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Anabela Mota Ribeiro

Isabel do Carmo

30.01.21

Num sábado, pela manhã. A casa banhada por uma luz sossegada. A mulher, que caminha para os sessenta, enredada em memórias. A voz da mulher, amaciada pelos anos, contraria a angústia inconformada que ainda a consome. As histórias são as de um Portugal contemporâneo, propenso a querelas políticas e minudências do quotidiano.

Um dia esta mulher pensou em fugir-lhe, e deixou-se fascinar pelos solavancos de uma existência revolucionária. Que significa viver pelo que se acredita, morrer pelo que se acredita.

Os últimos 20 anos, solidamente, reputaram-na na Endocrinologia. E aqueles que agora nascem, não descortinam no imediato que vida era aquela que antes levava, que a fez política, que a manteve encarcerada. Que a fez sonhar. Para, como diz ao fim, se deixar infiltrar pelo sofrimento das coisas que ao coração dizem respeito.

Isabel do Carmo nasceu no Barreiro. É a mulher que a seguir se revela.

 

Gostava de começar por esta casa. Como é que a encontrou?

Quando saí da cadeia foi-me oferecida uma casa, e fiquei a morar em Camarate. Era uma casa num bairro social, tinha jardinzinho, foi arranjada por nós. Mas era muito distante, e tinha dificuldade em que os meus amigos me visitassem lá. Então, há três anos procurámos uma casa, e acabámos por encontrar esta. Vivo aqui com os meus dois filhos: a Isabel, que tem 28 anos, e o Sérgio, que tem 23.

 

Separou-se do Carlos Antunes.

Sim. Quando nos separámos, resolvi mudar de casa; foi uma das razões para a mudança.

 

Como deve imaginar, os despiques da conjugalidade não me interessam. O que é interessante é o que a vida faz com as pessoas e com as relações entre as pessoas. No passado, a Isabel do Carmo e o Carlos Antunes eram faces indissociáveis da mesma luta.

Para nós também funcionava assim, pelo menos para mim funcionava. Era uma ligação de grande complementaridade e cumplicidade. Depois, pronto, as pessoas acabam por ter forças que as separam mais do que as unem. Foi uma separação muito dolorosa, ao cabo de 25 anos.

 

Conheceram-se em Paris, não foi?

Sim. Foi um encontro político. A nossa vida foi sempre muito política. Talvez até demasiado. Talvez a parte mais íntima fosse posta de lado e fosse dada uma maior relevância à parte política.

 

Tinha vinte e muitos anos, militava no PC. Ele era responsável por si.

Não tanto assim. Eu era ainda militante, mas estava numa situação de crítica em relação ao PC. Fui fazer um estágio de medicina para França. Estava muito envolvida nas CDE’s, e uma vez lá, falei num comício. O Carlos Antunes estava na assistência e veio ter comigo. E foi assim.

 

Quem era a plateia?

Emigrantes económicos. Falei eu e falou o Urbano Tavares Rodrigues. O Carlos Antunes era funcionário do PC justamente para a população portuguesa em França. Eu fui indicada como representante da CDE durante o curto período em que lá estava, e acabámos por ter alguma ligação política. Depois conjugámos as nossas críticas em relação ao PC, e saímos ao mesmo tempo.

 

O que aconteceu em 70. Justificava a sua saída do PC essencialmente por dois motivos: a leitura dos Processos de Moscovo e a invasão da Checoslováquia. Ao mesmo tempo, considerava que o PC português ficava aquém das suas possibilidades, não contemplando, por exemplo, a luta armada.

O Estalinismo foi uma situação de grande repressão interna, de intolerância em relação a qualquer ideia divergente. Estaline liquidou a quase totalidade do Comité Central do PC russo. E liquidou um projecto.

 

Um sonho?

Um sonho. Mas em relação aos outros países tinha uma política moderada.

 

Não é inevitável a degenerescência dos projectos utópicos?

A grande questão está em saber o que é que o movimento revolucionário de 17 já continha de gérmenes que desembocaram no Estalinismo. A posteriori é fácil fazer análises: era um país muito atrasado, de camponeses,  90 e tal por cento de analfabetos; provavelmente os primeiros actos arbitrários e repressivos foram praticados pelo Lenine e pelo Trotsky...

 

Será possível identificar no momento um excesso intolerável e irreversível e um excesso sem repercussões significativas?

É um ponto essencial nos movimentos revolucionários: saber quando é que as coisas têm de parar, para a defesa do projecto, a qual inclui repressão, e quando isso evolui para uma situação de repressão generalizada. Penso que no futuro, as questões não serão postas assim.

