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Anabela Mota Ribeiro

Paulo Rangel

16.06.15

Encontrámo-nos numa brasserie de um hotel de Lisboa. Comemos o mesmo risotto com vieiras. Ele pagou, insistiu em pagar, afiançou que existe uma verba do Parlamento Europeu para isso. Começámos a gravar depois da sobremesa, e nem por isso nos livrámos do tinir dos talheres.

Começámos por falar de viagens. Era preciso entreter com qualquer coisa, vero?, tendo eu dito que não queria falar antes da entrevista das coisas de que queria falar na entrevista. Viagens é sempre um bom tópico.

Falou-me das viagens em família, de carro. Das viagens que fez adolescente, versão mochila às costas. Alguém imagina Paulo Rangel num inter-rail, de mochila às costas?

Falámos dos autores de que gostamos. Os autores alemães dele, Weimar imersa em nevoeiro. Alguém imagina Paulo Rangel mergulhado na leitura de Goethe? Esta é de resposta fácil.

Acabámos a entrevista e Paulo Rangel ficou a remoer no que tinha debitado para o gravador. Confessou que ia ficar a pensar no que não devia ter dito.

A entrevista oscila entre um registo confessional e a picardia política. Estava a dias de fazer 43 anos. Aqui fica o retrato de um homem que há um ano disputou as eleições para a presidência do seu partido.

 

Ouvi falar de si a primeira vez há oito anos. Em Serralves, Gomes Canotilho dirigiu-lhe um rasgado elogio: disse que era um dos mais brilhantes alunos que tinha tido. Não sei se tem memória disto...

Tenho uma ideia.

 

O que quero saber é se ficou embevecido porque Gomes Canotilho, em público, disse uma coisa assim.

Já mo disse várias vezes, em privado e em público. Há algum exagero da parte dele, e alguma amizade pessoal, que temos. O Dr. Canotilho tem uma grande capacidade de reconhecer o valor e o mérito dos outros. Isso no fundo diz mais dele do que de mim.

 

Nessa altura, os portugueses não sabiam quem era Paulo Rangel. Isto serve de intróito para lhe perguntar desde quando é que o convenceram de que era muito bom. Que tinha, como se costuma dizer aos jovens, um belo futuro à sua frente.

Em casa nunca me disseram. Era a lógica do “não fazes mais do que a tua obrigação”. Fui muito bom aluno na primária, também no secundário e na faculdade. Talvez no secundário, numa instituição que frequentei….

 

… o Colégio dos Carvalhos.

Era aquilo a que se chama uma instituição total, como na tropa, extremamente carismática. Estivesse como aluno externo. Aí sim, encontrei dois ou três professores que talvez tenham alimentado essa ideia. Se falássemos na questão da política, na primária todos os meus colegas achavam que ia ser político.

 

Por causa dos seus dotes retóricos?

Também, mas não só. Era obcecado com política. Tinha seis anos quando se deu o 25 de Abril, mas já sabia quem era o presidente da República, o presidente do Conselho. E depois vivi aqueles anos agitadíssimos do PREC intensamente. Os meus pais eram marcelistas, não eram salazaristas. Achavam sempre que o Marcelo Caetano foi injustiçado. Pertenciam a uma ala liberal soft. Depois foram Sá Carneiristas convictos. A quinta dos meus avós, onde o meu pai nasceu, foi sede do PPD.

 

Era uma casa muito politizada, em suma.

Tive pintado na minha casa, durante mais de seis meses: “Aqui mora o Rangel fascista”. O meu pai trabalhou em seguros a vida inteira. Lembro-me de ir a pé para o colégio, de freirinhas, em Gaia, que era uma zona quase rural, bastante agradável, sozinho, eram dez minutos, toda a gente se conhecia; recordo-me de ver uns operários que trabalhavam numa oficina de automóveis, a oficina do Zé Lopes; os operários, que levavam a marmita e comiam cá fora, diziam: “Ali vai o Rangelzinho fascista”. Cheguei a saber a composição de todos os governos provisórios e constitucionais, inteiros, como quem sabe a equipa de futebol.

 

Isso era a conversa com o seu pai?

Resultava muito da conversa com o meu pai, e do meu interesse natural, espontâneo. Quando começo a minha vida como político, para os meus colegas da primária não é surpresa nenhuma. Para mim era uma evidência eterna. Sabia que ia acontecer, só não sabia quando. Era uma vocação. Tem a ver com um lado um bocado místico, também.

 

Um lado místico?

A pessoa acha que tem uma vocação. É um chamamento que não é racional.

 

Era a vocação do “quero mudar o mundo, quero corrigir injustiças, quero ser o primeiro-ministro”?

Nessa altura não queria ser nada em concreto. Hoje também não. Como na Tabacaria: “Não quero ser nada”.

 

Mas tinha em si “todos os sonhos do mundo”?

Tive alguns. E mantenho. Não tenho projectos, mas tenho sonhos. Havia uma paixão pelos assuntos políticos que não era normal para uma criança. Mesmo política internacional. Lembro-me do Cambodja, em 1979, dos acordos de paz de Camp David. Das eleições Gerald Ford/[Jimmy] Carter, em 1976. Do James Callaghan, na Inglaterra, do Olof Palme. Lembro-me disto como se fosse hoje.

 

Em 1976 tinha oito anos. Quem eram os seus amigos? Isso não granjeia grande popularidade junto dos amigos da mesma idade.

