José Miguel Júdice (sobre Portugal)
José Miguel Júdice diz coisas de que não se arrepende. Está a fazer a apologia de um novo golpe? “Estou, claro. As revoluções são sempre anti-constitucionais. Umas têm sucesso e reescrevem a História, outras não.”
Sobre as coisas de todos os dias: Guterres foi um dos piores primeiros-ministros da democracia, Portas é um histérico, Passos e Seguro são a mesma pessoa, sendo que Seguro é um maçador, Cavaco é um político pouco corajoso que não fez as reformas que era preciso fazer quando havia uma conjuntura que o permitia. Sobre o contexto em que estamos: “O grande problema do Estado Social é que durante 30 anos foi possível, na Europa, dar tudo ao lumpen, dar tudo à classe média-baixa, dar tudo aos milionários, às empresas, dar tudo àqueles que estão a envelhecer e dar tudo aos que estão a nascer. Não há ninguém no mundo que não diga: óptimo.” A factura, diz, paga-se agora. Rasga-se o papel e começa-se de novo? Como é que se rasga o papel?
José Miguel Júdice é advogado. Diz bastante o que pensa. É raro.
Carta a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena, começa assim: “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós”. Que mundo quis para os seus filhos?, que têm a idade da democracia. Queria pegar nos sonhos e no desabamento de sonhos.
Os meus filhos têm entre 40 e 27 anos. Os dois mais velhos nasceram um em 72 e outro em 73, mas não viveram a ditadura. Viveram um bocadinho da ditadura que se seguiu ao 25 de Abril.
A ditadura de esquerda, o PREC – é assim que lhe chama?
Foi uma ditadura. Podia ter sido sanguinolenta, felizmente foi pouco. Não deu tempo. A única coisa que quis para os meus filhos, simbolicamente, é que fossem o número dois da escola.
Porquê?
Porque a pressão excessiva que se coloca nas pessoas desestrutura-as. Dito isto, o que sempre quis foi que fossem felizes. A felicidade é causada por factores interiores, individuais, psicológicos, subjectivos, mas também há um contexto ambiental que facilita ou dificulta a felicidade. E a conjuntura envolvente em que vão fazer a sua vida é uma conjuntura que dificulta imenso a felicidade. A geração dos meus filhos, e a geração seguinte, está a pagar um preço injustíssimo da bandalheira, do abuso, do egoísmo, da falta de sentido de Estado e de futuro, de gerações sucessivas que tomaram conta do poder a seguir ao 25 de Abril. Vão pagar um preço trágico que podia ter sido evitado.
Podia ter sido evitado?
A comoção, o entusiasmo que resultou da explosão do 25 de Abril – que tinha que dar muita confusão –, podia ter sido normalizado. Não [temos] uma sociedade normalizada, uma sociedade onde as pessoas são responsáveis, não abusam da condescendência alheia. Onde os políticos estão interessados em servir a sociedade. Onde os ricos têm sentido social. Onde os pobres têm vontade de trabalhar. É com grande mágoa que olho para o que a minha geração fez deste país. Isto vai ser pago pelos meus filhos, netos – que já tenho –, e seguramente pelos meus bisnetos, se não pelos meus trinetos.
Quando é que achou que o caminho era irreversível? Quando é que os sonhos se esfumaram e deixou de acreditar que era possível construir um país novo?
Ao longo da vida os sonhos esfumam-se. E ainda bem. Sejam eles quais forem, não podemos viver numa eterna juventude. É maravilhoso ter o complexo de Peter Pan, mas não é bom para as sociedades. Estamos agora a viver um momento de complexo de Peter Pan.
Falta de maturidade?
Esta crise política que estamos a viver é um caso típico de dois adolescentes tardios. Duas pessoas [Passos Coelho e Paulo Portas] que têm enormes qualidades, mas que nunca fizeram a sua maturação. Devemos perder grande parte dos nossos sonhos e das nossas ilusões – eu perdi imenso – pela maturidade.
Que sonhos tinha e que ficaram pelo caminho?
