justamente uma reacção... [risos].

 

O seu pai, o maestro António Vitorino d’ Almeida, é uma figura muito popular e magnética.

E eu não sou. Até eu fiquei surpreendida com a escolha do João César. Para mim era muito claro que nunca tive esse magnetismo de comunicação que tem o meu pai. Ainda hoje considero que não sou uma comunicadora como ele é. A Inês, por exemplo, fala mil vezes melhor que eu. A Inês herdou esse dom de comunicação. Representar é uma forma de negociar ou vencer uma incapacidade de comunicação.

 

O Vasco Pimental dizia, a propósito da sua presença no «Silvestre», que toda a equipa parava para a ver, tal o seu magnetismo. Era porque estava a representar?

Certamente. Na aventura «Silvestre» várias pessoas foram estrelas e continuam a brilhar completamente no meu firmamento. Entre as quais o Vasco Pimentel e o Luís Miguel Cintra, que foi também fundador.

 

O Luís Miguel Cintra conta que a Maria lhe fez um bolo de anos.

É incrível!, porque sou a pior cozinheira do mundo! Cheguei a fazer para os meus amigos bifes em sonasol! Confundi o sonasol com o azeite! O Luís Miguel lá se esforçou, lá comeu aquele bolo de chocolate, talvez o único bolo que fiz na vida.

 

O Luís Miguel descreveu assim o episódio: «A Maria tinha feito um bolo de anos para mim. A partir daí, se eu soubesse cozinhar e tivesse muito tempo, fazia bolos de anos toda a vida para a Maria. Por causa da inteligência que vi logo, a perversidade, a capacidade de me seduzir e a todos, que logo se percebeu», (DN, 95).

[risos] O que há de fascinante no «Silvestre» é que era absolutamente perverso e muito fresco ao mesmo tempo. A junção dessas duas coisas existia na atmosfera dos que o estavam a fazer.

 

Que definição daria de perverso?

Há um julgamento moral tão forte na palavra... Durante muitos anos, o termo perverso foi para mim quase sinónimo de interessante. Porque era outra perspectiva. Quando uma pessoa começa a ser mãe, o termo reveste-se de nuances muito mais negras.

 

Uma carga sexual?

Sim. Na altura, era o abrir de outras perspectivas. Quando se é um adolescente, está-se a descobrir o erotismo no mundo. A perversidade tem e sempre teve interesse na sua expressão artística, [enquanto] espaço de liberdade e de ousadia. A perversidade pessoal não me interessa muito.

 

Nas aulas de Philippe Friedmann liam os textos no original? Numa disciplina como Filosofia, há uma verdade íntima ao texto que só é captável na sua formação original.

Grego antigo, comecei a estudar com a minha mãe, mas nunca suficientemente bem para ler. Nunca li Filosofia em português. Se hoje em dia releio ou procuro um texto, será sempre em francês. O alemão torna as coisas extremamente claras. Mas não domino suficientemente para ler em alemão.

 

Procura em francês por ser esta a língua da sua maturidade intelectual?

Sem dúvida. Há um lado cartesiano no francês que me ajuda, que repõe as coisas nos seus sítios. Às vezes há situações complicadas, para as quais não tenho solução ou estou um pouco perdida, e se falo delas em francês com uma pessoa de língua francesa, encontro uma via. É muito curioso. Às vezes tem coisas excessivamente cartesianas e mesmo descoroçoadas, falta-lhe coração. Mas ajuda a clarificar.

 

Quando põe o problema perante si mesma, fá-lo sempre em português? Quando fala consigo mesma, é em português?

Ponho em português, e aí surgem as lamúrias! O português é ideal para as lamúrias. O francês para pensar de forma cartesiana. O espanhol é realmente uma língua de festa, de prazer. O inglês é pragmático, útil, e pode aprender-se facilmente, não tem uma gramática complicadíssima como o italiano. Acabei agora o meu segundo filme em italiano, que me levou a Nápoles durante bastante tempo, e que era sobre uma portuguesa, Leonor Fonseca Pimentel. Ainda hoje estou fascinada. É raro acabar de interpretar uma personagem e continuar a ler coisas sobre ela. Por exemplo, quando acabei a saga Anais Nin, não voltei nunca mais a ler Anaïs Nin. Conhece a Leonor Fonseca Pimentel?

 

Não.

