José Rodrigues dos Santos
José Rodrigues dos Santos vendeu mais de um milhão de livros. (1027500, para sermos exactos, e segundo as contas da editora). Em 2006 e 2008 os seus livros foram os mais vendidos em Portugal. Depois de Fúria Divina, lançado em Outubro de 2009, e que assinalou um milhão de vendas, JRS regressa com um livro de não-ficção. O que é que ele tem?
José Rodrigues dos Santos chega ao encontro quatro minutos depois da hora marcada. Um atraso insignificante. Por cortesia ou surpresa, pergunta se cheguei há muito tempo. Traz o jornal debaixo do braço porque, disse, está habituado a esperar.
É exactamente igual ao José Rodrigues dos Santos que conhecemos da televisão: fato de riscas, gravata, cabelo arrumado. O tom entre o enfático e o contundente. Talvez menos emotivo do que na televisão. De uma impressionante jovialidade, que faz com que não se acredite que tem 46 anos (um sublinhado em que, como irão ver, não estou sozinha). Foi director de informação da RTP, repórter de guerra, é âncora do telejornal, é doutorado em Ciências da Comunicação. É um escritor de sucesso. (Macau, onde começou, aos 18 anos parece um passado longínquo. Ou Londres, onde esteve na BBC).
“É melhor começarmos já”, comentou, olhando para o relógio.
Nesse dia, os espectadores da RTP viram-no a apresentar o principal espaço noticioso da estação, e não poderiam ter ideia do muito que ele já tinha feito. A entrevista foi só uma delas. A revisão de provas de tradução foi outra. O milagre da multiplicação do tempo acontece na vida de Rodrigues dos Santos. Ele sabe porquê.
Três da tarde do dia 25 de Abril, num hotel perto de casa.
O pretexto para a entrevista é o lançamento do novo livro do autor. Conversas de Escritores, como o nome indica, é a transcrição de dez conversas que este escritor manteve com outros escritores para o programa homónimo da RTP-N, emitido em 2009.
Leio o livro em provas. Tenho a indicação de que o âmbito da entrevista deve circunscrever-se aos livros. Rodrigues dos Santos não quer dar uma entrevista pessoal. O que não surpreende. Coincide com o tom profissional com que está nesta entrevista. Trata-se de promover um livro. E pelo meio, com a noção exacta de como se chega ao público, há episódios engraçados – com Dan Brown, por exemplo. No livro e na entrevista. Ou explora-se a putativa rivalidade com Sousa Tavares
Trata-se também de saber como trabalha um dos autores que mais vendem em Portugal. Saber do seu universo literário, de como opera a máquina. De ter uma possível explicação para o sucesso.
Em nenhum momento ele parece abandonar-se à conversa. Parece sempre meticuloso, plenamente consciente do que está a fazer e do impacto que isso tem.
Já tinha saído quando me disseram que tinha ficado um telemóvel esquecido no sofá! Sim, era o dele. Conseguem imaginar o telemóvel do Rodrigues dos Santos nas mãos erradas? (Não pude deixar de me lembrar do episódio do computador roubado a Miguel Sousa Tavares, mesmo que ali se tratasse de esquecimento e não de roubo). O episódio, que obviamente não foi preparado, figuraria com certeza na introdução às entrevistas de Rodrigues dos Santos (onde aparece, por exemplo, Jeffrey Archer a chegar da ginástica, ou Paulo Coelho preocupado com a maquilhagem), se ele estivesse do outro lado. As introduções servem para iniciar a viagem e dar os bastidores da conversa.
Esta demorou quase duas horas. Quantas páginas ele teria escrito se não tivesse dado a entrevista?
(Não, não fiquei com o telemóvel. Decidi com a editora, a quem telefonei, a melhor forma de resolver o assunto).
Comecemos por duas frases de entrevistados seus. “A minha vida é a minha pesquisa”, de Ian McEwan; e “Não acredito na literatura psicanalítica”, de Luís Sepúlveda. De qual destas balizas está mais próximo?
Cada autor tem a sua forma de ver a literatura. Escrever pode não ser para Sepúlveda um acto [de catarse]; mas Isabel Allende disse-me que escrever Paula ajudou-a a pôr uma certa ordem no ano em que morreu a filha. O [Miguel] Sousa Tavares disse-me: “Quando escrevo, o livro toma totalmente conta de mim e da minha vida. Não consigo ir ao cinema, não consigo dormir bem”. Comigo, [riso] é o contrário! Estar a escrever um livro não afecta a minha vida.
