Alexandra Lencastre
“Uma coisa que sempre me preocupou em relação a tudo: a sensação de dever cumprido. Sempre me inquietou muito o fantasma de não cumprir os deveres. O estar tudo, mesmo que não seja brilhante, minimamente seguro, não haver pedras no sapato, fitas presas. Estar tudo no seu lugar, mãos no leme, a conduzir o barco.
Sempre tive imenso medo do descontrolo.”
Na peça, fala-se de Blanche Dubois como uma borboleta nocturna. Alguma vez pensou em si como uma borboleta nocturna?
Já, e com o decorrer dos ensaios vou pensando cada vez mais. As borboletas nocturnas têm uma atracção enorme pela luz, mas quando se aproximam demais morrem. Não são umas borboletas como as outras, com cores maravilhosas, suaves, sedutoras; são borboletas tristes, acinzentadas. Que é aquilo que vai acontecendo ao branco da Blanche ao longo da peça. Vai-se sujando, amarrotando. Coitada, deixa-se afundar numa espiral de desgraças, mas também é responsável por isso. Representa toda uma educação sulista desta época. Há a noção de pecado e de culpa. Vários tipos de vícios. As pessoas fumam e bebem a uma velocidade estonteante. O sexo. O jogo. A peça acaba de uma maneira horrível: ela vai para um asilo de loucos e eles continuam a jogar poker.
Poker aberto.
Sim. Não é por acaso: a vida é um jogo, a vida continua.
O que é que tem da Blanche Dubois?
Procuro não ter muito porque me assusta. Há uma característica que é comum, e isso dá-nos muita vontade de rir quando estamos a ensaiar: a questão da idade. Ela passa a vida a disfarçar e a poupar-se; das luzes, por exemplo.
Ela diz: “Não quero ser vista debaixo desse clarão impiedoso”.
Uma lâmpada sem um abat-jour, sem um filtro, para ela, é um horror. Eu tenho isso. Não é só de agora. Com 20 anos já me sentia incomodada. Adorava ir a uma cervejaria comer uma grande mariscada e beber umas imperiais, mas aquela luz néon, cruel...
Que revela tudo...
Afligia-me. A luz pode ser nossa amiga e pode ser tão nossa inimiga. Compreendo tão bem a Blanche. Neste ponto estabeleço um laço muito imediato. Ainda por cima está tanto calor… Estamos em New Orleans, estão 38 graus, é um calor pegajoso, é uma coisa pesada, fabril. Não é propriamente como estar a uma sombra refrescante, com uma brisa, a tomar um refresco de uísque. Há características da Blanche que não têm nada a ver comigo, mas as pessoas pensam que têm. Têm mais a ver com a imagem que as pessoas têm de mim.
Que características?
A questão da sedução. Meninas desta estirpe, de famílias com grandes propriedades, eram desde cedo, tal como as meninas do povo, sem tanta educação e sem preparação, lançadas para a vida com um objectivo: o de entreter o macho. Foram educadas para serem la belle de la fête. E sempre com um optimismo sulista. Há uma desgraça, morre alguém, oh que maçada, mas há sempre uma piada. Álcool à mistura, sedução, sedução.
As pessoas têm essa imagem de si, de que é a sedutora. Sex symbol foi o seu primeiro rótulo.
Foi, e sempre me revoltei contra isso. Tenho de recuar e lembrar-me de que entre mim e o meu irmão, ele é que era o bonito. O que se comentava na família era: “Que pena não terem nascido ao contrário, ela rapaz e ele rapariga. Ele é tão bonitinho e ela é toda torta”. Fui crescendo com grandes complexos. Fui uma adolescente muito impopular. Não tinha namorado, não tinha hordas de rapazolas atrás de mim. Fui-me refugiando no desporto. Fiz dez anos de natação, o que tornou o meu corpo muito pouco feminino e muito pouco gracioso. Com os ombros largos, com um peito largo. E depois um bocado a direito, sem anca, sem aquela anca feminina que sempre desejei ter. Agora tenho, mas também tenho a faixa de Gaza. Uma zona complicada, uns pneus que não deviam estar aqui [riso]. Fui-me refugiando dentro deste corpo, fui-me protegendo dos outros, camuflando este corpo. Sendo muito arrapazada. Vestia blazers, muitas vezes do meu pai, com as mangas enroladas, largueirões. Com umas t-shirts fora dos jeans, botas de caneleiras alentejanas com protectores, para fazer barulho como os homens. Tinha graça.