Tive uma grande desilusão com a morte de Sá Carneiro. A dor da morte de Sá Carneiro fez-me entrar no PSD. Como que a dizer: “Vou contribuir para continuar o que Sá Carneiro ia fazer”. A segunda grande desilusão foi com o cavaquismo. Cavaco Silva teve tudo, tudo.
Dinheiro, sobretudo.
Não só. O país estava muito frustrado e ofendido com os abusos da esquerda festiva. O país queria ordem, tranquilidade, progresso, uma sociedade democrática. E houve muito dinheiro para fazer isso. Cavaco podia ter feito todas as reformas e não fez praticamente nenhuma.
Durante dez anos critiquei sistematicamente o que Cavaco estava a fazer, embora sendo PSD, embora sendo apoiante – em termos de mal menor... –, tantas vezes.
O legado positivo de Cavaco é o betão? Foi essa a marca ainda hoje visível que deixou no país?
Há betão importante. Fez coisas muito boas em termos de hardware, mas abusou no hardware, e não abusou no software. Sobretudo não foi capaz de enfrentar os grupos de interesse poderosos da sociedade portuguesa.
Porquê?
Cavaco Silva não é um homem com grande coragem. É muito cauteloso. E havia uma ilusão de excesso de dinheiro, de que não era preciso fazer opções. Era possível comprar o carro, a casa, mandar os miúdos para o estrangeiro. Cavaco queria ganhar as eleições, e como o dinheiro dava para tudo, dava tudo a todos.
Depois veio um dos piores ministros da democracia, o Eng. António Guterres. Sendo uma pessoa de bem.
É forte, essa.
É. Só é discutível se é pior ou não pior que o Pinheiro de Azevedo. (Lá estou eu a dizer coisas de que não me arrependo...) É um homem sério, com enorme sentido de serviço público, repleto de qualidades. É talvez uma das melhores pessoas em termos de valores que foi primeiro-ministro de Portugal durante o tempo da democracia.
Essas qualidades nunca bastam, por mais importantes e raras que sejam. Mas então, o que falta de essencial?
É um homem incapaz de tomar uma decisão. É um homem incapaz de desagradar seja a quem for. Cavaco, como é um macroeconomista de raiz, tentou controlar alguma coisa. E tinha uma missão: entrar no Euro. Guterres teve uma conjuntura de juros baixos como nunca ninguém teve. Gastou-se dinheiro de forma desvairada. Avançou-se no betão de forma absoluta. Fez uma sociedade ainda mais assistencial. Já o Cavaco o tinha feito. Cavaco fez uma medida horrível: aumentar 30 porcento, em média, o salário dos funcionários públicos sem reformar o Estado. Guterres pegou em milhares de pessoas que estavam no Estado e que não tinham contratos definitivos e meteu-as com contratos definitivos.
A aposta na educação, paixão de Guterres, também essa foi completamente gorada?
A aposta na educação foi a aposta na paz com os sindicatos dos professores.
Está a falar, também, do poder das corporações – neste caso, na corporação dos professores.
Que agora acabaram de obter uma grande vitória. O Nuno Crato, que era um homem que aparecia com uma vontade enorme de reformar, não foi capaz. O poder político não é capaz de enfrentar as grandes corporações.
Estamos a começar a pagar uma factura que tem pelo menos 30 anos (porque as reformas não foram feitas nos anos 80)?
Começamos a pagar uma factura que é muito mais antiga. Estamos a pagar uma factura de uma nação que se fez a partir do Estado.
Júlio César dizia: “Há nos confins da Ibéria um povo que não se governa nem se deixa governar”.
Alguns governam-se bem [risos].
Temos picos de crise e de prosperidade, mas o problema é antiquíssimo. Que coisa é esta de não conseguirmos governar-nos?
É uma das grandes preocupações que tenho. Porquê o arcaísmo português? Por que é que Portugal não é um país capaz de se reformar? Por que é que não fazemos micro-rupturas reformistas e estamos permanentemente a fazer macro-rupturas revolucionárias – muitas vezes superficiais –, que fazem com que andemos sempre às arrecuas?
Que respostas tem encontrado?
É assim porque não há uma sociedade civil em Portugal. O Estado fez a sociedade, não foi a sociedade que fez o Estado. Somos um Estado que fez uma nação e não uma nação que criou um Estado. Não confiamos na sociedade.