 

Porquê?

Porque as novas revoluções, se é que revoluções se lhes pode chamar, as novas roturas, não vão ser da mesma maneira.

 

É difícil prever quais vão ser as questões pelas quais as pessoas vão fazer revoluções, e que armas vão empenhar.

As coisas são diferentes em países da África ou da América Latina e países da Europa ou dos Estados Unidos. Naturalmente gostaria de ainda as ver, mas passarão alguns anos até haver roturas. Esta sociedade está insuportável, tanto nos países pobres como nos países desenvolvidos. Só quem for louco é que não vê que um mundo que tem 750 milhões de famintos e outros a rebentar de fartura, um dia rebenta.

 

É nessa assimetria Norte-Sul...

Essa assimetria vai ser, provavelmente, um dos pontos da rotura; até quando os famintos vão aguentar esta situação criada pelos países ditos industrializados. Depois, dentro dos países da abundância...

 

Nesses a doença é a solidão?

É o quotidiano, que é insuportável. Que vida é a das pessoas que moram nos bairros periféricos? Não passam fome, até têm aparelhos electrodomésticos, mas a verdade é que as depressões são generalizadas. Por outro lado, há as fracturas dentro da sociedade; os bairros degradados têm bandos de jovens que entram numa revolta que não é uma luta de classes porque não está organizada e politizada, mas é uma revolta contra a sociedade dos ricos.

 

De uma forma ou de outra, o seu lugar foi sempre o do contra.

Ah, temos que resistir com um discurso contra-corrente. Quando olhamos para a história, vemos que o discurso contra-corrente se vai sedimentando, que acaba por conduzir a roturas a determinado momento.

 

É o seu contributo?

Neste momento é. Não me interessam as formas de organização em que estive no passado. Nos partidos geram-se questões de disputa de poder, de competição, que consomem a maior parte da energia. A que me interessa é a de grupos que se geram sem interesses partidários.

 

A partir dos 80, eclipsou-se politicamente. As aparições dos últimos anos têm que ver com a sua área de trabalho, a Endocrinologia. É fácil para si remeter-se ao silêncio depois de uma vida política tão intensa?

Isso não aconteceu de facto. Logo que saí da cadeia fiz uma tentativa séria de me organizar com várias organizações de Esquerda.

 

Quais?

O PSR, a UDP, o que restava da LUAR. Quando o Otelo e os companheiros do Otelo foram presos, imediatamente o Carlos Antunes e eu criámos uma comissão pró-amnistia. Depois formei o Fórum Ecologista e Alternativo. Depois integrei as Feiras Alternativas. E agora estou muito ligada a iniciativas da Livraria Ler Devagar. Ao longo destes anos não houve semana nenhuma em que não tivesse reuniões políticas. Simplesmente as coisas não aparecem publicamente. A visibilidade é dos partidos e das pessoas ligadas aos partidos.

 

Nestes últimos anos, o meio tem sido a palavra, através de encontros com pessoas. Aquando da formação das Brigadas Revolucionárias e da sua primeira acção na Fonte da Telha, justificaram-nas dizendo que os portugueses tinham muita conversa, mas não faziam nada.

Havia muitos grupos com grandes discussões ideológicas, distribuíam muitos escritos, e não faziam acções necessárias ao derrube da ditadura. Foi princípio nosso que não faríamos nenhum papel antes da primeira acção. Mas penso que a comunicação entre as pessoas é muito necessária. Até porque, a história contemporânea tem de ser discutida e digerida, houve acontecimentos que voltaram o mundo do avesso. A esse nível, houve avanços extraordinários, as pessoas estão mais abertas, menos rígidas.

 

A começar por si. As fotografias da altura mostram-na sisuda.

Pois era. Foi um grande erro. Mas estava muito preocupada com a situação, achava que era tudo muito sério; de maneira que apresentava-me com aquele aspecto. Quando olho para trás, acho mesmo que era um ar incrível, que afastava as pessoas. Mas quando leio os escritos, não correspondem a isso: não eram nem sectários nem rígidos.

 

À semelhança da degenerescência do Estalinismo, era também previsível que das Brigadas Revolucionárias pudesse resultar uma organização como as FP- 25? Conseguiu vislumbrar o risco inalienável de morrerem pessoas?

É outra questão importante, sobre a qual gosto bastante de reflectir. Em relação às BR, tivemos como ponto de honra não matar ninguém; pensávamos que ninguém tem o direito de tirar a vida, seja na pena de morte seja em acções armadas.