Agora vou provocá-la e falar com a crueza do Stanley: tinha um par de mamas que fazia com que isso não importasse nada.
Não, não. Fazia por esconder. Tinha um peito exageradamente grande para a minha estatura, para a minha postura e para a minha cabeça.
Quando é que passou a exibir orgulhosamente o seu peito? Vimos várias fotografias suas. A não ser que seja um exercício de representação, existe uma exibição orgulhosa do seu peito.
Quando comecei a fazer teatro, fiz uma série de ingénuas dramáticas, a Maria do Frei Luís de Sousa. Estreei-me a fazer uma ninfa dos bosques numa peça do Pasolini, com o Mário Feliciano. No Teatro Experimental de Cascais, o Carlos Avillez resolve fazer O Balcão do Jean Genet, pensei que não tinha papel, ele dá-me a Chantal, uma jovem prostituta que se apaixona por um rapaz que está metido na revolução. Pela primeira vez fui obrigada a deixar crescer um bocado as unhas (estão sempre a partir-se, não há remédio, nunca tive boas unhas) e a pintá-las de vermelho. Muito maquilhada, um grande decote, uma saia com uma grande abertura de lado. A entrada dela era marcada pela unha num gradeamento a fazer [imita o barulho] ra-ta-ta, e pelos saltos. Eu achava que as minhas pernas eram iguais às que estão nos supermercados, seis coxinhas de frango, todas juntas. Não tinha sequer aquela perna longa…
Quando é que percebeu que o seu corpo era um trunfo, e que podia ser uma máscara?
Comecei por perceber primeiro que era uma máscara. O João Perry dizia, de uma forma muito engraçada, que eu pintava uma carinha em cima da minha num trabalho que fizemos juntos; e que depois aprendi a fazer isso no dia-a-dia, que nunca mais consegui deixar de fazer. Foi quando fizemos A Banqueira do Povo.
A sua primeira novela.
Exactamente. Como é que o rótulo se instala? É por um acaso, azarento. Estava a fazer uma peça terrível, Terminal Bar, no Teatro da Graça, do Paul Selig, que morreu entretanto com sida. Fazia novamente uma prostituta, que se chamava Martinelle. Ela tinha de vestir-se de Estátua da Liberdade. Uma coroa, um archote, umas luzes tipo Feira Popular, uma coisa meia ridícula, meia triste, pobre. Já só era aquilo que brilhava, o resto estava a morrer. E no meio disto, andava de patins e com uma espécie de fato-de-banho de época. Num dos ensaios para a imprensa, ao levantar o archote, descoseu-se qualquer coisa e aquilo baixou um bocadinho… Apareceu no Sete uma fotografia minha com a maminha de fora. Chorei tanto, tanto, não queria sair de casa. As pessoas achavam que era uma falsa pudica. Quem me conhece bem sabe que sou pudica.
Pudica? Traduza lá isso.
Fiz natação durante dez anos e as minhas colegas de piscina nunca me viram nua, não tomava duche com elas. Tive uma educação um bocadinho conservadora e isto ainda hoje se reflecte.
Como é que depois aparece em poses provocantes?
Porque são personagens. Nesta história, fartei-me de refilar, chorei. Eles pediram desculpa, foram queridos comigo. Ao longo do tempo fui aprendendo. Era um bocadinho sedutora, um bocadinho a brincar. Quando chega a um certo ponto, fujo, nem que seja preciso desaparecer. É um exercício para gostarem de mim? Acho que sim. Todos os actores têm esta necessidade muito premente e manifestam-na de várias maneiras. Há pessoas que até são muito arrogantes porque estão a pedir que os entendam, que se aproximem – “Eu sou uma besta, quem se aproximar virá por amor, quem conseguir passar essa barreira…”.