Foi uma portuguesa cujos pais fugiram para Itália, julgo que por razões religiosas. Em 1799 houve um revolução jacobina em Nápoles, copiada da Revolução Francesa, de que foi um dos cérebros. Era jornalista e tornou-se responsável pelo jornal do governo revolucionário. Estes intelectuais, que assumiram a novíssima república, acabaram por ser abandonados pelos franceses, já napoleónicos, e foram todos enforcados. Na própria morte dela houve qualquer coisa de significativo. O pai tinha lutado toda a vida para fazer reconhecer a sua nobreza na Itália. Na hora de matarem a Leonor Fonseca Pimentel ela teria direito ao tratamento dos aristocratas, ou seja, ser guilhotinada.

 

Esta distinção, até no modo como se morre...

É terrível. Ela foi enforcada. Era uma mulher de um grande pudor e estava com o período. Para ela era uma grande vergonha estar pendurada na forca, e assim morreu... Há qualquer coisa de pungente nisto.

 

Esse pudor, é uma coisa tão portuguesa... Não estou a ver uma francesa, por exemplo, invadida por esse sentimento.

De facto, não. Foi uma grande digressão para dizer que o italiano é uma língua que andei a estudar, a estudar, a estudar, e que é extremamente complicada, toda ela cheia de excepções.

 

O que é para si representar numa língua que não o português ou o francês, que são as mais confortáveis?

Muitas vezes tive a sensação de maior liberdade quando estava a representar numa língua mais longínqua para mim. A língua mais difícil para representar é o português. É a mais carregada de sentidos e afectos, é onde as palavras têm mais peso. Falo do imaginário e da percepção colectiva. Cada palavra ou entoação, e nisso consiste o compartilhar de uma língua, têm o mesmo sentido para a comunidade.

 

Em Paris prestou provas na Escola de Teatro. Só decorou metade do texto da «Gaivota», de Tchekov, que era obrigatório. Mandaram-na parar quando estava a chegar à parte do texto que não sabia. É mesmo verdade que foi o facto de ter sido escolhida numa escola tão exigente que condicionou

Sem dúvida. Se não tivesse sido escolhida nessa altura, não tinha ido para teatro. Foi um acaso. Havia a parte do Tchekov que era imposta, e uma parte onde as pessoas podiam fazer o que quisessem. Tinha escolhido uma canção do Brecht, em alemão, que cantava no espectáculo do Philippe Friedmann. Soube mais tarde que aquilo tinha sido motivo de grande polémica!, havia uma parte dos professores que diziam «Esta está maluca, quer entrar numa escola francesa a falar alemão!»; e havia outra parte dos professores, mais brechtianos e modernos, que me defenderam. Tive grandes professores e isso é muito importante na vida e na formação das pessoas.

 

Foi a sua professora Brigitte Jaques que acompanhou os seus primeiros passos no teatro.

Foi ela que me propôs os primeiros papéis como actriz profissional. A Cleópatra n’ «A Morte de Pompeu», de Corneille, o primeiro, e o «Elvire Jouvet 40», que foi um espectáculo muito importante na minha carreira e que marcou aquele período do teatro francês. Este espectáculo viajou pelo mundo inteiro. Foi para mim a descoberta do Brasil, da Argentina, dos Estados Unidos. Descobrir que a carreira de actriz permitia esse contacto com o mundo, foi também determinante.

 

Foi aí que prefigurou isto como carreira? Em que momento se disse que ser actriz ia ser a sua vida?

Foi no momento em que percebi que tinha adquirido algum conhecimento nisto que não tinha noutras matérias. Isto era o que eu tinha aprendido a fazer. Eu estive dois anos na Rue Blanche e três anos no Conservatório. Ia às aulas durante o dia e à noite representava. A Rue Blanche é uma escola do estado; no sistema francês são as melhores e as de mais difícil acesso, mas depois são gratuitas. Porque eu não tinha dinheiro para pagar nenhuma escola.

 

Como é que viveu?

Comecei a representar um ano depois de chegar. No primeiro ano estava em casa de um senhor amigo dos meus pais, que me deixava estar lá gratuitamente. No segundo ano tive de sobreviver por mim própria. Tantos actores tiveram de fazer outras coisas para sobreviver, e eu tive a sorte de sobreviver só com o meu trabalho. Nunca servi num café, (teria sido péssima!, provavelmente), nunca fiz outra coisa senão representar.

 

A Teresa Villaverde, sua amiga muito próxima, dizia que nos ardores pós-revolucionários os vossos pais vos incutiram muito pouco o sentido do dinheiro. Não vos ensinaram a lidar com o dinheiro.

É verdade. Somos todos um zero à esquerda em questões práticas. Essa inabilidade vai ficar para sempre. Ganhar dinheiro, como objectivo de vida? Nada, nada. É uma grande diferença em relação às gerações actuais. Toda a gente tinha em vista uma excelência no seu trabalho. Mas o nosso percurso não era nada orientado para o dinheiro.