Cavaco, um homem de centro-direita, no fundo tem uma epidérmica reacção contra a acumulação de riqueza. Em Portugal, mesmo os partidos de direita são antiliberais. Fomos sempre um país de comunismo burocrático. Por isso é que os grandes grupos económicos se dão bem.
Sobretudo se recebem dinheiro do Estado...
É uma ilusão pensar que o socialismo não se dá bem com o capitalismo – dá-se muitíssimo bem. Os grandes grupos conseguem tirar essa vantagem, as pequenas e médias empresas têm essa dificuldade.
A iniciativa privada, para os chamados comunistas burocráticos, deve ser tratada como a prostituição. Não é possível evitá-la, então é melhor organizá-la e regulamentá-la. Para um comunista burocrático, era melhor que não houvesse iniciativa privada. Se não se consegue evitar que haja, há que regulá-la. De certa forma ela tem que ser tolerada. O que esperava da democracia que tivemos – ou que temos, com alguns defeitos –, era que se cortasse com o arcaísmo. Não se cortou.
Essa matriz estatista é sem dúvida é dominante. Associada a essa há outra matriz: a do autoritarismo e dos 48 anos de ditadura.
Claro que sim. Por que é que Salazar sobreviveu? É uma questão a que a esquerda tem uma dificuldade enorme em responder. Havia um Estado totalitário, uns malandros, e o pobre do povo foi uma vítima. Também é verdade, mas é apenas parte da verdade. Sobreviveu porque é um regime que se adequa a uma sociedade arcaica.
Um regime que toma conta.
Toma conta e desresponsabiliza-nos. Podemos sempre dizer que a culpa é deles. Temos uma sociedade que gosta de autoritarismo. Somos impotentes como povo. Gostamos de gritar, mas a impotência é a pior das limitações.
Somos agora impotentes?
Estamos a viver um período de enorme impotência. Queremos que haja uns tipos a chamar nomes à Troika. Ou – não sei se é verdade – a cuspir no Gaspar. Cuspir no Gaspar é o sinal mais típico da impotência, malcriada, ordinária.
Outra coisa: as sociedades arcaicas exploram o medo. Salazar reprimia um bocadinho, uns grupos intelectuais, republicanos históricos, revolucionários, tinha cautela com os comunistas. De resto, a sociedade portuguesa não precisava de ser reprimida, bastava ter medo. A coragem em Portugal é considerada uma coisa dos inúteis.
O facto de sermos um país pequeno, de dez milhões, faz com que todos nos conheçamos. Todos somos primos uns dos outros, o que torna esta teia mais frágil e de malha mais apertada.
Mas há outros povos pequenos em que não é assim. A liberdade é um valor a que os portugueses não dão muito valor. Não gostamos da liberdade, gostamos da anarquia.
Porém, veja como foi tratada a anarquia da Primeira República.
Mas isso é violência. E não gostamos da violência. Somos comerciantes. O homem livre é um homem eminentemente responsável. O revoltado é um homem muito estimável, é mais estimável do que o revolucionário. Do revoltado não se faz um ditador.
E faz-se uma revolução?
Os revoltados tiram a pressão.
Então para que serve a revolta?
Serve para a nossa consciência, para nos sentirmos bem connosco. Uma das coisas que estudei foi o conflito entre a liberdade e a democracia. O paradigma idealista-ingénuo diz que é a mesma coisa. Mas não. São coisas opostas.
Opostas ou diferentes? São diferentes, seguramente.
Opostas. A democracia mata a liberdade, muitas vezes. E a liberdade muitas vezes não quer democracia. Parece paradoxal, mas é verdade. Historicamente vem do grande conflito entre Montesquieu e Rousseau. As origens de todos os totalitarismos, nazismo, o fascismo, o leninismo, estão no Rousseau. Toda a liberdade vem do Montesquieu.
É em nome da liberdade, curiosamente, que as revoluções como a que vemos no Egipto se fazem, e depois são apanhadas. A democracia é conservadora. Os povos são conservadores. Há uma frase muito curiosa, trotskista…
José Miguel Júdice a citar Trotsky...