No seu caso, é o quê?
Houve uma altura em que me classificava como uma manta de retalhos. Tinha uma grande dificuldade em perceber quem eu era, em quem é que me tinha tornado. O que é que as personagens contribuíam para me acrescentar ou para me retirar, ou para me baralhar? Andava confusa. Andava num comboio que não parava. Fiz 38 peças de seguida. Estive oito anos sem férias, sem folgas, nada. E já fazia televisão ao mesmo tempo. Entrei num filme do João Canijo, pequenos papéis. Estava no Teatro de Cascais, no Teatro Nacional, tinha aulas de condução. Tinha para aí 22 anos. Tinha muita vontade. Nem sequer tinha muita consciência do que me estava a acontecer. Cresci no Restelo, eram só brasas à minha volta. Eram só Leninhas Assédios. [Helena Assédio Maltez, actual directora de moda da Máxima] De muito boas famílias, lindas, saídas de filmes. Eram Scarlett O’Haras, eram Marylins, eram miúdas tiradas do Easy Rider, com imenso dinheiro, imenso mundo, iam imenso a Londres.
E você, era o quê?
Era filha de uma família da pequena, média burguesia. Não vivia numa casa com jardim, vivia num apartamento. Daqueles muito familiares, com um quarto para os pais, um quarto para cada filho, uma sala, uma cozinha. O meu pai não tinha carro e o meu irmão e eu éramos gozadíssimos. Só tivemos carro quando tinha sete e o meu irmão oito anos. Estudámos primeiro na Academia de Música de Santa Cecília. Depois acabou-se o dinheiro. Houve uma crise financeira, porque os meus avós maternos ajudavam mas depois deixaram de ajudar, começaram a nascer mais netos. Fomos para Algés e Dafundo, liceus públicos. Fui para a faculdade de letras estudar Filosofia. E depois Conservatório.
Um percurso um pouco irregular.
Andei sempre de um lado para o outro, que é uma coisa que tento não fazer com as minhas filhas. Vão-se perdendo as referências, as âncoras, e como preciso disso, tenho a mania de que elas também precisam. Se calhar, um dia, vão-me dizer que não precisavam nada, que fui uma chata, que queriam era ter andado a saltitar. Por enquanto ainda não chegámos a esse tipo de conversa. Para elas sou um bocadinho um porto seguro. O Piet Hein [Bakker, ex-marido] é muito mais o do discurso amoroso, o do lado lúdico, eu sou a das coisas chatas. Mas também sou aquela que sabe tirar a febre rapidamente, não tenho medo do sangue nem de vacinas, sou uma valente.
Voltando à questão do sex appeal: fugiu-me ao controlo, fugiu-me por entre os dedos. Não consegui, não percebia, achava que tinha colegas muito mais giras, muito mais bem-feitas. O que é que aconteceu aqui? Foi uma sucessão de papéis que fizeram saltar uma imagem para o público…
Ao mesmo tempo, gostou de ser olhada, apreciada.
Houve uma altura em que fiquei vaidosíssima. “Está tudo maluco, mas é tão bom”. Recebi imensas flores de desconhecidos no teatro. Se me dissessem que isto ia acontecer quando tinha 13 anos, eu diria: “Não, antes disso já cortei os pulsos, já me suicidei”. Passei uma adolescência martirizada, com imensas crises existenciais. Achava que nem sequer ia chegar a adulta.
Já lhe ouvi essa expressão: “Vou ali cortar os pulsos e venho já”. Continua a dizer isso?
É uma coisa que agora podia dizer ao Diogo Infante, não fosse ele um encenador tão fantástico. Posso falar um bocadinho dele? Já nos conhecemos há muitos anos. Tenho uma grande admiração por ele como actor. Como pessoa, é um tipo com coluna vertebral. Cumpre as tarefas todas, tão bem cumpridinhas que nem se nota o esforço. Como encenador é muito duro e exigente, leva-nos a um estado de exaustão… Não estava prevenida para isto. É tão inteligente, tão generoso, tão disponível, tão desconcertante. Depois desta grande paragem, é assustador voltar. Seria sempre assustador fazer esta peça, para qualquer actriz. Isto não é mesmo como andar de bicicleta.