A sua vida é a sua pesquisa?
Os meus romances têm uma pesquisa que vai muito além da minha vida. Aprendo muito quando estou a pesquisar para os meus romances. Não faço da minha vida a minha pesquisa, como fará o McEwan. Se a minha literatura é psicanalítica? A situação do Sepúlveda é diferente. Foi feito prisioneiro, combateu em conflitos armados. Eu, embora tenha estado em conflitos armados, não combati. O trauma que ele terá é diferente do que eu possa ter – que aliás, é nenhum. Nunca tive necessidade de [fazer] literatura psicanalítica.
Quais foram as situações limite que enfrentou e que aparecem no escritor que é?
Não consigo dizer. Enquanto pessoas e enquanto escritores somos o resultado de tudo o que vimos e vivemos. Muitas dessas coisas são coisas em relação às quais não temos consciência. Funcionam num nível inconsciente e subconsciente.
Porque é que decidiu fazer este programa de televisão, que resultou neste livro? Depois da leitura do livro, percebemos que o escritor nunca desaparece do jornalista.
Faz parte do espírito do programa. Conversas de Escritores: já o título remete para uma posição ambígua da minha parte. Essa ambiguidade permanece nas entrevistas, e reflecte-se no livro. Há perguntas que faço que são de jornalista, há outras que são de escritor. E por escrever romances, nalguns casos, o entrevistado começa a fazer perguntas.
Isabel Allende faz-lhe imensas perguntas sobre a oficina da escrita.
É uma conversa, mesmo. As entrevistas nasceram de um desafio que me foi feito pela RTP-N. Valia a pena fazer uma coisa que nunca tivesse sido feita em Portugal. Tinha sido feita uma famosa entrevista da Maria Elisa e do Artur Albarran ao Jorge Luís Borges em Buenos Aires. Neste caso, é uma série estruturada, pensada e executada em qualquer parte do planeta – onde está o escritor. Procurámos um critério de notoriedade.
Esta selecção de entrevistas diz respeito, sobretudo, a autores de grande, grande público, em Portugal. Ainda que Günter Grass e Ian McEwan vendam incomparavelmente menos do que Paulo Coelho e Dan Brown. Porquê estes?
Com excepção do Sousa Tavares e do Saramago, não é fácil à televisão portuguesa ter acesso a esses autores. Sobretudo desta forma sistemático, como ocorreu.
Tem a impressão de que os autores lhe deram a entrevista porque é um escritor que vende muito?
Penso que pode ter sido importante num caso ou noutro, não na maior parte. No caso do Dan Brown, foi importante. Ele ia lançar o seu livro, e Portugal era um mercado periférico. Tanto quanto sei, tinha reservado para um país como Portugal [a resposta a] umas perguntas pela internet. Com a Bertrand, conseguiu-se convencer o Dan Brown. No caso do Ian McEwan, a editora, a Gradiva, que é a mesma, disse-lhe: “Vá para ali”, e ele foi.
A maior parte dos escritores, se não o conhecem enquanto autor, estão pelo menos conscientes do impacto que tem. A questão ajuda a definir o estatuto com que vai para a entrevista. Se é um jornalista que escreve livros, se é um igual.
Não tenho a certeza que fosse uma conversa entre iguais. Alguns são autores de reconhecimento planetário – não é o meu caso. Com excepção do Miguel Sousa Tavares, que é aquele [cujo sucesso] se pode comparar ao meu. Do Saramago ao Günter Grass (que pode vender pouco aqui, mas que é um Prémio Nobel). Os meus livros só são traduzidos em 15 línguas, os do Paulo Coelho são traduzidos em 60 e tal. O Jeffrey Archer, que é um autor aqui menos conhecido, vendeu mais de 220 milhões de livros. Eu não poria a coisa assim, conversa entre iguais. Entre pessoas do mesmo ofício, sim.
Na conversa com Archer, comenta-se que têm a mesma editora na América. Quando falo numa conversa entre iguais, também penso em pormenores deste tipo.
Ele fez-me perguntas sobre as pessoas com as quais eu trabalhava na editora. Sim, pode acontecer. Há a ideia de que alguns escritores são mal encarados e dão respostas telegráficas. Talvez o Sepúlveda. Mas pode ter sido porque a entrevista foi de manhãzinha e ao que me dizem ele é noctívago. Mas em geral, não foi isso que encontrei. Encontrei pessoas normais.