E muito mais. Vou ao supermercado e abasteço-me do que gosto, nunca aceitei pratos únicos. Trotsky diz: “Não é verdade que a revolução coma os seus filhos. A revolução come os seus filhos bons. Os filhos maus comem a revolução”. Isto é uma visão moralista das coisas, mas é uma visão histórica. No Século XX, Século XXI, diz-se que o poder não é para ser aprisionado pelos poderosos em seu benefício. Ao longo de dez mil anos de hominalidade foi sempre assim: umas pessoas tomam o poder e enchem-se com o poder. Depois são atirados fora e vêm outros.
O poder e o dinheiro funcionam em circuito fechado. Não se misturam.
[As pessoas que têm dinheiro em Portugal] não dão nada aos outros, ou dão muito pouco. O egoísmo é outra característica das sociedades arcaicas. As pessoas são manhosas, cautelosas, não confiam.
Receamos. Já apontou o medo como um dos traços dos portugueses.
As sociedades modernas estão a evoluir numa direcção que me preocupa muito. Alguém dizia: são umas direcções de “demo-dura” ou “dita-cracia”, um misto entre democracias e ditaduras. Está a acontecer por todo o mundo. Há 60 ou 70 anos que achamos que as sociedades vão ser todas iguais, todos a viver bem (não há muito ricos nem muito pobres). Esse paradigma está a ser destruído em todo o mundo.
E a ser substituído descaradamente pela plutocracia.
Foi sempre assim no mundo. As classes possidentes casavam as filhas com os tipos que iam subir, “douravam os brasões”. Ou casavam os filhos com as herdeiras ricas.
Em Portugal, a permeabilidade social é reduzidíssima, apesar do muito que se evoluiu.
Havia condições no Século XXI – era o meu sonho – para vivermos numa sociedade mais em rede, menos hierarquizada. Aqui no meu escritório às vezes trabalho sob a coordenação de uma advogado 20 anos mais novo que eu. Mas sou atípico.
Sabe se tem aqui no escritório pessoas que vêm do nada, muitas dessas?
Quase todos. O nosso escritório, e acho que contribuí muito para esse DNA, é um escritório onde praticamente não há nenhum sócio que venha das elites portuguesas. Isso prejudica-nos por causa das redes de contactos.
De qualquer modo, continua a ter muitas pessoas de referência entre os sócios, com uma agenda poderosa.
Mas não vêm dos poderosos. Eu vim de uma família aristocrática de província. O meu pai era filho de um chefe de repartição de finanças, era classe média-baixa. Estudei em Coimbra numa escola primária pública. Se for olhar para os sócios que tenho no escritório, todos eles se fizeram. Não há ninguém que se dissesse que era uma grande figura do antigo regime ou da aristocracia possidente da democracia.
Os Mello e os Champalimaud também não querem trabalhar nos escritórios de advogados, trabalham nas empresas da família, ou gozam o dinheiro.
Penso que o nosso escritório é de self made men, de pessoas que lutaram, que chegaram mais longe que os pais.
A ideia da igualdade faz-se através do ensino, e essa ideia muito generosa foi destruída em Portugal. A sociedade portuguesa hoje é mais anti-igualitária (por muito que isto pareça ofensivo para aqueles que chegam) do que era a sociedade da ditadura. Claro que hoje em dia chegam muito mais, é fantástico que assim seja. Mas o sítio onde se nasceu é hoje mais importante.
Quem é que em Portugal teve coragem? Políticos.
Três nomes de pessoas que admiro muito, com todos os seus defeitos, e admiro mais uns do que os outros. Foram primeiro-ministro e tiveram coragem. Mário Soares, Sá Carneiro e Sócrates. Quem teve mais razão foi Sá Carneiro. Quem vai marcar mais a história do Século XX português é o Soares. Sócrates já é um fruto do estado em que estamos.
Quem é que hoje tem poder em Portugal na vida de todos os dias?
Somos uma sociedade onde há micro e médios-poderes capazes de bloquear, mas não há ninguém neste momento que tenha poder. Ou por outra, há: os nossos credores. Só há um poder em Portugal: a Troika. Ou quem ela representa: a Merkel.