 

Foi um ponto consensual?

Consensual. Houve alguma discussão entre o Carlos Antunes e o Nuno Bragança, que pensava que se devia tirar a vida aos pides, etc; mas para nós foi ponto assente. As Brigadas nunca foram uma organização militarizada isolada da política. Mas há um sério risco nas organizações armadas de elas se tornarem militarizadas, e ganharem uma estrutura em que a política é cada vez mais posta de lado. É mais fácil discutir coisas técnicas, (funcionamento das armas, funcionamento dos grupos), do que discutir política, que levanta muito mais dúvidas, requer uma maior capacidade de análise. Foi-me dado observar que há uma fortíssima tendência, sob a bandeira da organização, para os grupos se tornarem tecnocráticos das armas.

 

A questão é onde reside efectivamente o poder, na inteligência da análise ou na burocracia das armas.

É um factor real que pode levar à infiltração da polícia – é mais fácil um agente infiltrado discutir armas que discutir política; e estas organizações deixam-se infiltrar que é um disparate... E há a questão da degenerescência das pessoas. É fácil numa organização tecnocrática armada as pessoas afastarem-se dos objectivos políticos.

 

É fácil porquê? É apenas o desejo de poder?

É o desejo de subsistência, que coincide com o desejo de poder. Como se observa em todos os partidos, o objectivo principal é a sobrevivência enquanto organização, o engrandecimento enquanto organização. Os objectivos estratégicos apontados nos programas são esquecidos a maior parte do tempo. Passa-se o mesmo com as organizações armadas. Com o risco de estarem armadas.

 

Acabou por não dar uma resposta taxativa, se é que há, para a questão do perigo em que incorriam quando fundaram as BR ou avançaram para acções como a da Fonte da Telha.

Sempre tivemos consciência disso, nomeadamente o Carlos Antunes que nunca foi militarista e impregnou politicamente as acções. Digamos que as Brigadas nunca degeneraram. A grande cisão que houve com a fundação das FP-25 foi porque, de facto, nós não admitíamos essa orientação. 

 

Quando percebeu que poderia ser acusada daquilo de que veio a ser acusada? Foi no momento da cisão?

Um bocadinho antes. No 25 de Novembro fomos derrotados. Tínhamos um projecto revolucionário, que foi derrotado por um golpe de Direita.

 

Continua a achar isso?

Ah com certeza. Penso até que é evidente.

 

Um golpe de Direita que precisou da conivência de alguma Esquerda.

Houve conivência posterior. Precisou de um álibi, e desencadeou uma provocação com aquela história de Tancos; mas preparavam o golpe desde Agosto. Depois teve a aquiescência do Partido Comunista. Ficámos derrotados. Pensávamos, e penso, que teria havido uma grande reviravolta na Europa se em Portugal tivesse triunfado um poder revolucionário, novo. Não foi. A partir do 25 de Novembro fiquei à espera de ser presa. Tive os primeiros mandados de captura em Dezembro. 

 

Foi presa em 78, três anos depois. Como viveu esses anos?

Organizávamo-nos muito para resistir.

 

Vivia também da política? A medicina estava completamente posta de parte?

Nessa altura sim. Mas fazia consulta no Hospital do Barreiro uma vez por semana, nunca deixei de fazer. Nem mesmo em 74/75. Era muito engraçado!, no meio daquilo tudo, lá ia eu fazer consulta. Fomos presos em 78 e a cisão com as pessoas que formaram as FP- 25 foi só em 80. Mas de facto, os gérmenes já estavam lançados. Quando fomos presos, havia muitas discussões internas que conduziram a essa cisão.

 

A propósito dos 25 anos do 25 de Novembro, o Carlos Antunes dizia numa entrevista, num tom megalómano, que foram derrotados, mas que «isto» estava nas vossas mãos. Houve um momento em que acharam verdadeiramente que isto estava nas vossas mãos?

O Carlos Antunes diz muitos factos que são realidade, mas a entrevista reveste-se de um estilo que não me parece interessante do ponto de vista político. Dá esse aspecto de megalomania. Antes do 25 de Novembro realmente tínhamos muito poder.

 

Que se concretizava em quê?

Tínhamos uma influência séria em muitos quartéis, nos chamados quartéis revolucionários, havia grupos armados em sítios fundamentais.

 

Está a falar do país?

Do país, mas sobretudo Porto, Setúbal e Lisboa. Havia uma ligação a bases do PC que estavam armadas. Houve uma tentativa séria, entre nós e os militares, de ter uma liderança unificada. Mas, por um lado, não estávamos a organizar, ao contrário do que se diz, um golpe de Esquerda. Por outro lado, não nos organizámos eficientemente para resistir ao golpe de Direita.