 

A sociedade era muito menos consumista. Havia um estar com os outros menos preso a estes códigos sociais.

Absolutamente. Nisso houve uma enorme regressão. Já estivemos tão mais livres desse tipo de reconhecimento social...

 

Com o nascimento da sua filha, a questão da estabilidade e a importância do dinheiro foram postas de outra maneira?

Para a Teresa também. Temos de pensar nestas coisas, nas quais, de facto, não pensávamos. Bem, eu tinha de pensar, em Paris tinha de pensar. Esgotaram-se muito rapidamente os recursos. Os meus pais ajudaram durante alguns meses. Eu não tinha de lhes pedir mais nada, tinha de me desenvencilhar pelos meus próprios meios.

 

Tinha essa obstinação?

Evidentemente. Tudo isto para lhe dizer que todas as grandes escolas, que proporcionam o contacto com mestres extraordinários, eram gratuitas. Os mestres não são pessoas cortadas da vida activa. Todos eles são actores e encenadores activos. Transformam aquelas escolas em laboratórios nos quais se está a fazer uma pesquisa moderna, actual.

 

Disse que todos os do grupo queriam uma excelência para o seu projecto de vida. O Serge Tréfaut dizia que a partir dos 11, 12 anos era mais ou menos evidente que, o que quer que a Maria fizesse, iria fazê-lo bem.

[risos]

 

Havia esse sentimento de excepcionalidade? Sentia que a olhavam como especialmente dotada?

Não. Digo isto muito sinceramente. No nosso grupo de amigos, estávamos sujeitos às críticas mais brutais, constantemente em zaragatas e berrarias, havia sempre um que ia embora a chorar. Não me lembro de ter ido embora a chorar, mas lembro-me de me ter zangado com algumas das pessoas, de termos deixado de falar durante uns tempos!, essas coisas que fazem parte dos sentimentos muito fortes.

 

E a família?

Foram sempre muito críticos. Os nossos pais nunca ligaram nada nem às notas do liceu, nem... Não eram pais babados, e isso foi bom. Era um modo que fazia parte da modernidade. Portugal foi nesses anos mais moderno que nunca. Não é o caso agora, certamente. Essa sã indiferença pelo que as crianças estavam a fazer, serviu-nos.

 

Mas os seus pais falam de si nos seguintes termos: «A minha filha tem um enorme, enorme poder de concentração e um grande respeito pelo que faz», «Ela caça os objectivos como se fossem leopardos», (JL, 94). Revê-se neste retrato?

Pois, é sobretudo isso... Se tentar falar de forma muito sincera, a pessoa com quem sou mais dura, excessivamente dura, é comigo própria. Há momentos em que preciso de me libertar da minha opressão! O Vasquinho Pimentel, que é um bom amigo, quando trabalhávamos sobre a «Morte do Príncipe», perdoava-me o ser chata com ele, «Eu sei que ainda és pior contigo!». Mas depois são muitas dúvidas, muitas dúvidas... Essa imagem, da grande determinação...

 

Aponta mais para a segurança do que para a insegurança.

Mas depois não, não...

 

A quem é que tem coragem de confessar a sua insegurança?

Não devo dizer. Talvez seja necessária uma certa dose de confiança para confessar insegurança. 

 

Uma coisa é o seu ser artístico, o seu ser social de que temos uma amostra. Outra coisa é o seu verdadeiro eu.

Que interessa o verdadeiro eu? Se calhar é por isso também que se é actor. Não interessa tanto o verdadeiro eu. Estou a pensar na ideia nietzschiana de que somos o conjunto das nossas máscaras. O que interessa é que as máscaras sejam verdadeiras. A essência que está por detrás dessas máscaras, não sei se interessa, não sei se existe, sequer. O problema da identificação pessoal é uma coisa que me aborrece.

 

Podemos então falar do corpo enquanto suporte de personagens e máscaras várias?

Isso sim. Temos é de trabalhar no sentido da verdade absoluta de cada máscara. A máscara somos nós naquele momento. Ser actor ajuda e contribui para esta visão da vida.

 

Ser actor implica estar com o corpo, depósito de tudo o que se representa e exterioriza, em frente a outros. 

É verdade, exige uma certa reconciliação com o corpo. Apesar de tudo, precisamos dele, não é? Temos de ter com ele uma relação minimamente diplomática.

 

Lidava bem com a sua imagem na adolescência, quando esta questão é particularmente problemática? Ainda por cima, aconteceu-lhe o filme, o que a obrigou a olhar para si.

