Ângelo de Sousa
Ângelo é nome de curioso. Um que se farta de esperar. Um que procura saber. Conversa no Porto, em casa. Tudo parado no atelier. A felicidade ou a tristeza não têm nada que ver com isso!
A conversa gravada começa assim: “Vamos embora, pá! [esfrega as mãos] Se quiser fazer intervalo, pausa, café não há. Mas temos à beira rio. Agora já há um café sentado, ah!, havia tascos, mas um café?, abriu há três meses”. Antes eu tinha chegado atrasada e ele justificou-me e disse que eu não tinha culpa dos atrasos da CP. Mas depois quis começar, vamos embora, pá. O pá estava lá ou não. Na entrevista decidi deixar os pás e os porras, o palavrão a entremear a conversa e a erudição. Ficaram os detalhes, a descrição detalhada. De como se vivia, de como funciona a memória, de como traduz isso em palavras.
Nunca lhe ocorreu ser escritor. Mas o que diz, pode ler-se como a página de um romance. Quis ser realizador. É artista plástico. Ângelo de Sousa é tão carismático que quase só é preciso dizer que é o Ângelo. Talvez aquele dos óculos grandes e grossos. Aquele que ainda o ano passado esteve em Veneza com Souto Moura. Aquele que pinta, desenha, constrói uma orelha com a tampa do iogurte, que fazia quadros esquisitos com cera, que fotografa, anota, faz escultura, toma nota. Um artista maior. Um homem que é um livro. Aberto.
Há quanto tempo vive nesta casa?
Desde Janeiro de 73. Comece quando quiser, como te gusta.
Se no princípio era o verbo, o verbo para principiar uma conversa consigo é experimentar.
O verbo de encher! Qual é o meu verbo? Esperar. Ocorreu-me agora. Nunca pensei nisso, mas é verdade. Passo a vida a esperar e depois nunca acontece nada. Graças a Deus ou infelizmente. É tenebroso, um gajo chegar a esta idade e descobrir isto. Vou fazer 71 daqui a uma semana, ou duas, ou três, ou assim. Também tive que esperar até aqui – é precisa paciência para esperar.
O que é que o experimentar tem que ver com isto? Lemos catálogos de exposições, textos de críticos, filósofos e apaixonados, e sobretudo vemos a obra e percebemos que há uma pulsão de fazer, de pura experimentação.
A maior parte do tempo, eu não faço nada. Não tenho meios. Não tenho tempo – como quando, durante anos, era funcionário público. Não fiz na-da! Felizmente consegui arranjar máquina fotográfica e tirava fotografias. E tomava nota de projectos. Anos assim. A fio. Por isso me ocorre que esperar é capaz de ser um desesperante verbo, mas muito real.
Vamos ao princípio da espera, a Moçambique.
Ah, não me fale disso! Foram lá uns amigos meus. [tocam à campainha] Quem será agora? Deve ser um pobrezinho. [Assoma à janela] Oh, está bom?, ‘pere aí. [regressa daí a nada]. Como sou uma boa alma e quero ir para o Céu, se não houvesse os pobrezinhos como é que a gente ia para o Céu?
Então, um homem dado à caridade…
Eu não dou dado: eles é que me extorquem a coisa. O remorso: será que o homem está a dormir debaixo de um banco, com a geada e os cães? A gente fica a pensar nisso. Moçambique: uns amigos foram, trouxeram umas fotografias, não tenho vontade nenhuma [de ir lá]. Já foi há 60 ou 70 anos, quero lá saber.
Nunca mais voltou?
Estive lá em 60, três meses no Outono, em Lourenço Marques. Já havia o constelation da Tap. Primeiro era preciso ir de barco, demorava-se três semanas e meia, parando aqui, ali. Os meninos estavam cá a estudar e iam lá passar umas férias. A minha mãe disse: “Os outros meninos do teu tempo vêm cá todos de férias”. “Não tenho dinheiro”. “Então eu pago, são 15 contos”. Foi a última coisa que a minha mãe me pagou na vida. Nunca mais lá voltei. Depois veio a guerra, a minha mãe reformou-se e veio embora. Em 62 ou 63, praí em 64.
Qual é a primeira recordação que tem de Moçambique? Que tempo foi esse?
A primeira recordação que tenho é da véspera do dia em que fiz três anos. Ainda um dia hei-de ver se encontro aquele médico, Dâmaso?, [António] Damásio: quando é que as pessoas se sentem ligadas? Eu senti-me ligado nesse dia.
Ou seja, com consciência de si mesmo.