O que é que aprendeu?
Aprendi a diversidade da forma como cada autor vê o seu trabalho e a literatura. O traço mais relevante: todos deram entrevistas realmente interessantes. Todos falaram da vida, sobre a escrita, sobre o mundo, de uma maneira que era diferente. E nisso, aprende-se sempre alguma coisa.
Quem são, além do lado oficinal do escritor, está na entrevista?
Ah, sim. Quando damos uma entrevista, mostramos quem somos. Mas é natural que a pessoa procure dar o seu melhor lado. Não tenho a ilusão de ter apurado a verdade toda sobre “aquele autor”. No livro, antes da entrevista, faço um retrato, conto o que se passou nos bastidores – onde se está mais à vontade.
Nos bastidores, pode revelar-se mais do que na entrevista.
Exactamente. É interessante ver o tipo de piadas que mandam, se têm sentido de humor, as coisas a que dão importância.
Em relação ao seu encontro com Sousa Tavares, tratando-se de dois dos escritores mais vendidos em Portugal, havia uma especial curiosidade. Como se se tratasse de um encontro entre rivais.
Quando autores competem, isso é bom para os autores, para o mercado e para os leitores. Quero lá saber se ele vende mais ou se eu vendo mais! Essa é uma questão pertinente para as editoras. O meu trabalho é escrever romances. Se as pessoas gostam, maravilha, ficamos encantados. Agora, fazer a luta milímetro a milímetro? É absurdo.
Miguel Sousa Tavares diz: “Os escritores detestam que os jornalistas passem à categoria dos escritores”.
É uma opinião do Miguel Sousa Tavares que resulta da sua experiência. Eu nunca tive essa percepção, também porque nunca andei a falar com escritores para saber o que é que pensavam do facto de alguns jornalistas passarem a escritores. Sendo verdade que a profissão que mais escritores forneceu ao longo da história da literatura é a de jornalista. O Hemingway, o Truman Capote, o Amin Maalouf, a Isabel Allende. O José Saramago foi director do Diário de Notícias. Se existe esse…
Preconceito?
É mais ciúme. Se existe esse ciúme, é um ciúme absurdo. Não sei o que é que os escritores pensam disto. E para dizer a verdade, estou-me borrifando.
Porque? Não lhe importa absolutamente nada a “confirmação” inter-pares?
Um escritor ficar contente com o facto de eu ser escritor ou não?, é-me irrelevante. Que é que importa se eu gosto daquele escritor ou não? Ele tem o seu público e faz o seu caminho.
Na mesma entrevista, você diz: “Estamos a expor-nos, o risco é maior”, e “Ninguém é profeta na sua terra”.
Quem tem uma carreira feita na área da escrita – o jornalismo é escrita –, quando escreve um romance está a dar o flanco, não é? A obra pode ser má, primeiro ponto, e a pessoa faz uma figura ridícula. Segundo, quem não gosta dele pode atacar à vontade, tem ali caminho aberto. Mas isto não é válido só para jornalistas. Qualquer pessoa que tenha notoriedade torna-se um alvo. O Ian McEwan também fala disso. O Sousa Tavares escreve um livro que é marcante nas letras portuguesas – há um momento antes e um momento depois do Equador – , que foi um sucesso extraordinário e que não ganhou um único prémio. Ter muitos leitores não significa que o livro seja bom – verdade. Mas os italianos deram-lhe um prémio.
O Grinzane Cavour (em 2006).
Afinal o livro é bom. Então, porque é que em Portugal não lhe deram um prémio? Daí a ideia – ninguém é profeta na sua terra. Os ciúmes, as invejas, os jogos de bastidores e os preconceitos acabam por se impor. Mas o público não é parvo. Estamos a falar de livros que não são baratos. Estamos a falar de livros de 20, 25 euros. As pessoas não gastam esse dinheiro para comprar lixo. E o público que compra livros, é exigente, tem um determinado estatuto social. Se o fazem, é porque têm a convicção de que o produto é bom.
Sentiu que passou a ser um alvo? Quando começou a escrever, temeu que as duas facetas se contaminassem?
Eu tinha a confiança de que o trabalho ia ser interessante. Hoje em dia olho, e, eh, pá, realmente corri um risco. Mas a história d’ A Filha do Capitão é extraordinária.