Pode falar dos micro e médios-poderes?
São poderes que conseguem bloquear mas não conseguem fazer.
Quem é que pode bloquear?
Toda a gente bloqueia. As empresas incumbentes, os que têm monopólios de facto, sindicatos, as estruturas que interpretam a Constituição, os políticos, os autarcas. Bloqueiam os médicos, os professores, os advogados, os juízes.
Houve pessoas que mandaram em Portugal, mas quase sempre em ditadura. Não sabemos mandar em democracia. Não tivemos tempo de aprender e não escolhemos dirigentes capazes. Mandar em democracia é mais difícil. É preciso muito mais convicção interior. Soares tinha poucas convicções, mas as que tinha, tinha-as fortemente. Tinha um corpo central de coerência e de intransigência, e no resto era oportunista. No mundo actual é o contrário. À superfície têm umas aparentes firmezas, mas lá dentro é tudo mole. Ninguém reconhece um erro. Todos os dias reconheço erros; na política não se podem reconhecer erros, não se pode elogiar o adversário.
Outro traço muito português: quem chega a seguir desfaz o que foi feito, de modo acrítico e a eito.
A culpa é sempre da anterior autarquia. Os dirigentes políticos chegam lá, não a tomar decisões..., chegam lá desde que não se zanguem com ninguém. Sobem rastejando, intrigando, prometendo, garantindo, trocando. Quando chegam ao cimo não têm qualquer estrutura psicológica para serem mais que teimosos.
Os dois líderes que temos neste momento no PS e no PSD saem desse viveiro?
O Pedro Passos Coelho e o António José Seguro são a mesma pessoa. São amigos, tratam-se por tu. Depois atacam-se em público como se fossem os maiores inimigos. Os políticos insultam-se todos os dias e fazem as pazes todos os dias.
Isso não faz parte do jogo da política?
Não se pode insultar as pessoas impunemente. Acho ridículo que Cavaco se ofenda por lhe chamarem palhaço. Mas percebo a sua reacção. O que não percebo é que não tenha tido outras. Já lhe chamaram coisas bem piores. O Sá Carneiro não transigiu com a maioria do seu Grupo Parlamentar, ficou completamente sozinho. E disse: “Nunca tive tanta convicção de estar certo”. A política precisava de pessoas destas, não há. Há pessoas teimosas, mas pessoas capazes de arriscar tudo com base numa convicção, não há. Por isso é que a Europa e o mundo estão no estado em que estão.
Em Portugal, de onde é que vêm, ou podem vir, essas pessoas? De que é que precisamos?
Precisávamos de acabar com estes partidos.
Soa a frase demagógica. Como é que se acaba com estes partidos?
Era preciso haver um golpe de estado ou uma revolução que mudasse o sistema político português. Era preciso fazer uma ruptura.
O que é que preconiza?
Não tenho dúvidas de que a única solução é optarmos pelo presidencialismo. Este sistema semi-presidencialista é típico da alma portuguesa. Todo o sistema constitucional é para que não se possa fazer. Para ser aprovada uma moção de censura é preciso que haja maioria contra. Se todos se abstiverem, não passa, apesar do partido ter 50 tipos a votar... Era preciso uma ruptura que o Cavaco não é capaz de fazer. Não podemos não tentar, morrer tentando.
Morrer na praia – expressão tão portuguesa.
Exactamente. O Presidente da República devia fazer uma ruptura no regime. “Eu digo quem vai governar e desde já vos digo que vou criar as condições para mudar isto”. O país está sequioso disso. As elites do país odeiam os políticos.
Não só as elites. As pessoas que vêm para a rua estão divorciadas dos partidos e dos políticos.
Eu sei, mas agora estamos a falar das elites, dos médicos, dos professores. Desprezam estes políticos. O 25 de Abril acabou com uma classe política e pôs lá outra.
Entre essa classe política, havia pessoas muito boas e respeitadas. Olhe para a composição dos governos dos anos 70.