 

Sabiam do golpe da Direita e não se organizaram. Porquê?

Sobretudo por dificuldade de liderança comum, entre nós e os militares.

 

Os militares são por acaso criaturas voláteis, permeáveis aos intentos ora da Esquerda ora da Direita?

Os militares foram excelentes, sinceramente dispostos a resistir. O grande problema foi o Copcon, que teve uma posição oscilante.

 

A grande dificuldade, para começar, passava pelo entendimento de toda a Esquerda, da mais moderada à mais extremada.

Que não havia. A divisão entre nós e o PC era uma divisão de fundo, marcada pela diferença de objectivos. O PC obedecia à política da União Soviética, que não queria um poder revolucionário em Portugal, sobretudo um poder revolucionário que lhe escapasse ao controle. E escaparia.

 

O objectivo do PRP nos meses que antecederam o 25 de Novembro era constituir um governo revolucionário com o documento Copcon, redigido em Julho, como programa. A manifestação dos SUV, Soldados Unidos Vencerão, foi um mês antes.

Os SUV foi uma coisa extraordinária! Eram conselhos de soldados, soldados mesmo, já não tinha a ver com os oficiais. Ocupou toda a cidade de Lisboa, e acredito que tenha provocado medo, para usar grandes chavões, medo à burguesia, às pessoas instaladas.

 

Como é que assistiu a isso?

Lá dentro!, na manifestação. Os SUV foram libertar dois soldados que estavam presos na Trafaria, e foram mesmo libertados. E isso também é poder. De uma maneira geral, eram pessoas modestas, pobres, que nunca tiveram poder de coisa nenhuma, que foram sempre comandados.

 

Significa que em Junho ainda acreditava no seu sonho?

Comecei francamente a pôr em dúvida a possibilidade quando vi os militares indecisos. Depois fez-se o documento do Copcon, com o MES e os militares, e houve a manifestação do Copcon. Houve ainda a manifestação da FUR, e aí o PC esteve envolvido. Há um momento em que o PC vem ter connosco, tivemos mais que uma reunião na sede do PRP.

 

Foi o PC que foi ter convosco, o que queria dizer alguma coisa.

Queria dizer que tínhamos poder. Naturalmente havia por parte de algumas pessoas do PC a sincera ideia de uma junção. Antes disso tivemos um encontro com o Vasco Gonçalves, no mesmo sentido, e quando foi feita a manifestação da FUR havia uma unidade entre os militares revolucionários, o Vasco Gonçalves, que representava os militares ligados ao PC, e o Costa Gomes que representava... [riso] a tendência de equilíbrio ou compromisso.

 

Na altura era também entendido assim?

Era. A grande ofensa que se gritava da manifestação ao general Costa Gomes era «Social Democrata»! Chamar Social Democrata era um terrível insulto. A dada altura ele gritou de lá de cima, «Eu não sou Social Democrata»! [risos] Eram tempos em que as pessoas acreditavam muito numa transformação, na organização da sociedade em termos de poder descentralizado e distribuído. Até o PPD tinha socialismo no programa. Os discursos de Sá Carneiro, eram inflamados esquerdistas!

 

Qual era o seu sentimento quando estava com «o inimigo»?

Nunca tomei como inimigo as outras facções de Esquerda. Inimigo era a Direita. Mesmo aí havia pessoas a quem dificilmente poderia chamar inimigo: Vasco Lourenço e todos os outros militares que entraram nisso.

 

O que era um inimigo suficientemente poderoso para a tirar de si?

A Direita. Logo a seguir ao 25 de Novembro, foi realmente atrevido..., fui fazer um comício a Viana do Castelo. Poderia ter sofrido qualquer coisa de grave; fizeram-me um cerco ao carro e perseguiram-me até ao Porto. Felizmente viajei com muita segurança.

 

Viajava com segurança?

Tinha escolta armada. E aí corri sérios riscos.

 

Revelava uma coragem física e moral extraordinária. Ainda que fosse extremamente provocadora. Não tinha medo de espécie alguma?

Tenho medos, medos concretos, muito grandes; como seja andar de avião. Depois não tenho medo de confronto, nem físico nem ideológico. Não tenho medo do confronto com a polícia. Há quem diga que o medo de inimigos concretos depende da relação com o pai. Que os pais muito repressivos criam medos. O meu pai era muito doce, muito querido, nunca nos bateu, e não tenho medo nenhum da autoridade.