Hesitou em fazer esta personagem, pensando que as pessoas podiam colá-la à Blanche?
Hesitei. O Diogo só dizia: “Estou-me a borrifar!”. A minha primeira reacção foi: “Nem pensar!”. Vão dizer: “Ela está a fazer de ela própria”. Mas não. Trata-se de uma louca, vai-se desequilibrando. Por desespero, escolhe as piores soluções, vai pelos piores caminhos. Mete-se com um miúdo de 17 anos, um aluno. Torna-se numa persona non grata na cidade, é proscrita. Vem com um baú, tudo o que ela possui está naquele baú. Pede auxílio a uma irmã. A juventude já se está a ir embora, já não chegam os filtros na luz, a maquilhagem, os vestidos. Já não chegam esses disfarces todos.
Voltando ao texto: “É uma flor colhida há alguns dias”.
É isso que ela é. Diz isso dela própria: que está a murchar.
O problema da idade é o que tem em comum com a Blanche. Olha para si, às vezes, como uma flor colhida há alguns dias?
Sim. E acho que o público também. A Blanche passa a vida a tentar transformar o realismo em magia, por isso é que põe disfarces em tudo, por isso é que usa máscaras atrás de máscaras. Cai na sua própria armadilha. Tanto enganou, tanto forjou que acaba caçada. Deixa de ser a caçadora para passar a ser a presa.
Podemos dizer o mesmo quando olhamos para a sua relação com as revistas cor-de-rosa? É como se tivesse caído na armadilha de expor a sua vida e ficasse refém daquela que ali estava exposta.
Sim, isso é um grande problema do qual me apetece falar pouco. Já chega o que os meus mais chegados, pais, irmão, avó e filhas sofrem com isso.
Como é que caiu nessa armadilha?
Há uma história que justifica isto. Embora sinta necessidade de me justificar, racionalmente não devia ter essa necessidade. As coisas são como são e nós falhamos, fracassamos. E depois evoluímos, acertamos. Somos bons, somos suficientes, e depois medíocres. De facto, neste país, que é pequeno, há algumas pessoas que são mais perseguidas do que outras pela imprensa cor-de-rosa. Às vezes pergunto a jornalistas com quem converso: “Porque é que não me deixam um bocado em paz?”, “Porque você vende, Alexandra”. Vendo pelas piores razões.
Porque é que começou por abrir as portas da sua vida privada?
Isto tem uma história, nunca a contei. Quando deixei de estar com o Virgílio Castelo, tive uma grande paixão pelo Piet Hein, com quem vim a casar e que é o pai das minhas filhas. Não foi assim tão rápido, não me apaixonei por ele e dois meses depois estava à espera de bebé. Mas muita gente pensou que sim. O Virgílio passou a ser permanentemente felicitado na rua: porque ia ser pai! O grande público, o público da rua, dos supermercados, das livrarias, não sabia que estávamos separados. O Piet Hein sentiu necessidade de se apresentar e dizer: “Aqui estou eu, sou holandês, eu é que sou o marido e o pai desta criança”. Aceitámos dar uma entrevista os dois em que se anunciou a maternidade. Ao pensar que estávamos a fechar uma porta e a pôr um fim às nossas preocupações, estava a abrir uma caixa de Pandora. Sabia lá eu, estou a perceber de há uns anos para cá...
Como é que não tinha noção de que abria um precedente?
A imprensa cor-de-rosa funcionava de uma maneira diferente, era mais digna, não inventava. Hoje em dia inventam. Outro dia aproveitaram uma fotografia de uma cena em que a personagem que eu interpretava era assistida por paramédicos e publicaram-na como se eu tivesse tido um ataque cardíaco. No fundo, para falar das histórias de amor e desamor. A minha avó acreditou que eu tinha ido parar ao hospital com um enfarte! Isto é um universo muito perverso.
Então transformou-se numa ficção Alexandra Lencastre.
Espero que não.