De repente, estava a assistir a qualquer coisa. A minha tia trazia uma cartolina com chocolates dentro e a minha avó disse: “Ele portou-se muito mal, Matilde. Não lhe dê isso hoje”. “Está bem, está bem”. Continuou a conversa, não me lembro de mais nada. Esquisito, não é?
Terá que ver com o conteúdo? O objecto do desejo (os chocolates), a repreensão.
Não faço ideia. Eu estava no jardim, a minha avó estava a tomar o chá, a minha tia aparece lá do fundo, truca truca, até ao plano americano. Houve esse diálogo, a minha avó continuou a tomar o chá e as torradas. Lembro-me disso e de estar uma linda tarde de sol. Mistério.
Que ambiente era o seu?
Era uma cidade muito grande, enorme, que não tinha arranha-céus, tinha avenidas muito largas.
Aprendeu a nadar na piscina do hotel Polana?
Não. Tentei aprender a nadar nos Velhos Colonos, andei lá dois meses ou três. Era uma associação para acolher velhos colonos. Tinha uma piscina e bilhares; os meus amigos iam jogar bilhares – que eu nunca joguei. Não tive paciência…, um gajo passar um mês a bater pés e agarrado a uma chapa de madeira…, valha-me Deus.
Portanto, nada mal.
Sim, sim. Nado de bruços e é um pau. E mal. Se houvesse um naufrágio ainda flutuava quatro ou cinco minutos. Depois desistia!, dizia à morte: “Espero por ti”, e ia-me embora. Não gosto de esforços físicos; a única coisa que fazia era andar a pé, ainda ando quilómetros a pé. A gente cansar-se, é horrível.
Esforços físicos é uma coisa, relação com o físico é outra. É um bom tópico, sobretudo se pensarmos em países quentes.
Aqui, é muito diferente. Eu entrei nas Belas Artes, em Novembro – não comecei mais cedo porque se perderam os papéis, já no tempo de Salazar se perdiam papéis – e vi aquela gente toda cheia de frio, toda embiocada, e eu disse: “Que raparigas tão feias, que camafeus!”. Eram mesmo, com umas samarras e umas coisas.
Nenhuma desinibição, nenhuma atitude solar em relação ao corpo. Embiocadas?
As minhas colegas de liceu andavam sempre de braços à mostra, com um ar porreiro. Um bioco é uma capa que se põe por cima e que tem um capuz. Outro choque cultural que eu gosto de contar: quando cheguei ao Porto tinha 17 anos, e foi horrível, horrível, horrível. Presenciei esta história: ia a subir a rua 31 de Janeiro, seis e meia da tarde, friínho, caía uma chuva miudinha, e vinha uma mulher – era uma mulher, não era uma senhora porque usava um xaile; vinha com o filho pela mão, e a criança berrava, descalça, claro. A mãe, passou por mim e disse ao filho: “Anda, meu filho da puta, que quando chegar a casa o corno do teu pai dá-te as caridades”. Eu fiquei pááá!, como se diz, caíram-me ao chão. Nunca tinha ouvido; lá na família, em Moçambique, não se usavam palavrões. Não se dizia, não havia necessidade.
Que família era essa? Porque é que foi para Moçambique?
A minha mãe tinha 12 irmãos, foi para lá, o meu pai era do Funchal, trabalhava no banco, os bancos faliram em 29 e emigrou para Moçambique. Encontraram-se, casaram. O clima era porreiro, não se vivia mal, os pretos, coitados, eram os pretos, “estas bestas não falam português!”; vinham do mato e tinham de saber português. Cá em Portugal falam português como se sabe; lá, estavam os gajos na terra dos gajos e tinham que aprender a nossa língua... Uns mamparras – um mamparra é um burro, um estúpido.
Os seus amigos eram quem?
Havia imensos indianos no liceu (da Índia inglesa e da portuguesa), um chinês que foi meu colega até ao quinto ano, pretos é que não havia, ainda no liceu. Depois havia as mulatas, essa maravilha da natureza. Era mais arejado do que aqui. Isto aqui era opressivo pra caraças. Nada de especial, uma vida vulgar.
Apareceu com a mesma fulgurância, (como a consciência de si), a noção de que a sua forma de se expressar era o desenho?
Isso é muito misterioso, não consigo perceber até hoje. Fiz três anos e fomos para a Ilha de Moçambique. Estive lá quatro anos. (Viemos de licença a Portugal em 45 ou 46). Havia arte indígena, que uns gajos vendiam de casa em casa, faziam uns barcos bestiais, enormes, de madeira, faziam navios de guerra (isto foi durante a guerra), muito bem pintadinhos, com canhões a mexer e tudo. Não havia razão nenhuma, nenhuma para eu fazer desenhos; a não ser que fazia. Alguém me deu uma caixa com lápis de cor, daquelas coisas que se dá no Natal. Nunca ninguém disse: “Olha que ele é um geniozinho”; de maneira que me deixavam fazer.