 

O seu pai foi a sua grande influência. Tanto quanto sei era um homem intelectualmente avançado, muito aberto. Tinham uma existência confortável num universo oprimido como o Barreiro. 

Vivíamos num nível superior ao da maioria das pessoas do Barreiro, tínhamos acesso aos meios culturais: frequentávamos o teatro, íamos a concertos. Mas sempre à tira em termos de dinheiro. O meu pai foi uma influência determinante; era do PC, mas anti-estalinista, embora com os artifícios que as pessoas arranjam para desculpar certas coisas. À volta da minha casa havia muita movimentação de pessoas envolvidas nas lutas – tinham estado na Guerra de Espanha, com todas as suas recordações, tinham estado no Tarrafal.

 

Foi o fascínio por esta gente interessante, que por acaso era revolucionária, que a conduziu aos meandros da política?

Acho que sim. Os contadores de histórias político-pessoais exerciam um grande fascínio sobre mim. Está a ver, as pessoas optarem por uma vida em que tudo é rotina, dá-me uma angústia terrível! E essas pessoas tinham histórias que fugiam ao quotidiano.

 

E a sua mãe?

Acompanhava muito bem estas coisas. Era radicalmente de Esquerda. Tanto que durante o período revolucionário tomou posições mais à Esquerda que o meu pai.

 

Como é que eles acompanharam o seu percurso?

Ah, os meus pais foram extremamente solidários. Com receios, já se sabe. Os pais saberem que os filhos vão ser presos..., que horror, não é? Mas nunca, nunca me disseram para deixar de ter actividade política, fosse antes do 25 de Abril, fosse depois.

 

Mesmo na greve da fome?

O meu pai tinha uma conversa do tipo «Vê lá, o Bobby Sands [guerrilheiro do IRA] acabou por morrer, o Poder é capaz de ser inflexível...». Mas nunca me disse para desistir. Tenho um respeito enorme por isso, imagino o que será ver um filho ao fim de muitos dias de greve da fome. Pelo contrário, o meu pai acabava sempre por dar uma palavra de encorajamento à luta. Falou-me do Bobby Sands, mas depois escreveu-me uma carta a dizer «As lutas são assim, lembra-te dos guerrilheiros de El salvador...». Impecável.

 

Chegou a chorar quando leu essas cartas?

Ah, claro, claro que chorava. É muito bom as pessoas chorarem.

 

A sua imagem era a tal da extrema dureza e inflexibilidade. Era capaz de chorar em público?

Isso talvez fosse mais difícil... Além disso, chorei sempre por emoção ou comoção, nunca por medo ou esmagada pelas circunstâncias.

 

O que constituiu o seu baptismo político aos 15 anos?

Entrei para o MUD juvenil quando o MUD estava quase a terminar. Entre os 10 e os 14 estudei no Liceu de Setúbal, e foi maravilhoso: eram 300 rapazes e raparigas, num regime muito liberal. Olhe, a Odete Santos também andou lá. Aos 15 fui obrigada a vir para Lisboa, estive dois anos no Maria Amália e por um triz não dei em delinquente! Aquilo era uma repressão completa: as raparigas não podiam andar sem meias, os rapazes não podiam passar no passeio em frente.

 

Estávamos no baptismo político aos 15 anos.

Nessa altura fui contactada para o MUD juvenil.

 

Por quem?

Por uma rapariga do Barreiro, mais velha. Distribuí panfletos do MUD, julgo que relativos ao julgamento do Agostinho Neto, de forma tonta e perigosa. Dois anos depois entrei para a faculdade de medicina e normalizei-me completamente – deixei de ter a atitude de revolta primária do Maria Amália. Uns meses mais tarde fui convidada para entrar no PC.

 

Porque é que foi para medicina numa altura em que as pessoas que tinham interesses políticos cursavam Direito e Económicas?

Penso que não está desligado da maneira filosófica como via o mundo e as pessoas. É paixão por conhecer o ser humano na sua globalidade, e essa é também uma forma política de estar no mundo.

 

Havia alguém na sua família em medicina?

Não.

 

Quando entrou na faculdade passou a frequentar o Cineclube Imagem e era uma apaixonada pelo cinema.

A certa altura comecei a viver com o Ernesto de Sousa, ele é que estava ligado ao Cineclube Imagem.

 

Foi o seu primeiro amor?

Não, já tinha tido bastantes namorados! [risos] Enquanto andei no liceu tive sempre namorados.