O que mais me chocou foi a voz. A voz é para muita gente, e para mim sem dúvida, das coisas mais difíceis de aceitar. Durante muitos anos não via os «rushes» dos filmes que estava a fazer. Tinha uma certa distância ou receio de afrontar a própria imagem. Quando fizemos a «Morte do Príncipe», que foi primeiro uma peça de teatro e depois um filme [1990], como tinha passado para realizadora, fui obrigada a confrontar-me comigo própria. E foi muito útil. Recomendo que os actores se vejam, se conheçam e se reconciliem. Este é o nosso instrumento, temos de o aceitar e fazer o melhor possível com ele.

 

É completamente diferente vermo-nos ao espelho e vermo-nos num ecrã?

Sim, sim. Para além das explicações da física, o espelho é uma projecção subjectiva. A imagem que passa por uma representação, por uma câmara, obriga-nos a outra objectividade. Coloca-nos em posição de público. Em frente a um espelho não somos público, somos uma projecção narcísica.

 

Como é que foi quando filmou o «Henry and June» com a Uma Thurman, uma das mulheres mais bonitas do mundo? A beleza da Maria não é canónica. Fala-se do seu olhar, do que ele irradia, da irregularidade dos seus traços.

É a primeira vez que me fazem essa pergunta... Não encarei nada as coisas assim. Uma das razões porque fiz o «Henry and June» foi por ter uma parecença física muito grande com a Anaïs Nin. Tanto que no filme o realizador utilizou indiferentemente fotografias da Anaïs Nin e minhas. E ela [Uma Thurman] também tinha alguma parecença com a June, que era uma mulher grande e loura. Como esta parecença física me indicava tão evidentemente para aquele papel, como tínhamos o sentimento de uma adequação às personagens, não se colocou... E ainda bem!, se começasse o filme a pensar no meu complexo de ser pequenina e ela gigante, não íamos a lado nenhum. Os complexos nunca levam a lado nenhum.

 

Já se tinha reconciliado com o seu corpo?

Ainda não tinha feito a «Morte do Príncipe», ainda não me conhecia com aquele olhar do realizador. Isso fez uma diferença, de facto.

 

E em casa? A sua irmã Inês é parecida consigo.

É menos estrambólica. É mais gira.

 

A Inês tem traços mais doces, a Maria tem uma diferença que a Inês não tem. Em casa, miravam-se frente ao espelho, comentavam os sinais da puberdade, naquele exercício tão próprio de irmãs?

Não. A Inês é que era a mais espectacular, a que gostava muito de falar, exprimia-se com grandes gestos, fazia umas danças extraordinárias que a gente adorava ver e tal. Era realmente a do espectáculo. Eu era mais introvertida, era de contar anedotas, da ironia. Nunca entrámos numa dinâmica de comparação e, pelo contrário, sempre tentámos desenvolver a diferença e a especificidade de cada uma.

 

A sua filha é extraordinariamente parecida consigo. Na fotografia que a Nan Goldin lhes tirou, e que esteve na exposição do museu de Serralves, a Júlia estava às cavalitas e é igual a si quando era pequena.

É parecida, mas é um melhoramento! [gargalhada] A espécie evolui, evolui para melhor! E então, claro que me agrada! A Nan tem um olhar extraordinário. A intimidade na qual ela entra, e que está patente na exposição, entra porque é convidada. Não é que seja convidada conscientemente, «Nan, anda cá ver-nos na cama». É um convite inconsciente e afectivo. As pessoas oferecem-lhe o que são e o que têm.

 

Essa é que é a dádiva, a da intimidade.

Absolutamente. O Bigas Luna é assim também. Tem a ver com a qualidade do olhar. Quando uma pessoa se sente bem olhada, oferece tudo e mais – estamos a falar do inconsciente. Combinam o olhar estético com uma grande humanidade e benevolência.

 

Como é que conheceu a Nan Goldin?

Conheci-a no Festival de Locarno, fazíamos parte do júri. Estava gravidíssima, de oito meses e tal, e ela estava fascinada com a minha barriga – foram, aliás, as primeiras fotografias que fez. A Nan faz anos a 12 de Setembro e eu dei à luz a 16 de Setembro; vimo-nos em Paris para a sua festa de anos e ela voltou a tirar uma fotografia. Via-se aquele barrigão gigante!

 

O «Henry and June» foi o primeiro filme a indiciar uma carreira de estrela de cinema, (no sentido hollywoodesco do termo). A seguir ao filme, recebeu um monte de propostas que iam no mesmo sentido e que recusou. Teve a percepção de que não queria aquela vida para si?