Como é que eram os desenhos?
Fazia navios de guerra, navios aos tiros, canhões. Havia muitas revistas da guerra, de propaganda aliada, inglesas, muito bem impressas em fotogravura. Tinha uma colecção enorme, umas em inglês e outras em português do Brasil. Fartei-me de ver fotografias de guerra. Jornal, não havia. A luz eléctrica, ligavam-na às seis da tarde e desligavam às onze da noite – tinham um gerador. Se queríamos, acendíamos um candeeiro a petróleo. As geleiras eram a petróleo. Não havia aspiradores. Não havia carne porque não havia gado; comia-se galinhas e coisas do mar. Costumo dizer com graça que fui criado a lagosta. Lagosta era ao preço do pão. E fruta: bananas, papaia, toda a gente tinha papaeiras em casa. Leite, era condensado.
Vegetação luxuriante, mar muito azul – como seria de supor.
Vivi na Ilha de Moçambique até aos sete anos, fiz lá a primeira classe.
Os barcos que desenhava, tudo o que desenhava era figurativo.
Barcos e aviões e gente aos tiros. As crianças não fazem abstracto. O meu pai não era capaz de desenhar um copo. A única gracinha que fazia era uma batalha naval com uns lápis que tinham azul de um lado e vermelho do outro.
Os seus desenhos eram mais elaborados do que os do seu pai, presume-se…
Eram. Mas isso só descobri depois.
A guerra, ainda que longínqua, era ameaçadora?
Era. Aquilo era a rota da Índia e havia submarinos japoneses ou alemães e metiam barcos ao fundo. De vez em quando, iam para o mar apanhar os gajos que andavam a flutuar, a catar, olha ali um, e levavam-nos para o hospital. Sei disso porque a minha mãe, como era enfermeira, era chamada – “vão apanhar os náufragos, tenho de ir, pode ser preciso alguma coisa”. Chegavam dúzias e dúzias deles. Muitos não devem ter escapado aos tubarões.
Tinha o desejo de partir?
Para onde? Estava tão bem ali. A ilha era pequenina. Havia um automóvel do piloto Nunes, um Fiat pequenino. Tinha uma actividade desportiva razoável. Fazia-se teatro amador. Cinco mil pessoas contando com a população indígena. A escola primária tinha cem crianças.
Quando é que passou para um estádio diferente?
Quando a gente veio cá de férias, não sei se ainda havia guerra. Tenho de perguntar à minha prima ou ver nas fotografias – o meu pai tirava fotografias. Não sei se não teria sido depois da derrota do Japão. Vim para cá com os meus pais passar um ano e meio de licença graciosa. Para a Rua da Alegria, 162, 3º. De lá de cima via-se a chover. Arranjei um processo para não ter que ia à escola – porque eu era bom. “Ah, não precisa”. De vez em quando ia a casa da Dona Felicidade ou Caridade e tinha aulas no sábado de manhã na escola normal. Passei para a terceira classe. A senhora chamou do estrado o Felisberto e disse: “’Tás com a cabeça cheia de lêndeas”. Eu nunca tinha visto uma lêndea ou percevejo ou pulga.
Piolho.
Nunca vi ninguém em África com piolhos ou percevejos. A primeira vez que vi uma pulga foi no cinema Carlos Alberto, no Verão. Nunca tinha tido a experiência dessa bicheza. Toda a gente usava chuveiro – que a água era cara. Aqui, tive que tomar banho de imersão: umas panelas de água quente que se atiravam para a banheira.
Como é que um tipo que vive até aos sete anos na Ilha de Moçambique não aprende a nadar convenientemente?
Porque havia tubarões! Ninguém ia para o mar. Fizeram uma piscina. Simplesmente sou preguiçoso; porque é que hei-de aprender a nadar? Não é uma prenda necessária para um homem quando se casa.
Depois da vinda à metrópole de um ano e meio, iniciam um novo ciclo. Vão para Lourenço Marques. Deu-se com os irmãos Fernando e José Gil?
O Fernando estava a estudar cá. Encontrei o Zé Gil uma vez com o Manuel António Bronze, o Rui Knopfli. Eu devia ter 16 anos e o Knopfli 20 e muitos, um homem barbudo. Era muito culto e inteligente, chegou a ser um grande poeta. Acabou o 7º ano, sabia tudo quanto era possível naquela terra. Era brilhantíssimo. Tinha aquilo que se chama “concepção agónica da existência”. Estava sempre em competição; uma discussão para ele, era uma coisa para ganhar, para ter razão, não era para chegar a uma conclusão. Faz-me muita impressão ainda hoje. Eram discussões de arte e política – não se falava de outra coisa.