 

É difícil imaginá-la, rapariga namoradeira com interesses voltados para os rapazes…

Era mesmo muito dada a essas actividades! Não se acreditava que era a mesma pessoa, que estava no quadro de honra e que tinha namorados todos os anos!, desde os dez anos! [risos]

 

Isso é bestial! Como é que funcionava?

Como sempre: olhava-se, mandava-se uns bilhetinhos, e havia os bailes. Organizei uma vez uma greve num baile. Durante muitos anos proibiam os meninos das escolas técnicas de virem aos bailes do liceu, o que era uma distinção de classe insuportável. A greve consistia no seguinte: se os rapazes das escolas técnicas não fossem admitidos, não dançávamos. Perante tal ameaça, rompeu-se a regra e vieram.

 

Aos 21 anos começou a viver com o Ernesto de Sousa. As uniões de facto não eram propriamente convencionais.

Foi quanto houve de mais transgressor! Para os meus pais foi chatíssimo! Não aceitaram de maneira nenhuma... Até que acabaram por aceitar.

 

Nunca teve o ideal romântico do casamento?

Isso não! É como a vida quotidiana: dá-me muita angústia.

 

Entretanto casou com um médico, que é o pai da sua filha.

Em 70/71 fui presa, e a Pide não deixou que ele me visitasse. Quando saí casámos, dava-nos mais garantias para situações futuras.

 

Era também revolucionário?

O Orlando Lindim Ramos esteve preso cinco anos em Peniche, foi funcionário do PC. Era um homem muito firme.

 

Só pergunto para saber se seria possível ter uma relação com uma pessoa que não vivesse os entusiasmos da política.

Não, não. Não concebo para mim a vida em comum ou o erotismo com pessoas em relação às quais não há uma fusão do ponto de vista do pensamento.

 

Uma das imagens mais comuns associadas ao PREC é a de um desbragamento sexual enquanto explosão depois de um período repressivo.

Francamente nunca me foi dado observar situações dessas. Mas é natural. As pessoas eram muito jovens, estavam muito juntas umas com as outras. 

 

Em 73 viveu clandestina durante alguns meses. Como foi esse período?

Foi mau, como todas as clandestinidades, e para as mulheres foi sempre pior. Começámos por estar, eu e a minha filha, então com dois anos, numa casa da Dra. Laura Ayres, em Sesimbra. Tínhamos de ficar todo o dia fechadas em casa, e ela gritava, barafustava, queria ir para a rua ver os cães! Depois foram as sucessivas estadias, e por fim acabei por mandá-la para casa da minha irmã. Uma separação dolorosíssima. Tanto que no dia 25 de Abril a primeira coisa que fiz, eu estava no Porto, foi meter-me num carro e vir por aí a baixo ver a minha filha. Ela olhou para mim com um ar de zanga, como «De onde é que vem esta...».

 

Os seus filhos passaram por coisas terríveis. Como é que se explica a um filho que, de uma certa maneira, há uma causa que se sobrepõe?

Nunca tive problemas a esse respeito. Nunca fiz aquela história do proselitismo, dos discursos ideológicos muito marcados. E também nunca fiz as conversas da martiriologia, o que as pessoas sofrem e não sei quê, para os comover. Foi tudo sempre pela positiva: pelas coisas que queremos, pela sociedade que desejamos, pelo que queremos construir.

 

Mas quando volta a ver a sua filha com ar de zanga, não é imediato que ela perceba tudo isso.

Essas coisas que não são expressas – a primeira separação, quando fui presa, novamente a separação, as idas à cadeia; emocionalmente deixam marcas muito pesadas. Mas, sobretudo com ela, nunca me mostrei oprimida ou subjugada ou a sofrer. No período que antecedeu a minha prisão passeava com ela em frente ao Conselho de Ministros, ali na Estrela.

 

Olhe que era bem provocadora...

Para lhe dizer, «Estás a ver, está aqui o Governo todo, mas sou mais forte que eles, eu é que sou forte». Ela tinha seis anos, julgo que lembra até mais do que eu fazia: ela diz que eu dizia que era mais forte que isto e aquilo e aqueloutro, e que mandávamos nisto e naquilo e não sei quê. Ficou-lhe a imagem de uma mãe poderosa. Mas acho muito importante que as pessoas não se mostrem enfraquecidas e martirizadas, porque os filhos vão beber aos pais a força.

 

Como bebeu do seu a força e a doçura.

Pois.

 

Disse que escolheu ser presa.

Com certeza. Antes do 25 de Abril observei pessoas no exílio, e é um sofrimento terrível: estar afastado da terra, sem se saber quando se pode voltar, perdendo os laços com os amigos, com a família, com tudo. É preferível estar na cadeia!

