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Anabela Mota Ribeiro

Caravaggio

18.01.22

Na pequena enseada que serve a vila portuária de Porto Ercolo, um homem espera um barco. Um barco que nunca chega. Votado a uma solidão abjecta, sucumbe à febre, (malária, crê-se), que o consome desde há muito, e falece sem assistência ou honras fúnebres. Michelangelo Merisi, dito Caravaggio, por ser desta localidade no norte de Itália, morre na vergonha. Tinha 37 anos.

Não é possível reconstituir os seus últimos dias, devassar a sua bolsa, analisar o traço, perscrutar a ansiedade de um condenado à morte. Caravaggio desapareceu em circunstâncias misteriosas _ o seu corpo nunca foi encontrado_, quando acreditava na iminência do perdão papal. Para trás ficavam anos de fuga, guinando por Nápoles, Sicília, Malta, errático, atormentado, irónico. Que sentimento será o de um homem que se oferece decapitado, destituído de auto-indulgência, metamorfoseado de Golias, nas mãos de um herói imberbe chamado David? A face de Golias, no quadro com o mesmo nome, é um dos mais famosos auto-retratos de Caravaggio. Os outros, sobretudo os que dizem respeito à produção dos últimos anos, devolvem-no expectante, desesperado, revolvido pelo remorso; provocador, em todo o caso.

David e Golias é o décimo sexto quadro da exposição que a National Gallery, em Londres, dedica ao pintor. Perseguido desde há quatro anos, por ter matado um velho rival, numa circunstância tão trivial quanto um jogo de péla, oferece-se à clemência do espectador, encena o instante da morte no olhar semi-cerrado do gigante, interroga pela compaixão que é possível sentir pelo inimigo. Desta vez, o inimigo é ele.  

Caravaggio foi um litigante convulsivo, frequentador de tabernas insidiosas, amante de mulheres de má fama _ a despeito da vocação homo-erótica evidente em muitos dos seus quadros da “fase romana”, e no sensualíssimo S. João Baptista pintado nos anos de fuga. Dormia com a adaga sob o travesseiro, conhecia os calabouços da polícia, levava uma existência libertina. Era, como então se dizia, um celerado. Um proscrito que veio ao mundo para “destruir a pintura”, como comentou o pintor francês Poussin.

Numa noite de 1606, entre Maio e o Verão, consoante os documentos, um acontecimento infame mudou a sua vida: o assassínio de Ranuccio Tomassoni. Caravaggio era então o mais famoso pintor de Roma, uma cidade fervilhante, centro do mundo, onde chegara aos 18 anos. Ambicioso, impetuoso, inconvencional.

Ninguém ousara até aí retratar a «Adoração dos Pastores» recorrendo a modelos recrutados na rua, expondo a pobreza e a humildade na cena do nascimento de Jesus, sem querubins rosáceos ou presentes sumptuosos. Ninguém ousara transformar o Anjo Gabriel num rapaz púbere, de gesto musculado, que anuncia a boa nova a Maria tendo, em fundo, uma cama remexida. Ninguém ousara pintar Cristo no momento anterior à cruxificação, marcado pelas cordas que lhe amarram os braços, a escorrer sangue. Este Cristo flagelado, (mais dançante que trôpego, todavia), tem a sensualidade de um herói que sabe da glória que assiste a sua morte, exibe um corpo possante, tangível. Ao seu lado, os carrascos não podem ser mais dissemelhantes: à esquerda, um homem terrível e ameaçador; à direita, um homem vulgar, um pai de família que, de repente, se revela capaz de crimes hediondos.

Quando Caravaggio chegou a Roma, Miguel Ângelo havia morrido nem há quatro décadas, e a sua influência fazia-se ainda sentir. O estilo do pintor lombardo causa escândalo, rompe com as convenções vigentes, (que considera académicas, maneiristas, ancoradas nos antigos). O seu génio granjeia reputação, conquista a protecção de poderosos, entre os quais se destacam o Cardeal Scipione Borghese, sobrinho preferido do Papa Pio V e ávido coleccionador de arte, o Cardeal Francesco Maria del Monte, cujo apoio foi providencial na afirmação do seu talento, ou a família Colonna, que o acolhe em Nápoles, na altura sob a alçada de vice rei espanhol. 