Porque é que naquele sítio, longe da Europa onde tudo acontecia, esta malta era assim?
Era uma terra de exílio. Anos mais tarde, relacionei-me com um médico que tinha sido Secretário-geral do Partido Comunista Português dos anos 30. Havia um outro gajo, também do PC, Cansado Gonçalves, que era professor de matemática na escola técnica. Muitos dos professores que lá estavam tinham sido corridos de cá. Também havia gajos da Mocidade Portuguesa, claro. Havia gajos que não iam às paradas e ninguém os chateava. Gilberto Rola Pereira, explicador de matemática, tinha ido para lá em 1918; eu comecei a apanhar com o Fernando Pessoa aos 12 anos (não se deseja a ninguém que uma criatura seja desmamada intelectualmente aos 12 anos com o Fernando Pessoa); em conversa: “Fernando Pessoa? Conheci-o muito bem. Andei no liceu com o Sá Carneiro”.
O Jorge Molder diz que lhe podemos perguntar sobre matemática, física, literatura, cinema, que responde. E que se não responde na hora, liga às onze da noite com a resposta...
Eu era bom.
Estas pessoas fora do baralho com quem se deu marcaram a sua formação. Mas o que quero saber é como é que vai destas coisas para a pintura.
Já deve ter ouvido falar do Rui Guerra, realizador. Moçambicano. Foi estudar para o IDHEC, em Paris. Há um conjunto de circunstâncias muito esquisitas. Havia a Mocidade Portuguesa, a gente estava ali a treinar para o 10 de Junho e para a parada, que era chato, dois sargentos davam a instrução aos mancebos. No meio disso, um gajo com nome de boa família, aparecia com uma farda especial de lã castanha, umas condecoraçõeszinhas; esse gajo, à paisana, tinha a mania do cinema, criou uma secção de cinema. A gente, depois de marchar uma hora, ia para lá aturar o gajo. No meu caso não era aturar.
Então, no princípio de tudo está o cinema?
Eu tinha começado com oito anos a ir ao cinema. O meu pai trabalhava no correio e tinha um senhor amigo que fazia legendas para os filmes do Scala; de maneira que quando queria ir ao cinema, entrava. Ia sozinho, claro. Coboiadas, filmes em inglês sem legendas. Na secção de cinéfilos, falava-se de montagem, faz-se assim, faz-se assado. Desde os 12 anos comecei a perceber que os filmes não eram os gajos aos tiros, eram segmentos. Sabia que o cinema era uma coisa feita, que 15 dias depois punham a gaja a dizer “Sim, sim”. Porra, o Rui Guerra vai para cinema? Também quero ir para cinema. Quero é ser realizador. Mas nunca disse a ninguém. Depois, o meu pai morreu quando eu tinha 15 anos: quem é que me ia mandar para França? Não havia bolsas, vim para Belas Artes. Entretanto tinha começado a pintar. Não podia fazer filmes?, fazia pinturas a óleo. Pronto. Tive um prémio do liceu por ser o melhor aluno do ano, recebi 750 paus, comprei as tintas, comecei a pintar.
Começou a pintar do nada?
Comprei um livrinho que tenho lá em cima, “How to paint in oils”. Ninguém compra um livro sobre os materiais. Nenhum aluno meu leu um livro de técnica. A tinta tal serve para isto, não se pode misturar esta com aquela, esta é transparente, esta é opaca. Sou assim. Não ia perder tempo a descobrir o que já estava descoberto – estava no livro. Tem uma capa amarela.
Fazia bandas desenhadas.
Fazia isso num plástico em que se escreviam à máquina as legendas [dos filmes]. Uma espécie de celofane. O senhor do Scala deu-me um rolo disso e eu passei anos a fazer uma história aos quadradinhos. Para um dia projectar. Ainda tenho aí um bocadinho disso, tudo ratado das traças.
Encontra sempre o lado humorístico, do piolho ou das traças. Como diria o Dinis Machado: “Qual é o lado mais comido disto?”. É o humor como forma de salvação.
A gente tem que sorrir, não se pode passar a vida, ba-ba-ba-ba, a chorar. Às vezes dá-me vontade de rir em circunstâncias lixadas.
Que enredo aparecia nessas tiras de banda desenhada?
Eram umas histórias de tiros, como as dos filmes.