 

Continua a achar isso hoje?

Continuo, cada vez mais. Estar na cadeia?... Então vão lá as visitas todas... [gargalhada], lê-se os jornais portugueses.

 

Conseguiu sempre relativizar e gracejar?

Sim, mesmo nessa altura. Quando o pai da minha filha, o Orlando, e mais dois amigos saíram de Peniche, que não era brinquedo, contaram imensos episódios, gozavam os guardas, e transformavam aquilo em graça. Quando estive na cadeia, consegui sempre dar a volta.

 

Mesmo na fase de incomunicabilidade total?

Estive um ano ao todo. Primeiro nas celas da Judiciária – as condições da Judiciária do Porto são de masmorra, umas paredes larguíssimas, uma janelinha de grade e um balde para as necessidades. Com uma criança. Depois vim para Caxias, a cela tinha melhores condições, eu é que estava numa incomunicabilidade tal que só tinha dez minutos de visita e um quarto de hora de recreio.

 

Chegou a odiar?

Ódio, ódio... Não, o ódio é uma coisa que nos consome. Posso ter uma grande combatividade, uma grande energia. Mas, se quer que lhe diga, as coisas que me afectam são as coisas afectivas. Quem me provocou bastante raiva foi a Vera Lagoa; acompanhou toda a minha prisão com uma campanha no «Diabo» que levou ao endurecimento das minhas condições na cadeia.

 

Era pelo facto de ser mulher?

Foi com certeza pelo facto de ser mulher que implicou mais. Inclusivamente pôs uma caricatura do meu filho, que tinha oito meses, carregadinho de armas, a dizer «Os camaradas vão lá levar armas»! É preciso uma criatura ser muito reles, muito inferior, para fazer uma coisa destas.

 

As pessoas imaginavam que os seus filhos, sobretudo o Sérgio que estava consigo, poderiam ser um instrumento para a amaciar?

Nunca pensei nesses termos. Tinha direito a ter a criança, e para mim era sempre melhor ter a criança. A Isabel chegou a ficar em Custóias várias vezes, chegou a ficar um mês seguido; em Custóias as pessoas eram muito simpáticas.

 

Como eram esses momentos?

Uma maravilha! Entrava na visita e depois recolhia comigo; a maior parte das vezes com desconhecimento do director, mas com conhecimento da chefe das guardas e das outras guardas. Na cadeia estavam sobretudo prostitutas, muito jovens..., eram crianças. Faziam-lhe brincadeiras, pintavam-na, punham-lhe saltos altos. Ela adorava aqueles teatros.

 

Aproveitou para ler e reflectir. Diz-se que, mesmo nos anos quentes, nunca deixou de estudar medicina.

É verdade. Quando as pessoas se isolam nas coisas políticas e cortam os laços com o mundo é terrível. Ainda há muito poucos meses uma colega minha, com quem durante anos não contactei, e em casa de cujos familiares estive clandestina, apareceu-me com um livro de medicina, daqueles grandões!, com o qual andava atrás de mim na clandestinidade para eu estudar. Ela guardou aquilo religiosamente, está a ver?, 20 e tal anos, e agora veio trazer-mo. É comovente. E na cadeia andei sempre com muitos livros, é um óptimo sítio para ler.

 

Quando avançou para greves da fome, o que é que achava que a sua vida valia?

Valia a pena do sacrifício. Uma pessoa que morre em greve da fome, lutando por um objectivo, marca terrivelmente um país, uma situação política. Ninguém pode duvidar da sinceridade e da justeza daquele objectivo. Como objectivo político, vale e pena o risco, vale a pena o risco.

 

A democracia estava já instalada. Já não era o ideal revolucionário. Tinha que ver com os processos de que eram alvo.

Era uma luta mais reivindicativa. Mas não se pode desligar uma coisa da outra. Se morrêssemos, a morte era pela revolução, apesar de ser apenas pelas condições de prisão, pela amnistia, etc. Ninguém dá a vida por uma coisa de detalhe, uma coisa particular. Dá-se a vida pelos grandes objectivos. Ficava, ficava na consciência das pessoas como a morte dos que se tinham rebelado.

 

O Carlos Antunes dizia que era assim que ficaria para os vossos filhos, que ficaria o exemplo de coragem e dignidade.

E era, acredito sinceramente. Embora tivesse muito medo de morrer. Muito medo de morrer. Mas, a certa altura, as coisas assumem um caminho irreversível. Não há escolha. Por uma questão de coerência.

 

Não sentiu alguma vez um espírito de heroicidade a insuflar o sacrifício?