É a história da sua família?
Não. Embora entronque com a história da minha família, é sobre o corpo expedicionário português. O primeiro título que previ para esse livro era Esquecidos. É a história de um bando de homens que é enviado para a Flandres e fica abandonado. O país abandona-os. Havia rotação de tropas francesas, inglesas e alemãs nas trincheiras, de três em três meses, e as tropas portuguesas ficam mais de um ano, largados. Os oficiais começam a fugir, os soldados ficam sozinhos. E há um pormenor hollywoodesco contado no romance: os ingleses apercebem-se de que as tropas portuguesas estão num estado deplorável (era demasiado duro estar um ano naquela lama) e dão ordem de substituição das tropas portuguesas, até ao fim da tarde do dia 9 de Abril de 1918. O que é que acontece? Os alemães atacam nessa madrugada. A história estava por contar. Veja as críticas que o livro teve, até na Alemanha – e a Alemanha era o inimigo.
Para começar, o mais importante é ter uma boa história?
Ter uma boa história.
E depois encontrar uma boa maneira de a contar?
E encontrar uma boa maneira de a contar. A sua observação remete-nos para uma pergunta constante nas entrevistas: o que é para si um bom romance? A minha definição aparece n’ A Filha do Capitão. Uma personagem cita um tal de King – é na verdade o Stephen King – que diz: um bom romance é uma boa história bem contada.
Há duas citações que aparecem, também, pelo menos duas vezes. Uma é de Drummond de Andrade: “Escrever é cortar palavras”. Porque esta recorrência?, que é consciente, claro.
É um lema que tenho: escrever é cortar palavras.
Ainda que os seus romances sejam enormes.
Não quer dizer nada. Dou-lhe 500 páginas, mas se forem muito boas, o livro é pequeno. Dou-lhe um romance se 100 páginas, mas se for uma chatice pegada, o livro parece que não acaba. O maior elogio que posso ter é quando um leitor me escreve e me diz: “Comecei o seu livro e não consegui parar”. “Escrever é cortar palavras” não tem a ver com a quantidade, tem a ver com estilo. Porque é que hei-de dizer: “unidade mínima de construção” quando posso dizer “tijolo”? Como Jean Cocteau dizia, “estilo é a capacidade de dizer o maior número de coisas no menor número de palavras”.
Não estava à espera que citasse Cocteau.
Porque não?
Surpreendeu-me, simplesmente, porque saber que as suas referências são sobretudo anglo-saxónicas.
É verdade, mas os anglo-saxónicos não têm a verdade toda. Os franceses deram óptimos contributos para a literatura, e outros não tão bons. Mas isto é válido para todas as literaturas.
Como é que corta palavras? Como é que é a sua oficina? Escreve, e quando corrige desbasta muito?
Não desbasto muito. Escrevo, e depois vou apurando o texto. A
história é tão importante como a forma como ela é contada.
Não temos um manuscrito seu, até porque escreve directamente no computador. Mas vamos imaginar uma folha. Ela fica muito rasurada depois de a submeter ao apuro?
Fica. O texto é sempre depurado. O estilo é trabalhado. Vemos se determinado diálogo soa bem. Se certa citação é redundante ou não. Em vez desta palavra, aquela. É um trabalho às vezes barroco. Embora o leitor não note, tem influência na qualidade. Procuro fazer com que as palavras sejam – como disse o Ian McEwan – como água. Transparentes. Quando lemos o livro, não lemos as palavras, lemos a cena que as palavras nos dão. É esse o meu exercício.
Ocupa-se da revisão das provas da tradução inglesa dos seus livros. Pensei que fosse assegurado por um editor.
Ah, sim. Quanto mais revejo as minhas traduções, mais preocupado fico. Um tradutor põe coisas suas. Às vezes traz vantagens, outras altera sentidos. Há uma frase no prólogo de A Fórmula de Deus em que o Einstein está a falar com o Ben Gurion em Princeton, no jardim da sua casa. (Um encontro que realmente ocorreu.) A certa altura digo mais ou menos assim: “Silêncio. Einstein levou tempo até falar”. A tradução inglesa é: “Silence. Einstein spoke for a long time”. Não perceberam que levar tempo a falar era levar tempo a começar a falar. Este tipo de erros de interpretação, estou sempre a encontrá-los.