Onde quero chegar é ao ponto em que abandona as histórias e se concentra na abstracção. Fez pintura figurativa?
Fiz. Quando comecei a pintar, era a época do Neo-Realismo. O que a gente devia fazer era umas pinturas como os muralistas mexicanos. Ainda fiz umas coisas dessas. Um estivador negro, um fuzilamento, umas fábricas, um gajo que finge que toca viola (não pus as cordas, nunca acabei). A gente tinha de fazer as coisas como mensagem. A gente fartava-se de ler coisas que vinham em língua estrangeira – passava tudo, desde que fossem em inglês ou francês. Sabiam lá se aquilo era subversivo, se era o Sartre… Aprendi inglês e francês para poder ler à vontade. Praticamente não lia em português – ainda hoje. O que se esperava era que as pessoas fizessem coisas com mensagem.
Intervenção era a palavra de ordem. Nunca foi comunista?
Não. Por acaso fui lá, pediram-me para fazer uma colaboração depois do 25 de Abril. Vi lá um gajo, pensei: Este gajo é que vai tomar conta de nós?”. Um sabujo servil do comendador Cupertino de Miranda, este gajo é que é o meu patrão espiritual? Não tenho nada com isto! Tirei a palha.
Quando começou a pintar e fez coisas figurativas…
Eu era muito mal visto: porque não fazia figurativo. Não era capaz. De 61 a 65 fiz cenários para o Teatro Experimental, alguns muita bons. Uns gajos que lá estavam, que eram do PC: “A gente não te paga porque tu és de África, és um gajo rico”. Deviam pagar-me quatro contos e de vez em quando davam-me cem paus. Eu andava mal vestido, andava com um blusão da tropa, boina, barba por fazer, fazia uns quadros esquisitos com cera.
Tinha um discurso próprio, numa altura em que o que importava era ter uma mensagem.
Sim. Mas eu não tinha mensagem. Eu achava um disparate ter uma mensagem! Com que autoridade? Mesmo sendo professor, nunca me achei com autoridade para impor uma mensagem. Uma questão temperamental. Não quero salvar ninguém. Se for preciso empurrar, empurro, faço o melhor possível. Mas não tenho a ideia que vou salvar o mundo, não tenho ideias de apóstolo. Houve aqui uma altura em que a senhora Rosa Ramalho fazia os bonecos em barro, e havia malta que copiava aquilo em barda! Mas o que é que tenho com a cultura do Minho? Vou passar férias a casa do meu avô, tomo banho no rio, vive-se na idade da pedra; mas não vou fazer arte a partir da senhora Rosa Ramalho. Estou informado de outras coisas de que esta gente não está informada.
Tinha interlocutores para essas coisas de que estava informado?
Uma vez, no quarto do Bronze, com ele e outros, vimos uma Life com uma reprodução do Pollock, com as coisas derramadas. Foi uma galhofa pegada, que aquilo era uma borratada! Os gajos atiraram-se ao ar, lá estás tu. Bom, não vale a pena. Descobri aquela verdade eterna: se eles não percebem, não vale a pena explicar, se percebem, não é preciso. E isto era a atitude de gente por quem tinha, enfim, consideração. “Que nojo, derramar a tinta assim” – foi o comentário a propósito do Jackson Pollock. Porque é que não me hei-de interessar por arte popular polaca em vez de fazer os bonecos da senhora Rosa?
Estamos sempre numa zona de identificação: quem é que é, com quem é que se identifica.
Eu tinha outros interesses. Outra informação. Outra curiosidade. Não é bom nem mau, era assim.
Era o mundo que trazia?
Era o que mundo que ia descobrindo. Tinha uma enorme colecção de Life’s e da revista brasileira O Cruzeiro, que o meu tio comprava todas as semanas. Lia isso com 13 aninhos. Sempre comprei a Time porque era uma maneira de saber notícias sem censura. [folheia e mostra páginas dessas revistas antigas] Isto é arte inglesa dos anos 60. ‘Tava aí!, vendia-se no Paladium por cinco escudos. Isto é o [David] Hockney. Quando não tinha dinheiro, via-as na livraria internacional. A informação existia: é preciso procurá-la, ela não vai ter com nosotros. Curiosidade que os meus colegas não tinham, e quando viam diziam: “Olha para esta merda”.
A sua “fonte” eram, sobretudo, as revistas?