Essa vida a que temos acesso nas revistas, os casamentos, as separações, os novos namorados, as tentativas de reconciliação, as filhas, as férias, as rugas, o aumento de peso, as dietas… ficamos com a sensação de que isto é um álbum que todos folheamos.
Sim, como se eu tivesse dado permissão e estivesse muito contente com isso... Quando perguntam: “O que é que faz para contrariar?”. Já fiz tudo. A única coisa que nunca fiz foi processar ou pôr providências cautelares. Não tenho dinheiro para isso. É talvez das poucas maneiras que conheço, legais, de impedir que publiquem coisas sobre a vida privada, por muito públicos que sejamos.
As pessoas imaginam que é rica, que é a actriz de telenovela mais bem paga. Que é loura, que toda a vida à sua volta é glamorosa. Como é que depois diz que não tem dinheiro?
Essa é outra fabricação. Não corresponde à verdade. Fabricam uma Alexandra Lencastre que não é a verdadeira, que não ganha o que anunciam que ganho, que não tem aquele tipo de vida. Quando não estou nas festas ficam danados. Muitas vezes, não vou aos lançamentos, às inaugurações, não estou em lado nenhum. Mas aparecem fotografias minhas, com texto. Para dizer que não estive lá porque estou muito em baixo, que não aguento enfrentar a realidade porque terminei uma relação. A quantidade de namorados que me inventam…, de alguns não sei sequer o nome.
Um namorado que lhe tenham inventado.
O desgraçado do motorista – o que vale é que já nos conhecemos há anos, e conheço a mulher dele, que é um amor – da ex-NBP, agora Plural, que sempre me foi buscar a casa durante as gravações das novelas. Ele já apareceu com a cara desfocada. Já vi paparazzi à porta da minha casa, fiquei revoltadíssima, disfarçam carros, sei que estacionam ali dias inteiros. Não apanham nada a não ser eu a chegar a casa, eu a sair de casa, medonha, com o cabelo molhado às seis e tal da manhã. Depois as miúdas vão para a escola, e não apanham nada de interessante. São fases, depois desaparecem. Já me explicaram como funciona.
Posso vender, interessar, durante duas semanas. Depois aparece outra pessoa que tem mais interesse, surge outro escândalo.
O que é que fez, realmente, para pôr um travão nisto de que se queixa?
Tenho tido no último ano e meio o apoio da [agência] Central, do Tó Romano e da Mi, que me garantiram que iam dar a volta a esta situação. Não conseguirem. Têm a Central há 20 anos, sempre intocáveis; perceberam que se chateiam muito e se pedem para não publicarem, começam eles a ter problemas com a imprensa. Tinha sido sempre uma coisa pacífica, uma permuta: “Vocês dão cobertura a este evento e nós arranjamos uma entrevista com este manequim, este casamento”. Nunca tinham visto nada assim.
Porque é que acha que vende tanto, porque é que as pessoas têm tanta curiosidade em si?
[pausa] Não sei, já se tornou quase um hábito. Acho que as pessoas até estão cansadas. Não posso andar com um cartaz a dizer que é tudo mentira. O que é que faço? Já não vou, já não falo, já não atendo o telefone, porque isso já é dizer qualquer coisa, e mesmo assim publicam. Bato-lhes? Aproximo-me desses carros e eles fogem, metem a primeira [imita o som do carro].
Tem a sensação de estar sob observação permanente, como se fosse só um produto?
É. Às vezes ao conversarmos uns com os outros, actores, cantores, pessoas que têm visibilidade desta ou daquela forma, sentimos que temos de pagar uma determinada factura. Se queremos ter alguma privacidade não vamos para a praia mais cheia da Costa da Caparica. Não vamos passear para o Chiado porque sabemos que mora lá um fotógrafo que nem sai de casa, abre a janela e fotografa lá de cima. Procuramos defender-nos mas é triste. Enquanto actriz posso dizer: quero que me conheçam, reconheçam, condenem, aplaudam, whatever, pelo meu trabalho, que é o que vos dou, que sou toda eu.
Mas quando se é uma actriz de telenovela, e nos últimos anos é isso que tem feito, faz parte do pacote aparecer nessas revistas.