Não há heróis, há caminhos irreversíveis. E então, o que fica é uma imagem de heroicidade. Mas os caminhos é que são irreversíveis. Se a pessoa voltar para trás, é a sua própria dignidade que fica em jogo. E é pior, é pior que arriscar a vida.

 

A sua filha mandava-lhe desenhos. Nunca fraquejou?, nunca se interrogou sobre o sentido que tudo aquilo fazia?

A questão dos filhos é a mais difícil de suportar, mais para as mulheres que para os homens. Mas devo ter pensado isso várias vezes.

 

Como é que os seus filhos a vêem? A Mãe-Médica, a Mãe- ex-Revolucionária?

Ah, vêem as duas coisas. Mas vêem muito a parte política e intelectual, talvez mais que a médica. O nosso convívio é muito na base das coisas políticas e intelectuais, na discussão dos grandes temas.

 

Sentem orgulho no seu percurso?

Acho que sim, eles dizem que sim.

 

Acreditaram sempre em si? Uma vez, falando com um jornalista, disse «Apesar das acusações, quer acredite quer não, não sou bombista».

É verdade.

 

O que eu gostava de saber é se tem importância para si que as pessoas acreditem na sua inocência, e que pessoas.

É muito importante. Se tenho ideias, está muito na minha natureza explicá-las às pessoas, e querer que acreditem nelas. Vivo muito na comunicação; por isso gosto muito que as pessoas acreditem em mim.

 

Quando saiu da cadeia, a sua vida foi estruturada de uma outra maneira.

Tive de começar tudo do zero. Não tínhamos nada. Não tínhamos casa, não tínhamos lençóis, não tínhamos comida. Depois recomecei a medicina, que foi a forma de ganhar algum dinheiro. Foi lento, foi uma luta de perseverança.

 

Dificuldades entre pares?

Algumas, há sempre, coisas de competição e tal.

 

Eu pensava nos colegas e nos doentes que olhavam para si como a Isabel-Bombista.

Nunca senti isso. Comecei no Barreiro, onde o ambiente é muito bom. Depois de ter começado, houve uma coisa muito aborrecida – voltei a ser presa, em 84, no consultório; estive pouquíssimos dias, mas foi um golpe, porque estava a reinstalar-me com muitas dificuldades, sobretudo de natureza económica. O meu filho assistiu à minha prisão, foi atrás do carro a correr... Uma cena deplorável. Quando voltei, as pessoas receberam-me com ramos de flores. No Barreiro o ambiente foi-me sempre muito favorável. As pessoas queixavam-se das doenças e depois falavam da política! Ainda hoje é assim.

 

Desculpe se insisto na imagem do casal; mas o Carlos Antunes parece incarnar uma volúpia pelo poder. Era também o seu amor por ele...

Não, não. De uma forma mais simples, não era ele que me influenciava nesse sentido. Muitas vezes tivemos posições discordantes dentro do PRP, e, isso que diz, era para mim também claro – que nos distanciávamos nessa forma de estar. Isso sim, isso faz sofrer. Tinha a visão de que, se as coisas caminhassem no sentido do poder, possivelmente divergíamos. Embora o Carlos Antunes seja uma pessoa muitíssimo clarividente.

 

O casamento ficava em risco se divergissem?

Sim.

 

Então a causa maior era a pátria.

A pátria da revolução! Pois claro que sim.

 

Porque é que o seu filho se chama Sérgio?

Chama-se Sérgio porque era o pseudónimo do pai durante a clandestinidade. Quando o conheci ele era Jacques.

 

Qual era o seu?

Elisa. Foi-me arranjado pelo Carlos Antunes. Nós tratávamo-nos assim e tínhamos um rigor que agora até parece impossível. Eu não sabia, por exemplo, onde era a rádio clandestina. Fui levá-lo ao aeroporto e tive de sair para não ver para onde se encaminhava. Portanto, só vim a saber o nome dele muito mais tarde.

 

Foi ele que lho disse?

A certa altura disse: «Já agora, podes saber o meu nome».

 

Foi num momento amoroso?

Foi. [risos] Depois formaram-se as Brigadas e ele passou a ser o Sérgio. Aliás, enquanto vivi com ele, e ainda hoje quando me refiro a ele com pessoas dessa época, digo sempre «O Sérgio». Nunca lhe chamei Carlos. Carlos Antunes é como se fosse uma personalidade estranha.

 

É curioso, parecem tantas vidas numa só.

E são.

 

 

Publicada no DNa do Diário de Notícias em 2001

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