Uma vez comprei um livro de escultura, que me custou 180 ou 200 paus, o que era muito dinheiro para quem vivia com um conto e quinhentos por mês. Eu mostrava aquilo aos colegas, “Deixa cá ver o Rodin!, deixa cá ver o Modigliani!”. Isto era a malta com quem eu me encontrava. Ninguém me dizia: “Empresta-me essa merda, que amanhã trago-te”. Tinham uma grande curiosidade para tudo o que fosse má língua, fofoca, mas em relação à profissão não tinham quase nenhuma.
Procuravam uma confirmação do que já eram?
E do que já sabiam. Sempre procurei informar-me, não sei porquê. Sempre fui coscuvilheiro. Nunca tinha pensado nisso, mas acho que a vida é uma profissão. Viver é uma profissão. Tem de se fazer 24 horas por dia. Um gajo não pode dizer: “Hoje não, hoje é domingo”. Não é como conduzir autocarro, bater carteiras, pôr bombas. Nunca tinha pensado nisto, mas estas coisas ocorrem nas conversas. Tenho pena de não conversar mais. Estou sempre a funcionar para qualquer coisa. Durante anos não pude fazer outras coisas. Era presidente do Conselho Directivo, que chatice, mais não sei quê, mais não sei quê. Depois acabou-se. Passei a vender aulas. Chego lá, meto a ficha, truca truca truca, tiro a ficha. E aí comecei a trabalhar. E não fazia diferença nenhuma. Mas quando estou a fazer uma coisa, estou a fazer aquela – mais nada.
Aos 15 anos perdeu o pai. Mudou-lhe o curso da vida.
Foi um óptimo fim para ele, que estava há três anos com uma doença horrorosa. Tinha aquela coisa de que morreu o Zeca Afonso. Para mim foi péssimo. Tenho mesmo de ir para Belas Artes, vou comprar tintas a óleo.
Dois anos depois, veio para Portugal. Sozinho.
Sim. Self-supported. Tinha uma bolsa de estudo, Caixa Económica Postal de Lourenço Marques, um conto e quinhentos. Fiz aquilo [curso e bolsa] durar sete anos. Depois, tive a sorte, ou a desdita, de ser convidado para assistente.
A sorte ou a desdita? Ter ficado nas Belas Artes tantos anos é uma das questões da sua vida. Tal como ficar no Porto ou ir para Lisboa ou lá para fora.
Não, para fora não ia, pra quê? Para estar como os emigrantes bolseiros, que se encontravam todas as noites para jogar matraquilhos e beber cerveja?, para intrigar com a mulher do gajo? Porra, pá! Para viver num chambre de bonne onde faziam dois quadros deste tamanho [pequeno] por ano?
Vemos a exposição de Hélio Oiticica na Tate Modern, em Londres, e percebemos que fez muitas daquelas coisas antes do Oiticica. E perguntamo-nos porque é que o Oiticica está na Tate Modern e o Ângelo não está.
Porque o Oiticia e a senhora, a psicanalista, a Lygia Clark, de repente pegaram neles na América aqui há dez, 12 anos, e começaram a falar deles.
Há uma outra coisa: Oiticica viveu em Londres no anos 60.
Ele também era homossexual, o que dá aquele ambiente festivo da altura, aquelas capilaridades. Eu não tinha inserção para isso. Não estou a queixar-me da comunidade: sempre me trataram bem.
Se tivesse dado o salto, internacional, provavelmente a sua carreira seria diferente.
Possivelmente. Nós, a minha mulher e eu, estivemos dez meses em Londres. Enquanto lá estivemos, ela trabalhou na escultura, a mim não me apetecia fazer nada. Pensei que, como pintor, só podia ter ido para pintura. E podia ter ido para escultura... Ao fim de um ano, de uma série de peripécias longas, o Salazar caiu da cadeira. O meu senhorio disse: “Se você quiser, arranjo-lhe emprego nas belas artes em Bradford”. O que é que vou fazer para Bradford? Deve ser pior do que o Porto. A única coisa notável que Bradford tem é que nasceu lá o David Hockney – que se foi logo embora. Vender aulas em Bradford? A minha mulher não aprendeu inglês. Vai para sopeira? Outra coisa engraçada: conheci uns tipos no St. Martins cuja intenção era ir para os Estados Unidos. Eles queriam dar o salto dali para Nova Iorque. Eu teria desejo de ficar se os gajos querem é dar à sola? Que estupidez vir para Inglaterra. Para estar a dar aulas? Isso já dava aqui no Porto. Alem disso: alguns gajos tinham a ideia que, um dia, o Salazar morria e íamos fazer uma escola de Belas Artes como deve ser. O que eu queria era trabalhar.
Ter um rendimento certo?