De certa forma sim. As produtoras têm esses compromissos e essas revistas vão, semanalmente, publicitando o que se passa nos bastidores.
Porque é que só faz novela? Frequentemente diz-se da Alexandra Lencastre: “É uma bela actriz, mas perdeu-se”. Porquê esta opção?
Primeiro, não é uma opção, tem sido uma obrigação. A partir do momento em que começo a trabalhar na TVI, a oportunidade de trabalho tem sido esta. Para além da minha participação no Equador, não tem havido muitos telefilmes, muitas mini-séries. A novela ocupa um tempo total na minha vida. Todos os fins-de-semana tenho 150 páginas de texto para decorar para a semana seguinte. E mais a família, e mais a saúde, e mais não sei o quê que se tem de resolver e não se sabe como. Num ano recusei cinco filmes. É lógico que não os podia ter feito todos; se tivesse aceitado dois como protagonista, já não podia ter feito os outros três. Mas foi horrível, foi duro, fartei-me de espernear.
Recusou porque tem um contrato com a TVI que não lho permite?
Não é que não possa fazer, mas a prioridade é aquela. Se tenho uma personagem pequena, com pouca incidência, que gravo duas ou três vezes por semana, posso conciliar; mas não tenho tido essa sorte.
Porque é que escolhe isso para a sua vida? Porque é que escolhe assinar contratos? Podíamos pensar que é pelo dinheiro, mas se não é...
Não escolhi. É também uma segurança económica, como é evidente. É como estar numa companhia de teatro.
Ganha um ordenado fixo por mês independentemente das novelas que faz. É funcionária.
Sim, é uma exclusividade que é paga e que me obriga a estar disponível. Com o José Eduardo Moniz foi discutida esta peça, senão teria sido muito difícil estar a fazê-la. Também já recusei várias porque o teatro é tão intenso, tão absorvente que é impossível. Ainda mais com as miúdas, e morando mais longe. Ao fim de duas semanas morria, ia-me abaixo, ia ao tapete. Aí sim, é que a Alexandra Lencastre se perdia. Não me perdi nada a fazer novelas. As pessoas quando dizem isso são cruéis. Tenho aprendido imenso. A novela é uma musculação do actor fortíssima. Tem coisas más, pode criar vícios, muletas, zonas de conforto em que nos encostamos à box, mais do mesmo, cria frustrações, isso é tudo verdade. Mas se é actor, se na sua essência tem alguma coisa para dar, não se perde; aprende e dá qualquer coisa ao grande público,
Gosta de fazer novelas?
É com orgulho que faço novela, não é com vergonha. Às vezes é com muito cansaço e com pena de não crescer mais como actriz, trabalhando em cinema e em teatro, com pena de ter perdido a oportunidade de trabalhar com pessoas fascinantes e com quem adoraria experimentar esta troca. Mas fico revoltada com isso, é tão redutor... É a mesma coisa que dizer: “Não vi e não gostei”. Se não viram e não gostaram, não falam. Às vezes acho graça encontrar pessoas que fazem parte de uma elite e que dizem: “Vejo novelas e gosto”. Também me dizem que é pena não voltar ao teatro, perguntam porque é que não quero, se tenho medo.
Boa pergunta: tinha medo de voltar ao teatro?
Tinha. Parei de fazer teatro quando tive a minha segunda filha, há 12 anos. Tinha uma peça agendada com o João Lourenço, o Quase, no Teatro Aberto, e não consegui fazê-la. Estava a fazer uma depressão pós-parto e não estava a perceber. Comecei a ir abaixo e fiquei a pesar 41 quilos. Tinha medo que elas morressem a qualquer instante. Deixei de dormir, passava o tempo a olhar para elas para ver se estavam a respirar. Compliquei mesmo a minha vida. Tive a grande sorte de ter um homem que me apoiou de uma forma incondicional e que segurou a nossa família. É como se me tivesse quebrado, me tivesse colado e a cola ainda não estivesse seca. Ia-me partir e depois já não se encontrava um bocado ou outro. Então o melhor era ficar ali até aquilo solidificar.