Esse é outro tópico que aborda frequentemente nas conversas com outros escritores. De o tradutor ser autor.
E é. Outra situação d’ A Fórmula de Deus. Quando Ariana se encontra com Tomás, diz: “Prazer”. Traduziram para “Pleasure”. Um inglês dirá “pleasure”?, não dirá “hi”? Já falei com muitos americanos e ingleses e nunca vi ninguém dizer simplesmente “pleasure”. Pode dizer: “It’s my pleasure”. É uma tradução literal. É importante que o tradutor seja um escritor porque sabe que não vai reproduzir o diálogo ipsis verbis como está no original, mas o sentido do diálogo, usando as palavras que seriam naturais na sua língua.
No seu livro faz uma menção ao título em inglês d’ A Fórmula de Deus na conversa com Dan Brown. Sentiu-se na obrigação de justificar o título, e diz que corou. Quer contar?
Estávamos a conversar e ele perguntou-me que livro é que eu ia lançar na América. “É um livro chamado A Fórmula de Deus embora a edição americana se chame The Einstein Enigma”. O Dan Brown olha para mim e diz: “Hummm, The Einstein Enigma. Onde é que eu já vi um título semelhante?”. Devo dizer que até esse momento não tinha raciocinado sobre isso. Tire-se o Einstein e ponha-se o Da Vinci, tire-se o Enigma ponha-se o Code… A raiz do título é a mesma. A minha editora, que escolheu o título…
E que é tudo menos inocente…
Exactamente. Apercebo-me do paralelismo entre os dois títulos e que a minha editora está a ir a reboque do Código Da Vinci. Corei! “Olhe que o título original não é este”.
Temeu ser considerado pelo próprio Dan Brown um epígono do Dan Brown?
Não, não, não. Acho que são romances diferentes e basta lê-los para perceber isso. Podem ter alguns pontos em comum, como por exemplo o facto de alguns dos meus romances envolverem enigmas e cifras, uma técnica de Edgar Allan Poe que Dan Brown também incorpora nos seus livros. Mas coisas em comum, partilho eu com mais outros duzentos autores.
Não lhe ocorreu a si, mas à editora, sim. Que o seu livro podia ser vendido assim para aquele tipo de público, a partir daquela fórmula.
As editoras, em Portugal e no estrangeiro vivem dos livros que vendem. Não há cá subsídios – que eu saiba. Não é como a indústria do cinema. Têm um único subsídio, indirecto, que é importante: o IVA mais baixo. As editoras têm de adoptar estratégias que consideram adequadas para vender os seus produtos. A editora americana acha que o livro A Fórmula de Deus pode ser apelativo para o público do Código Da Vinci – e vai buscar um título semelhante. É uma decisão da editora, não é minha. Os resultados provarão se foi uma estratégia correcta ou não. Um autor só é dono do seu livro no país onde o edita. Uma editora estrangeira muda, e muitas vezes nem diz nada, decide a capa, e muitas vezes nem consulta o autor. Admito que se um autor ganhar um prémio Nobel, admito que se o Dan Brown disser que não quer que a editora faça desta maneira, admito que se o autor tem uma voz forte, a editora não se atreve a contrariar.
Em Portugal controla tudo? Inclusive a sua estratégia de comunicação.
Em Portugal controlo grande parte do processo, mas a decisão final é da editora. Acompanho de perto tudo, da génese à escolha do dia de lançamento da obra. Normalmente a editora dá-me rédea solta, e não se tem arrependido.
Essa rédea solta é posterior ao sucesso?
Desde o início. E eu vendia pouco.
O Codex 632 representou a explosão, em termos de vendas e notoriedade junto do grande público. Sabia que aquele livro ia marcar a diferença?
O primeiro livro que começou a vender bem foi A Filha do Capitão. Chegou ao sétimo lugar do top da Fnac, vendeu nesse ano 30 mil exemplares. Foi um livro em que já tínhamos encontrado um caminho. O resto foi seguir as nossas convicções e o instinto. O Codex duplicou as vendas do anterior. O público estava criado.
Quando parte para um livro, tem a noção exacta do que funciona? Estou a perguntar pelo seu domínio da máquina.