Acha que hoje alguém está disponível? O Pedro Passos Coelho tem tido coragem, louvo-o por isso. Mas uma pessoa que tenha tido uma carreira brilhantíssima em qualquer outra coisa aceita ser ministro de Passos Coelho? Aceitará, mas sempre olhando de cima para baixo para o primeiro-ministro. Nunca achará que o primeiro-ministro é o melhor deles todos. Um Governo tem que ter no primeiro-ministro o melhor deles todos.
Paulo Portas acha que é melhor que Passos Coelho?
De certa forma é. Portas é um político profissional, mas, como todos, quando se irrita comete erros. Um político profissional é frio. Durão Barroso é um bloco de gelo, e nessa medida é um grande político. Chegou a presidente da Europa [CE].
Mesmo não tendo um grande poder.
Tem mais poder ali do que se fosse líder da oposição em Portugal. É um homem implacável, não tem amigos, não tem aliados. O Portas é um emocional, tem uma componente histérica.
É a primeira vez que oiço chamar emocional a Portas.
Tem uma estrutura psicológica de histérico. Atenção, não estou a ofender. A histeria é uma característica que muita gente tem – eu tenho um bocadinho. O contrário da obsessão. O Seguro é o retrato de um obsessivo. O Seguro é um maçador. Não o convidava para ir jantar a sua casa. Mas convidava o Marcelo ou o Portas, dois grandes histéricos. Muito inteligentes.
Barroso seria o homem para liderar esse sistema presidencialista que advoga?
Não. Era preciso ir buscar uma grande figura entre o PSD e o PS. Uma grande figura humanista, respeitada pelas elites. Uma pessoa que dê sossego aos conservadores e dê algum sonho àqueles mais favoráveis à mudança.
Quer nomear?
Nenhum deles está com pachorra para isto, mas Rui Vilar e Artur Santos Silva são duas pessoas que têm as características para uma coisa dessas.
António Nóvoa?
Conheço-o mal, mas opta por ser uma expressão de uma esquerda festiva, ainda. A festa já acabou. Não é possível pensar que o modelo que Nóvoa defende e representa se vai manter, em Portugal e na Europa. O homem que se situa aí é um equívoco. Pode ser eleito, mas é eleito para não fazer nada. Não pode fazer, vai trair aqueles que o elegeram.
Está a dizer que está esgotado este modelo de Europa, que se fez depois da Segunda Guerra, e que o Tratado Franco-Alemão celebra.
Temos duas alternativas. Uma é aguentar. Outra é dizer que não vamos aguentar e que nos vamos adaptar. Em França a taxa máxima de IRS é de 45 porcento e começa com 150 mil euros. Em Portugal começa com 80 mil e são 57 porcento. Pagamos muitíssimo mais impostos do que os franceses. É preciso tributar fortemente os dividendos.
Nesse caso ataca-se o grande capital e as corporações.
Mas é preciso tirar a protecção de emprego que existe. É preciso liberalizar o mercado de emprego. O problema é que não se pode só pegar numa coisa, tem que se pegar em todas. Se tiram a uns e não tiram a outros… Tributar os dividendos: é claro que há pessoas que se vão embora, mas há outras que não se vão embora. É injusto que uma empresa que tem mil trabalhadores, e que tem lucro de um euro, pague 35 porcento de impostos, que é o que a empresa e os trabalhadores entregam de Segurança Social. Uma empresa que tem um trabalhador e um lucro de 100 milhões praticamente não paga impostos.
Essas empresas são as que sabem não pagar impostos...
A maior parte dos impostos são pagos sobre a mão-de-obra. Mas quem paga são as empresas, não são os trabalhadores. É o colonialismo ideológico que lhe diz que é você que paga o seu IRS. Quem paga o seu IRS é a empresa que lhe dá trabalho. O Estado diz que é preciso criar emprego, mas todo o sistema jurídico-social está feito para pagar imposto sobre o emprego, e não sobre o capital.
Qual é a sua proposta?
O capital devia pagar mais impostos e o emprego devia pagar menos. Deviam fazer-se arbitragens, pagar menos na Segurança Social e pagar mais nos dividendos. E depois fiscalizem.
Ainda não falámos de fiscalização e de justiça. A justiça é uma das coisas de que se fala quando se fala dos gravíssimos problemas de Portugal.