Não, não: poder fazer coisas. Quando vim para esta casa, finalmente, tinha esta sala para pintar. Nós não tínhamos piano de cauda, mobília, nada: isto era o meu atelier. O que vi nos bolseiros, em Paris, em 57/58, é que se encontravam todas as noites. Eu tinha gasto cinco ou seis contos para, está-se mesmo a ver, encontrar-me com ele todas as noites... “Então logo a noite onde é que nos encontramos? Estás aqui para a sangria?” Eu??? Vou à cinemateca: vai dar isto e isto e isto. Voltei em 58: então o que é que fizeste? “Tenho lá um quadro. Isto ainda está muito atrasado”. O filho da puta num ano fez isto? Gulbenkian anda a dar-lhe 20 contos por mês para fazer isto? Valha-me Deus! Conhece alguém que no estrangeiro tenha alcançado glória eterna?
Paula Rego. Vieira da Silva.
A senhora da Madeira, a Lourdes Castro: alguém entre os emigrantes conquistou a verdade e a glória eterna? O Pomar, é universalmente conhecido? Jorge Martins (de quem sou grande amigo)? Porque é que continuam a fazer exposições no Brito? [Galeria 111]. Vim pra aqui, aqui podia trabalhar. Não havia aço inox? Não faço esculturas. Não há tela? Pinto em platex. Não posso pintar telas grandes? Pinto pequeninas. So what? Vou escrevendo, vou tomando notas.
Que fez nas temporadas, mais ou menos demoradas, que passou fora?
Estive em Paris 40 dias mais 40 dias. Passei os dias nos cinemas e na cinemateca.
O que é que foi mais extraordinário nos museus?
Fui imenso ao Museu do Homem. Fui um pouco ao Louvre. O museu dos Impressionistas estava fechado. Em Londres fartei-me de ir ao cinema, ia todos os dias ao National Film Theatre. Vi o Godard todo até 68. Vi filmes polacos, vi o primeiro Polansky.
Fala como se o contacto com o cinema fosse tão importante, ou mais, do que ver os quadros nos museus e galerias.
Ora bem: estou de acordo que não dá para ver a reprodução de um pintor veneziano: tem que ir a Veneza. Mas não sei se isso é uma verdade eterna. [mostra uma página] Isto dá uma ideia bem razoável, para quem conheça, de quem é o Seurat. Não é alta fidelidade, é como um disco de 78 rotações: dá para ouvir a musica. Um gajo habitua-se a ver isto, e a ler nas entrelinhas. Não vejo reproduções , vou ver ao Museu de Pequim? Não vou. A única hipótese é comer como me vem, como sai da lata. É deficiente? Pois é. Mas a gente tem que fazer fogo com a lenha que há.
Instalou-se no Porto, ficou a dar aulas nas Belas Artes, ficou conhecido. Era inseguro quanto ao que fazia?
Não. Estive algum tempo em ateliers. As pessoas davam uma pincelada e “que é que tu achas disto?”. Passavam a vida a pedir opiniões. E depois alguém me disse: “Tu nunca pedes opinião”.
Tinha a impressão que não o entendiam?
Eu não queria explicar! Eu não queria que me dessem opinião! É-me perfeitamente alheio, se me entendem ou não. A coisa que mais me chateava era um: “E se você pusesse aqui uma cor picante, um carmesim, ou um ocre dourado...”. Como era um gajo bem educado, fazia de conta... Não fazia aquele ar de dignidade ofendida – não preciso. Não tinha que fazer uma cena histriónica de incompreensão nem nada.
Quem é que foram os seus interlocutores?
Ao espelho não foi, que sempre me vi pouco ao espelho. Dei-me muito bem com o António Quadros, apesar de o gajo ser tão ferrenho da senhora Rosa Ramalho e de ter gozado com os quadros do Pollock; era um ferrenho do cinema também – lembras-te como o Marcel Carné faz não sei o quê? Tínhamos um patuá muito comum. Dei-me bem com o Eugénio de Andrade.
Falavam de quê? É fácil imagina-lo a dar-se com um poeta: a sua pintura é imensamente poética.
Cinema. Poesia. Você tem? Onde é que arranjou isso? Se quiser fique com ele que eu já li. Dava-me bem com o Augusto Gomes. O João Guedes – papei o Brecht todo que ele lá tinha, eram 30 e tal peças. Não tenho assim muito mau feitio. Entendi-me bem com a minha mulher.
O encontro com ela deu-se como?
Eu já a conhecia de vista, uma rapariga muito bonita, aquela é que é uma rapariga do caraças. Eu era um apreciador platónico distante. “Tu estás interessado em ir ao Alentejo, na Páscoa, fazer cerâmica? Vai uma malta, vai a Marina”. Era a minha mulher. Alto. Tou, tou. Eterna gratidão. Tenha na vida coincidências esquisitíssimas.