Tenho uma vantagem que nasce do facto de ser jornalista (e por essa razão, tantos jornalistas escrevem livros). Enquanto jornalista sou obrigado a escrever de uma forma interessante sobre coisas interessantes. Se o assunto é desinteressante e está escrito de uma forma desinteressante, nem sequer é publicado. Estamos sempre a pôr-nos na posição: será que a pessoa está interessada nisto? Como você, de certeza, faz. Não me vai entrevistar pelos meus lindos olhos. Pensa: esta pessoa será interessante para o público que lê a Pública?
Ou como é que abordo esta pessoa a pensar nos leitores da Pública.
Essa ponderação já é automática. O meu agente na América disse-me recentemente num almoço: “Podemos gostar deste autor, e daquele, e daquele. Mas há uma coisa que é eternamente verdade: todos os autores que tiveram êxito trouxeram alguma coisa de novo. Os intelectuais podem falar mal. Mas aquele autor tem qualquer coisa que não existia antes”. Essa noção – como é que vou tratar este assunto de uma maneira original? – é importante. Aconteceu com O Codex 632. O Codex é a história dos Descobrimentos contada através do mistério da identidade do Colombo. Pode-se gostar ou não gostar, mas se se olhar de boa fé percebe-se que nunca a história dos Descobrimentos foi contada daquela maneira, quase detectivesca.
Enquanto entrevistador é extraordinariamente documentado. Frequentemente diz: na página 12 escreveu isto, na 189 escreveu aquilo. Que espaço fica para a intuição? Quer no exercício da sua profissão de jornalista, quer na escrita de romances.
Enquanto jornalista, a melhor intuição é realmente a preparação. O mais importante é a capacidade de prever as coisas, de planificar. Posso dar um exemplo: quando assumi a direcção de informação [na RTP], no meu segundo mandato, havia um problema chamado Iraque. Entrei em funções em Outubro, a guerra começou em Março. Quando entrei em funções já estava a ver o filme que ia acontecer. A minha dúvida não era se eles iam atacar, mas quando é que eles iam atacar. É uma intuição que decorre de uma documentação. Eu estava informado, tinha amigos na CNN a quem telefonava, eles explicavam-me as coisas, tinha contactos. Prioridade: desenvolver boas relações com os iraquianos, são eles que me vão permitir meter um repórter em Bagdad. Segundo: os americanos vão entrar por onde? Não é pela Arábia Saudita, como fizeram em 1991; vai ter que ser pelo Kuwait. O problema do Kuwait é que, sobre a hora, dez mil jornalistas no mundo inteiro vão querer ir para lá, vai haver um congestionamento nos vistos. Pedi logo os vistos. A equipa da RTP conseguiu os vistos em três dias.
Isso não é exactamente intuição.
Mas decorre de uma preparação. Para todos os efeitos, a intuição é a preparação. No caso do escritor, a preparação é a pesquisa. Quando falamos de um sítio, conhecemos esse sítio. O que é que é intuitivo? A noção do ritmo, do interesse, de como devemos atacar esta parte.
Sente-se, na leitura das entrevistas, que pouco ou nada do que ali está lhe foge ao controlo.
Há autores de quem não é possível ler tudo, mas tenho, pelo menos, as obras principais lidas. Essas entrevistas deram-me muito trabalho. Fui de férias uma semana para as Caraíbas e li quatro livros. Sabe o que é ler quatro livros numa semana? Estava na praia a ler, estava na praia a trabalhar. A preparação é o melhor caminho. Havia uma frase que a CNN tinha quando apareceu, e que me lembro de ver em Londres: “O que é que faz com que tenhamos sucesso?” E apareciam os repórteres da CNN a dizer: “Home work”. Trabalho de casa.
Nunca é inseguro?
Não.
Resolve isso com home work.
Home work. A insegurança normalmente nasce da má preparação.
Há um outro autor que cita duas vezes, Somerset Maugham. “Todos os escritores estão sempre a contar a mesma história”. “Os melhores romances nascem do sofrimento dos seus autores”. O que mais me surpreende nesta insistência é não o reconhecer enquanto autor no que aqui está.
A primeira frase: de algum modo isso é um pouco verdadeiro comigo. As pessoas quando vão ler um romance meu, já sabem o que podem esperar.
Não é contar a mesma história. É contar com uma eficiência (esperada) uma história.
É verdade o que está a dizer. Essa frase do Somerset Maugham para mim é verdadeira nesse sentido, apenas. [Em relação à segunda frase], não posso dizer que tenha tido um grande sofrimento. Mas os meus romances não são introspectivos, como o McEwan faz.