Peguei em quatro anos da minha vida, em que deixei a minha vida profissional, sem ganhar um tostão, para tentar no microcosmos da justiça, ajudar. Tenho alguma legitimidade para falar. Grande parte das reformas que estão a ser feitas hoje resultam do que foi defendido por mim e por outros nessa altura, designadamente no Congresso da Justiça. Há reformas a serem feitas no Estado. Quando o Sócrates chegou ao Governo havia três mil professores nos sindicatos pagos com os meus impostos. Os professores com horário zero custavam ao Estado tanto como custava a Polícia Judiciária.
Os políticos têm que escolher entre ter o país paralisado para fazer reformas de facto ou apostar em eleições, que são para ganhar daqui a uns meses. Estamos às portas das autárquicas.
Se algum político tivesse tido uma vida profissional antes de ser político, se tivesse dirigido uma empresa percebia que isso não é assim. As empresas estão permanentemente a fazer o dia-a-dia e a reinventarem-se. Os ministros chegam ao Governo e deviam começar a fazer a reforma de Estado naquele dia. Mas mexer no Estado dói.
Não se mexe nas autarquias e nos BMW do pessoal das autarquias.
Claro. Os gabinetes têm que diminuir. Por que é que um político não pode andar de táxi? Por que é que um ministro não pode guiar o seu automóvel?
Passos Coelho deu um presente envenenado a Portas: “Faz tu a reforma de Estado”. Portas andou a empurrar com a barriga. Como tinha um prazo até ao dia 15 de Julho [a entrevista fez-se no dia 5], arranjou o sarilho e foi-se embora. Ele quer continuar na política, se fizer a reforma de Estado morreu como político. Nunca mais vai ser eleito porque a malta não lhe vai perdoar.
Como é que percebeu que isto que parecia ser a tempestade ia ser uma tempestade num copo de água?
Isto é tudo à superfície, os problemas reais estão por baixo e a espuma disfarça. Ninguém vai mexer nos problemas essenciais.
A figura chave será Cavaco?
É. Ele quer estar, no momento em que estivermos à beira do abismo, em condições de salvar a civilização. Escolhe muito bem um bom primeiro-ministro, dá-lhe apoio absoluto, dá-lhe autoridade para formar o Governo como quiser. E dá-lhe apenas um mandato: fazer a reforma do Estado e desencadear o crescimento económico. “E podes ter a certeza de que te mantenho mesmo que na Assembleia da República te mandem abaixo”.
É possível fazer isso à margem da Assembleia da República?
O 25 de Abril não foi inconstitucional?
Está a fazer a apologia de um novo golpe.
Estou, claro. As revoluções são sempre anti-constitucionais. Umas têm sucesso e reescrevem a História, outras não.
Não há um perigo totalitário?
Não, se for feito com homens moderados. Homens como o Vítor Bento. O Vítor Bento sabe exactamente o que é que é preciso fazer.
E Rui Rio…
Não gosto de Rui Rio. Nos partidos não há ninguém. Mas há pessoas de grande qualidade. Gosto do António Pires de Lima.
Queria voltar ao poema de Jorge de Sena, que foi escrito em 1959 e parece que foi escrito para 2013. “Confesso que muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos de opressão e crueldade, hesito por momentos e uma amargura me submerge, inconsolável. Serão ou não em vão?”. Está a referir-se àqueles que foram estripados, queimados, gaseados. É terrível pensar que isto pode ter sido tudo em vão.
Nunca é em vão. Portugal é muito melhor que há 50 ou 60 anos. Sou um optimista nesse sentido. A humanidade avança através do sofrimento – “este vale de lágrimas”. Há um livro de Stefan Zweig, O Mundo de Ontem, que descreve o que era a Europa seis meses antes da Primeira Guerra Mundial – todos pacifistas. Por que é que achamos que a paz é perpétua? O mais provável é que tenhamos guerra na Europa daqui a dez, 20, 30 anos, que nos matemos todos outra vez. Isto não pode criar o cinismo, deve criar maior responsabilidade. Um dos lemas que mais admiro é o do Cyrano de Bergerac do Rostand: a ideia de que temos que fazer, ainda que estejamos convencidos de que [o que fazemos] não vai ter sucesso.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2013