Foi a primeira vez que percebi que podia estar a dar um grande pontapé na sorte. Que podia estar quase a insultar as pessoas que acreditavam em mim. Nunca pensei estar tanto tempo sem fazer teatro. Mas depois, uma novela são 11 meses, mais um mês de ensaio, e cortes de cabelo e provas de guarda-roupa. Tenho 45 anos, não tenho 25 nem 35. Tenho muito calor, transpiro, doem-me as pernas, doem-me as costas. É violentíssimo.
Quando fala do medo de voltar ao teatro, verdadeiramente era o medo de quê?
De já não saber usar a voz, o corpo. De me ter esquecido das coisas do Conservatório. De ter criado os tais automatismos, as recusas, as defesas. De já não saber oferecer-me de corpo e alma, e sangue.
Na peça, fala-se de sangue e de perfume de Jasmim.
Isso sim, tenho em comum com a Blanche: estar sempre a borrifar-me de perfume. À Blanche, toda a animalidade do Stanley, que a percorre com um arrepio, repugna-a simultaneamente. A irmã diz, referindo-se a Stanley: “Ele não é do tipo de apreciar perfume de jasmim, mas talvez seja o tipo ideal para misturar com o nosso sangue”.
É uma frase que fala de sentidos, de carne. E tudo aquilo é crepuscular ao mesmo tempo. Stella, a irmã de Blanche, diz que os homens, a sua força animal, a deixam electrizada.
As metáforas estão lá, e as alusões, e os duplos sentidos. Pensei que ia deixar de fumar com esta peça, mas afinal tenho de fumar –chatice. Blanche não é por acaso, Stella também não – estrela. O azul está muito presente na descrição do ambiente. Acho que são memórias do Tennessee Williams, da sua infância, que faz também um ajuste de contas com o seu passado. Através desta personagem faz a crítica ao sistema. Esta mulher, que chegou ao ponto de se prostituir, de se entregar a estranhos…
A frase mais famosa da peça é: “Sempre dependi da bondade de estranhos”. Na peça, traduz-se kindness por bondade.
Ela foi ganhando uma repugnância a tudo o que é brutal, animal, espontâneo. Por isso é que passa a vida a tomar banho, e toma banhos quentes, com uma necessidade de se purificar. É interessante como é que uma pessoa que já se sujou tanto tem esta arrogância enorme, sulista, este lado quase aristocrático, palhaço, de criticar tudo à sua volta.
Mas ao mesmo tempo diz: “Não sei durante quanto tempo conseguirei manter a ilusão”. No seu caso, nunca perde de vista o que é que é postiço, o que é que faz parte do seu núcleo inviolável?
Não. Isso é muito importante para qualquer actor, para não perder a sua identidade. É lógico que somos contaminados. Não fazemos as coisas por fora. Até chegar a casa demoro um bocadinho a expulsar a Blanche de dentro de mim. O Dr. Eurico Pessoa, que foi meu professor no Conservatório, e que já não está cá, dizia: “Você é uma doida sensata, é muito disparatada, e faz muitas brincadeiras”. Faço cada vez menos. Era cansativa. O António Feio chamava-me máquina de costura: “Não podemos parar a máquina de costura?, tec, tec, tec”. E havia um lado infantil e provocador, mais do que sedutor. Brincar às pin-ups, mais do que ser a pin-up. Depois era boa aluna; quando era para estudar para os testes, estudava, quando tinha de fazer uma apresentação oral, fazia.
Voltemos à frase do João Perry, à cara pintada sobre a sua, de praticamente só existir com essa cara pintada. Sabe sempre o que é a mascara e o que é o “eu”?
Sei. Acho que acontece à maior parte dos actores: somos simultaneamente exibicionistas e hiper-crítico connosco próprios. Gostamos pouco de nós próprios. Se calhar por isso temos necessidade de nos transformarmos neste e naquele. De sair de uma coisa que não tem solução. A cara com que acordo é aquela cara, não é outra, mas gosto de disfarçar aquela cara.
Porque é que não gosta dessa que está lá atrás?