Penso que é difícil encontrá-lo ou saber quem é a partir do que escreve.
É verdade. Talvez algumas coisas transpareçam inconscientemente… Uma personagem minha faz uma coisa moralmente questionável, e a minha mulher começa a olhar para mim… Hum. A ver se aquilo é o que penso, se é um desejo reprimido. Nos romances somos quem somos, quem não somos, quem gostaríamos de ser…
Sveva Casati Modignani diz-lhe: “Você teve uma vida muito aventurosa”. Mais à frente, diz que as maiores aventuras são as interiores. De facto, quando olhamos para a sua vida, a primeira coisa que ocorre é que é novíssimo, esteve exposto a situações de conflito armado, viveu situações aventurosas. Todavia, não sabemos das suas aventuras cá dentro.
Também poderia apresentar a coisa de outra maneira: porque sou uma pessoa pacificada, vou buscar a aventura no exterior.
Alimenta-se disso?
Faz parte da natureza humana. Se a pessoa tiver uma vida turbulenta, já se tem a si próprio para resolver. É um raciocínio que estou a fazer agora à luz da sua observação, que pode explicar isto. Muitas pessoas me disseram em situações de guerra: “Nunca me senti tão vivo como quando estava naqueles momentos tão difíceis”. A vida ganha uma outra intensidade, as cores tornam-se mais vivas quando estamos numa situação de perigo.
Não transparece em relação a nenhum autor, em nenhum momento, uma especial afinidade ou admiração. Foi intencional?
Não quis exprimi-lo. Não era o lugar para o fazer e não era o meu papel. Acho que não se compreende, nas entrevistas, o que acho do autor e dos seus livros. Talvez se possa entender, nalgumas entrelinhas… Quando fazemos perguntas, há um ponto de vista do qual partimos. As nossas opiniões estão lá, mas estão escondidas até de nós próprios.
Quais foram os autores que fizeram de si um escritor?
Daria a resposta da Isabel Allende, que para além de ser brilhante é muito verdadeira: todos os autores que li me influenciaram. Mesmo quando não tive noção de que me estavam a influenciar. Até no sentido de dizer: eh pá, assim é que eu não quero escrever.
Günter Grass faz uma referência ao seu fato, bem cortado. E há outra pessoa que comenta como está bem vestido.
É Isabel Allende.
Outros escritores comentam que é muito jovem, e responde que essa aparência de juventude se deve a um gene da sua mãe.
São as duas escritoras, a Sveva Casati Modignani e a Isabel Allende, que fazem referência ao meu aspecto físico. Foi inesperado. Achei que [esses comentários] eram relevantes para conhecer aquele autor. Que impressão tive? É melhor do que ouvir: você é feio que nem uma porta!
O que não diriam.
Claro. Mas a Isabel Allende foi gozação, teve graça. A Sveva disse-o num tom mais profundo.
A sua mãe lê os seus livros?
Não sei. Deve ler alguns.
Não lhe pergunta?
Não, nunca me faz perguntas sobre os livros.
Não tem curiosidade em saber o que é que a sua mãe acha dos seus livros?
Com sinceridade, é um assunto em que não pensei. Tal como as minhas filhas. É com elas. O fazer da pergunta – já leu? – é uma pressão que exerço sobre a outra pessoa.
A opinião acerca do seu trabalho enquanto escritor, de pessoas que lhe são próximas afectivamente, não é de todo importante?
Talvez no caso da minha mulher. Ela ajuda-me.
Ela é professora de História, não é?
É. Ajuda-me a perceber como é que um leitor lê o livro.
Ela vai lendo à medida que escreve?
Certos livros, leu-os à medida que escrevi (Codex, A Fórmula de Deus, O Sétimo Selo). Todos os outros, incluindo o que estou a escrever agora, só no fim. Aliás, dei-lhe dois capítulos a ler para tomar uma decisão quanto ao posicionamento dos capítulos. Ela dá-me a impressão que o leitor tem. E isso é importante, porque eu não trabalho só para mim, trabalho para o leitor.
Isso que descreve é diferente de ter ou esperar uma gratificação.