Quais são as grandes coincidências, as que apontaram caminhos?
Ter ido ao cinema. O sr. Lisboa arranjar-me o plástico para fazer histórias aos quadradinhos. O gajo da Mocidade Portuguesa que era cinéfilo. E meter-se-me a ideia de querer ser realizador. E depois não fui realizador. Porra!, se fosse romance ninguém acreditava.
Escritor?, nunca quis ser? Leu tudo.
Não. Sou dos poucos portugueses que nunca tiveram a tentação de fazer um versinho. Nunca, nunca, nunca. Nada, nada, nada. Talvez por ter lido antes. Mas não foi mau, podia ter sido pior. Como diria a minha avó: torces a orelha e não deita sangue. Mas deixemos as blagues.
Há no seu trabalho uma exploração intensiva e inesgotável da cor. Alguma relação com a experimentação das cores que fez em criança, com os lápis que recebeu?
Questão interessante: eu fazia principalmente desenhos com tinta preta. Os tais quadros figurativos: num era pontillista, o fuzilamento é bem feito, o dos estivadores é uma merda. Coitado de mim, tinha 16 anos, nunca tinha visto um quadro.
Qual foi o primeiro quadro que viu?
Vim com a minha mãe a Lisboa. Queria ver o Nuno Gonçalves. O Nuno Gonçalves tinha ido para Inglaterra! Mas ainda vi o Bosch.
Não podendo ser os painéis de S. Vicente, o primeiro quadro que viu foram as Tentações de Santo Antão?
Sim, e outros que lá estavam, no Museu de Arte Antiga.
Quando é que sentiu que tinha encontrado o caminho, que tinha encontrado a sua forma de expressão?
Em 1960 fui a Lourenço Marques e, como me aborrecia muito, pedi ao meu primo Zeca, que também pintava, fazia reproduções, não tinha graça nenhuma, umas tintas. Comecei a fazer umas pinturas em papel. E de repente – tenho esse trabalho aí – fiz aquilo e disse: já sei. É como a história do Klee: “A cor toma-me”. Eu fiz aquela merdinha e disse: agora já sei. Parece que ouvi uma voz por trás a dizer: Acabou, não há mais problemas. Tive problemas, mas não no sentido da frustração de pintar de branco, como tinha acontecido numa fase.
Pintar de branco era um estilo?
Era uma incapacidade. Fiz uns bonecos sem cabelo. A minha mãe: “Fizeste mais um quadro? Porque é que nunca lhes pões cabelo? Porque é que são sempre carecas?” Fiquei lixado. Porra, não sei como é que hei-de pintar o cabelo. Os meus alunos diriam assim: é assim, é a minha mensagem. Eu disse: eu não sei pintar cabelos.
Esse já sei tem uma força tal que percebemos hoje, olhando para a escultura ou para a fotografia, que elas são como a pintura – usando e explorando um suporte diferente. A linguagem é a mesma, mesmo que os materiais divirjam.
Acho que tem que ver. Neste momento, estou farto de tirar fotografias porque não faço nada. Não pinto, vai fazer seis anos em Maio. Porquê? Tive um cancro, fui operado, tive uma úlcera hemorrágica – stress. No outro ano tive dez meses o braço pousado. Depois a minha mulher partiu a perna e estive a tomar conta dela armado em Florence Nightingale. Depois outra desgraça. Todos os anos merda. Eh, não dava mesmo para fazer nada.
Sentiu falta?
Se tivesse sete ou oito quadros tinha-os vendido e tinha mais dinheiro neste momento. Não estou com uma mão à frente e outra atrás. Mas tenho uns quadros para fazer.
E o que tem para dizer? Pergunto por isso e responde que preferia ganhar umas massas.
Claro. Não me apetece.
Dá ideia que a vida quotidiana se intromete muito na sua obra.
Eu, qualquer coisinha, empato logo.
A tristeza é uma coisa que o impede de pintar?
Não sou nada triste nem infeliz.
Os quadros não parecem tristes. Pelo contrário, são quase sempre solares.
Não tem nada a ver. Um gajo pode estar lixado da vida e fazer uns quadros porreiros. Já estudei o assunto e não tenho nada de esquizofrénico. Não estou interessado em fazer quadros para dizer às pessoas que me dói o estômago. Não me interessa pôr as minhas dores de alma para os outros. Despejar o saco por cima do público? Uma idéia repugnante. Brgggg, que nojo.
Publicado originalmente no Público em 2008
Ângelo de Sousa morreu em 2011