Não raciocinei em termos de vida. Não queria aqueles filmes, isso não queria. Mas inconscientemente deve ter havido alguma escolha, porque nunca me instalei nos Estados Unidos.

 

Nunca quis ser uma estrela de cinema de Hollywood?

No «Henry and June» tive contacto com essa parte do estrelato na promoção. É no contacto com os jornalistas que se cria o estrelato. Não existe tanto enquanto o filme se faz, sobretudo para uma miúda que ninguém conhece. Só tive esse sentimento de estrelato na promoção e foi uma coisa que vivi como algo de violento. Para já, insólito! Eu achava burlesco, «Estou aqui nestas figuras!, com os fotógrafos a disparar...».

 

O que são essas figuras? Estar com um vestido que é suposto usar nestes momentos, fazer poses cuidadas?

Claro. Parecia-me uma coisa ridícula, que não tinha nada a ver comigo. E passado o sentimento da situação um pouco cómica, passou a ser mesmo violento. Ainda hoje detesto fazer promoção, faz-me sofrer horrores.

 

O que é que a incomoda nos jornalistas?

Não tinha nenhum a priori contra os jornalistas; pelo contrário, tinha uma simpatia por causa da minha mãe. Parecia-me até um trabalho muito bonito, que eu poderia ter feito com muito gosto. A organização do sistema de promoção talvez seja em si violenta. Não é que as pessoas sejam violentas uma a uma. A Laura Morante dizia que os críticos e jornalistas são como os automobilistas: podem ser pessoas extremamente amáveis, inteligentes, agradáveis, e depois entram no carro e ficam uns monstros! Talvez o próprio sistema seja o carro.

 

A experiência foi vivida do mesmo modo no «Pulp Fiction», em 94?

Foi ainda mais violento. Saí de Cannes desfeita. Tinha sido uma festa maravilhosa do ponto de vista humano e artístico, reencontrámo-nos todos... O «Pulp Fiction» foi feito com grande carinho, um pouco como um filme de amigos. No entanto a promoção foi tão violenta, tão violenta... Houve a Palma d’ Ouro, tinha todas as razões para estar feliz e lembro-me que o meu marido me foi buscar e que eu chorava como uma Madalena.

 

Sentia-se devassada? É esse o sentimento?

Completamente. Uma pessoa sente-se esvaziada. Sente-se como um lenço de papel usado, pronto para ir para o caixote do lixo.

 

Foi também por causa disto que escolheu não ser uma estrela de Hollywood e preferiu ser uma actriz de cinema europeu?

Na realidade não muda nada. A promoção é tão violenta para um Abbas Kiarostami como para um realizador comercial americano em Cannes. A questão é que nunca tive a mitologia do estrelato. Nunca aspirei a ser uma estrela. É um pouco ridículo... Não encaixo! Talvez por vir da geração de que falámos, em que nos importava muito mais o trabalho em si que o glamour ou o dinheiro que pudessem vir desse trabalho. Realmente é a parte que menos me interessa.

 

É fácil perder o pé?

A dificuldade é guardar os pés na terra. Há um sentimeno de turbilhão tão grande... Se se é novo, se não se tem alguma preparação, pode perder-se completamente o pé.

 

A sua vida tem rotinas? Como é que organiza coisas práticas como o pediatra da sua filha, o seu cabeleireiro, as compras no merceeiro?

Tenho uma cabeleireira de luxo que é uma grande amiga, portuguesa, nómada como eu. No fundo é isto: a vida dos nómadas depende muito das grandes fidelidades. Curiosamente criam-se maiores fidelidades no nomadismo que na sedentariedade. A erosão [que existe na sedentariedade] leva à traição, nem que seja como exercício para quebrar a rotina! Apesar de tudo criam-se rotinas. Acabamos por ter um merceeiro em Nápoles, um merceeiro em Paris, um merceeiro em Barcelona. Estão espalhados pelo mundo, mas serão sempre uns óptimos merceeiros!

 

O seu merceeiro de Paris ou o de Portugal conhecem-na como a senhora que vive no terceiro andar ou como a Maria de Medeiros que vêem no cinema?

É uma pergunta a fazer ao merceeiro!, nem me passa pela cabeça perguntar-me como é que me vêem. Coitados, têm mais em que pensar. Na verdade nunca vou ao merceeiro...

 

O que é absolutamente quotidiano e indispensável à sua vida?

O afecto e a confiança. São a chave do nomadismo.

 

 

Publicado originalmente no DNa, do Diário de Notícias, em 2003