De facto, era difícil não dar por ele. Transporta pessoas da rua para cenas religiosas, exprime nos seus quadros uma tensão física e emocional inesperadas, inventa fabulosos contrastes de luz e de sombra, redefine o lugar da beleza situando-o na vulgaridade. A vida de todos os dias, as pessoas de todos os dias são o que se encontra nos quadros de Caravaggio.

A exposição na National Gallery abre com dois quadros que retratam o mesmo momento bíblico, a Ceia em Emaús, raramente representado. Cinco anos medeiam estes quadros, uma imensa distância na vida inflamada do artista.

O primeiro, de 1601, está impregnado de um realismo único e revela uma composição aturada. A preocupação de Caravaggio, segundo alguns críticos, terá sido a de envolver o espectador na cena em que os apóstolos reconhecem a figura de Jesus_ aqui rejuvenescido, sem barba, sem halo_ no momento em que este abençoa os alimentos. O espaço à mesa que sobeja é aquele onde qualquer um de nós se poderia sentar. É também na nossa direcção que o cesto de frutas em desequilíbrio poderia cair. O desenho vívido dos alimentos, a expressão de surpresa dos apóstolos, a audácia dos seus gestos são impressionantes. (O curator da exposição, numa lecture proferida para alunos de cinema, realça um outro aspecto original: no homem da direita, apenas a cara está focada; quer uma mão, quer outra aparecem ligeiramente desfocadas, como se vistas por um lente diferente).

Caravaggio volta ao episódio em 1606. Este terá sido o primeiro quadro a ser pintado depois de iniciada a fuga. As diferenças são gritantes: a paleta de cores é reduzida drasticamente, a composição é simplificada, os personagens estão fechados num mutismo grave, a mulher, encarquilhada, que surge no canto superior direito, dá o tom a todo o quadro. Há nela toda a tristeza da Terra. Há no fugitivo Caravaggio uma emoção profunda.

A mulher, esta mulher das ruas que serve de modelo ao pintor, reaparecerá noutros quadros. É ela que ampara Salomé, que segura a cabeça de S. João Baptista, é ela que auxilia Judith na morte de Holofernes (embora este quadro de 1599 não faça parte da exposição).

Mas há outras figuras recorrentes. Filli de Melandroni, que constava ser prostituta, encarnou figuras intensas, como Judith, Salomé ou a mulher que acusa o apóstolo Pedro ao soldado romano. Também o carrasco de Cristo na «Flagelação» reaparece no quadro «Salomé recebe a cabeça de S. João Baptista»_ o seu nome não é conhecido. Mas a identidade talvez não seja o mais importante. Verdadeiramente relevante é o facto de serem humanos, demasiado humanos. São pessoas do povo, medonhas, carnais, susceptíveis de serem encontradas numa rua esconsa, de deverem dinheiro no mercado, de se embriagarem, de rirem alto, de provocarem desacatos, de fornicarem, de terem a alma cheia de pecado. Esses são os intérpretes da condição humana escolhidos por Caravaggio.

Não é fácil descortinar o sentimento religioso do artista, ainda que o grosso das suas encomendas digam respeito a motivos religiosos. É mais fácil especular sobre o seu desejo de ser perdoado do crime de homicídio. A comprová-lo está a viagem até Valeta, sede da Ordem de Malta, onde foi feito cavaleiro. Terá perseguido o sentimento de honradez? Terá procurado as boas graças de poderosos que poderiam aproximá-lo de Roma e do perdão papal? Com que intenção assinou o seu nome no sangue que escorre da cabeça de S. João Baptista num quadro pintado na ilha? Tornaria isto explícito o seu desejo de redenção? Viveria consumido pela culpa?

A sua obra aponta respostas plausíveis. Os quadros expostos sugerem uma exaltação da vida. Parecem mais esculpidos que pintados, em sangue e em vísceras, assentam na fisicalidade e na precaridade da vida humana.

A turbulência encontra o seu termo na localidade piscatória de Porto Ercolo, corria o ano de 1610. Não pôde voltar a vaguear pelas ruas sinuosas que ladeiam o Tibre. Não pôde continuar a experimentar o espanto e a instantaneidade que tanto amava na vida e transpôs para as suas telas. Liquefez-se a sua fúria de pintar no murmúrio dos séculos. Por estranho que pareça, o seu génio foi esquecido até à decada de 30 do século XX. As crónicas ignoram-no. Ignoram a sua inovação extraordinária: a proximidade com a realidade.

 

 

Publicado originalmente na revista Grande Reportagem do DN