Porque não corresponde ao ideal de beleza feminino que tenho, a sério. Porque sou muito angulosa, tenho as feições muito descompensadas, irregulares.
Os actores não gostam de si próprios, é um problema de auto-estima?
Sim. Somos sempre nós, mais as circunstancias que nos rodeiam. Vivi entre pólos opostos. O lado da família da minha mãe e o lado da família do meu pai proporcionaram-me um choque – como existe nesta peça – não só cultural. De um lado tinha uma família onde prevalecia o colo, o mimo, as 30 e tal pessoas à mesa a almoçar, o apoio permanente, o conforto, a segurança, o optimismo. Do outro lado, o pessimismo, os pés na terra, o trabalho como valor primeiro, o ter cuidado a descascar a fruta para não desperdiçar. De repente, apetece-me mais identificar-me com o lado confortável. Mas depois começamos a crescer e a perceber que a vida é outra coisa, começamos a aproveitar do outro lado também. Há uma confusão na cabeça: quem é que quero ser? Quero sair a quem? O que é mais importante? Foi uma coisa que nunca consegui resolver. Tentei, como faz parte da minha natureza, harmonizar.
Mesmo que grite.
Mesmo que grite. Depois peço desculpa. Há coisas que não se explicam. Se fizer análise – nunca fiz –, se for ao fundo dos fundos... Até tenho medo. Não de ir ao fundo. Não quero é arrumar. Só quero ter arrumado aquilo que é suficiente para sobreviver com alguma tranquilidade.
Não quer arrumar porque usa essa matéria para trabalhar?
Exactamente. Essa falta de auto-estima, tem-me dado tanto jeito, não a quero resolver. Isso manifesta-se quando tem de se manifestar, de preferência no trabalho.
Vamos à frase famosa: “I have always depended upon the kindness of strangers”. Alguma vez disse essa frase?
Não, não gosto de desconhecidos [riso]. Não confio. E primeiro que um desconhecido passe a ser conhecido, ui. Numa peça que fiz, O indesejado, do Jorge de Sena, fazia um pequeníssimo papel, tinha imenso tempo livre. Conheci um fotógrafo americano que era uma brasa, daquelas brasas Marlboro Man que impressionam qualquer jovem com 19 para 20 anos. Ele devia ter 27. E queria levar-me. Só falámos duas vezes e percebi logo que nunca dependeria da bondade de estranhos.
Gosta de ser você a controlar a sua vida?
Sim. Não quer dizer que não tenha pisado o risco. Às vezes por excessos amorosos. Sou muito apaixonada, fico doente de amor, posso invadir o território do outro. Fico um bocadinho melindrada, feita parva, com esta idade já devia ter aprendido que não se deve esperar dos outros...
O que é que ainda lhe dá prazer?
Um prazer muito físico é nadar. O meu avô materno ensinou-me a nadar com dois anos. Atirava-me para as ondas da Ericeira, da Praia do Sul. O meu pai atirava-me em Vieira de Leiria para aquelas ondas horríveis, de mar castanho, pavorosas. Venci o medo do mar e achava-me uma heroína. O meio aquático é um meio onde me sinto muito reconfortada. Quase como atingir uma determinada plenitude.
O que é que lhe desperta desejo? A peça chama-se Um eléctrico chamado desejo; mas antes de chegar a Desejo passa por um sítio chamado Cemitério.
Fazia-me imensa impressão, soava-me a falso. Um eléctrico chamado desejo? Comecei a pensar: “Que disparate, então nós não temos um que vai para os Prazeres?” E outro da Glória. O que ainda me desperta desejo? Fruta. Dormir com as duas miúdas e acordarmos bem dispostas. Ter tempo. Ler. Ter tempo para reler A espuma dos dias, do Boris Vian, que me marcou muito quando era novinha. Às vezes prefiro reler do que abraçar um desconhecido. O desejo de estar em paz, sem angústia. Desejo ultrapassar este grande obstáculo que é voltar a pisar um palco. Ainda me falta o desejo de entrar num eléctrico chamado desejo.
Publicado originalmente no Público em 2010
Apoio à preparação da entrevista de Tiago Bartolomeu Costa