Quando comecei a trabalhar como jornalista, na BBC, num curso de formação, disseram-nos assim: “Não há nenhum apresentador de quem toda a gente goste, não há nenhum apresentador que toda a gente odeie”. E isso, eu transporto-o para a escrita. Sei que, quando escrevo, vai haver pessoas que gostam e outras que não gostam. A única coisa de que não gosto é quando a pessoa não gosta antes de ter lido. Tenho dificuldade em entender. Acho que é um acto de pouca inteligência.
Como é que se fez tão auto-suficiente?
Isto já me acontecia como jornalista. Há jornalistas que precisam de colo, precisam que toda a gente diga: “Estava muito bom”! Eu não preciso disso. Quando faço um trabalho, tenho a noção exacta se saiu bem, o que é que foi bom ou mau.
Nunca pensa: o que é que “esta” pessoa (uma figura tutelar) diria desta peça?
Não. Penso: o que é o público diria desta peça.
Não pensa: o que é que o meu pai diria deste livro?
Não, isso não. Alguns jornalistas cometem esse erro gravíssimo: falar em circuito fechado. Falar de coisas que o político entende e outros jornalistas entendem, mas o público em geral não. Eu não faço entrevistas para satisfazer a minha curiosidade pessoal. Faço entrevistas para prestar um serviço, um esclarecimento, aos espectadores e aos leitores. Essa característica que tenho enquanto jornalista, tenho enquanto escritor. As pessoas sabem que aquilo não vai ser um circuito fechado, usando palavras que ninguém entende, dizendo “unidade mínima de construção” quando podia dizer “tijolo” para mostrar caro. Escrever complicado é a coisa mais simples. O difícil é escrever simples. Não é simplista, é simples. O grande desafio do escritor é tornar as ideias cristalinas.
Falemos de sucesso e de fama, tópico sobretudo abordado com Paulo Coelho. O biógrafo do escritor, Fernando Morais…
Disse que Paulo Coelho estava obcecado com o sucesso. Que fez um pacto com o Diabo.
Parêntesis: se vai entrevistar o Paulo Coelho, também lê a biografia do autor?
Li partes. Procurei ler mais os livros do Paulo Coelho. Interessava-me mais a escrita do Paulo Coelho do que a vida do Paulo Coelho.
Paulo Coelho fez sucesso escrevendo letras de canções nos anos 70, ganhou muito dinheiro com isso, mas não foi suficiente. No seu caso, já havia dinheiro e reconhecimento por via da televisão. Mas não nesta dimensão. Era uma coisa importante para si?
Não. As pessoas podem não acreditar, e compreendo que não acreditem, mas é verdadeiro. Quando comecei a escrever os livros, isso foi a última coisa que me ocorreu. Nunca esperei, sequer. É preciso perceber em que circunstâncias comecei a escrever romances. A obra mais importante que tive na minha vida foi a minha tese de doutoramento. Tudo o resto decorre dela. Publiquei as Crónicas de Guerra e o José Manuel Mendes (presidente da Associação Portuguesa de Escritores) gostou tanto que me convenceu a escrever. “Tu és um romancista em potência”. E eu a rir-me… “Get real”. Pediu-me que escrevesse um conto. Comecei a escrever, a entusiasmar-me, e quando dei por ela já tinha 200 páginas! Deu A Ilha das Trevas, o meu primeiro romance.
Escreveu em quanto tempo?
Quinze dias, a trabalhar a noite toda. O livro vendeu muito pouco. Mas o bichinho da escrita ficou. Descobri que gostava de escrever ficção. Foi este o processo. Não há um momento em que digo: vou escrever romances para ficar rico e ter muito sucesso internacional. É um vício. Como há pessoas que têm o vício de comer chocolates ou fumar cigarros, e de repente tornam-se famosas no mundo inteiro por comer chocolates ou fumar cigarros! Mas não começaram a comer chocolates nem a fumar cigarros para serem famosas e ganhar muito dinheiro. É um acidente que ocorre posteriormente.
Vou repetir a pergunta que Isabel Allende lhe faz: como é que tem tempo para a televisão e para os romances?
Como sou uma pessoa que tem uma grande capacidade de trabalho, e consigo organizar-me, e isto é uma coisa que gosto de fazer, arranjo o tempo. Sai-me muito texto, dez páginas por dia. Esta entrevista, estou aqui há duas horas – podia ter escrito umas três páginas para o romance.
Tem medo do falhanço?
Não. Gostaria de não falhar, mas se falhar, faz parte da vida, e ninguém tem de se envergonhar por isso.
Publicado originalmente no Público em 2010