Tinha muitos amigos.

 

Com quem é que se sentava no sofá a ver as eleições?

Nessa altura não se via [televisão] dessa maneira. Nenhum se interessava por isto, é verdade, mas depois tinha as brincadeiras de qualquer criança. Sempre fui muito social, continuo a ser. Não faço a minha vida pessoal com as pessoas com quem vivo na política. Como não faço com quem trabalho no escritório, ou com colegas com quem dou aulas na Católica.

 

Eram duas vidas. Uma era a de uma criança precocemente adolescida.

Não diria isso.

 

Está já a defender-se porque as pessoas dizem que envelheceu cedo demais…

Nunca ouvi ninguém dizer isso.

 

É por ser sério e compenetrado?

Nunca ninguém me deu menos idade do que a que tinha, mesmo que não pareça ter mais. Hoje pareço ter mais porque estou muito forte. Mas quando era mais magro podia até parecer a idade que tinha, mas nunca ninguém ma dava. Tem a ver com um discurso demasiado articulado que dá um ar pesado.

 

Quando as pessoas dizem que envelheceu cedo demais, ou que é uma criança crescida, isso não tem que ver com o seu aspecto físico; tem a ver com a sua postura.

Na verdade, eu era até muito infantil em muita coisa. A paixão pela política não era mais do que a paixão que uma criança tem por futebol. Ninguém estranha que uma pessoa que se dedicou ao ténis conheça todos os do ténis.

 

Quem é que era a sua plateia nessa altura? Pais, avós.

Com os pais: nunca senti que sentissem [especial orgulho]. Há pessoas que me dizem que sentiam, ou que sentem. Mas isso nunca me foi dado assim. Temos uma relação óptima.

 

Então quem era a sua plateia? Todos precisamos de plateia.

Fazia muitos discursos sozinho, desses políticos. E nas aulas intervinha muito. Nunca tive medo de falar em público. Aos sete ou oito anos era capaz de pôr uma pergunta à professora, discordar de uma coisa, de uma sanção que foi aplicada. Isso é uma plateia política no sentido do nosso mundinho. É muito importante quando se é criança.

Em 1983 fiz uma intervenção numa mesma mesa onde estavam Cavaco e Marcelo [Rebelo de Sousa]. O Cavaco tirou-me a palavra. Ainda não era primeiro-ministro, tinha sido ministro das Finanças e estava, julgo, no Conselho Económico e Social.

 

Cavaco tirou-lhe a palavra? Já a formiga tem catarro – pensaria ele.

No fundo, há aqui um percurso.

 

Quando é que se lembra de, pela primeira vez, ter pensado que queria ser primeiro-ministro?

Sinceramente não me lembro de ter pensado nisso. Para se ser primeiro-ministro, ao contrário do que se julga, não sei se tem mesmo de se querer. Acho que tem de se sentir o dever ser, e não tanto o querer ser. Uma das minhas surpresas na política foi ver a quantidade de pessoas que se acham dotadas para serem primeiro-ministro: nunca imaginei!

 

Isso, em todos os partidos, PS, PSD?

Sim. No CDS também parece que há um. [riso]

 

Acha mesmo que talvez não seja preciso querer muito para se ser primeiro-ministro?

Quem quer muito, tem probabilidade de lá chegar. Mas não sei se isso é bom. Para se ser primeiro-ministro é preciso achar que se deve ser.

 

É um imperativo ético.

É. Não sei se o querer é um requisito. [O querer] pode ser uma desqualificação. Às vezes é-se [político] porque se acha que se deve ser, porque se tem essa obrigação para com a sociedade. Muita gente não se revê nesta posição, acha que é um moralismo. Precisamos mais de gente que acha que tem a obrigação de ser do que de gente que quer ser.

 

Se há tantas pessoas que gostariam de ser primeiro-ministro, o que é que faz que uma o possa ser e outra não?

Não sei dizer. Há também o factor aleatório. José Sócrates nunca teria sido primeiro-ministro se tivesse sido líder da oposição mais tempo. O Prof. Cavaco Silva chega a primeiro-ministro depois de quatro meses de liderança.

 

São duas situações atípicas.

Todas são atípicas. Na política, como estes episódios do Egipto mostram, o imprevisível acontece sempre. Barbosa de Melo dizia, logo a seguir ao 11 de Setembro, numa conferência, que a única certeza na História é a imprevisibilidade. Há uma dose de imprevisível em todos estes trajectos, embora a sorte ajude os audazes. O empenhamento pode resultar de uma vontade de ser primeiro-ministro, ou pode resultar de se entender que se tem a obrigação nesse momento de passar por essa provação. Que é uma provação. O exercício da política e de cargos políticos de relevo é um sacrifício pessoal enorme. Mesmo para as pessoas que gostam muito e que querem muito.

 

Se não tivesse perdido as eleições para Passos Coelho há um ano, era o seu nome que hoje era falado para ser primeiro-ministro nas próximas eleições. Pensa muitas vezes nisso?

Não, não penso muito. Quando fui candidato estava consciente de que muito dificilmente seria vencedor. Desde o primeiro dia que tinha noção de que podia perder.

 

O que é que o fez perceber isso?

Não me candidatei em alturas em que ainda era, talvez, possível ganhar. Em Outubro, por exemplo. Fui muito instado a isso, por muita gente. Também instei alguma a fazer isso – não fez. Quando o fiz, estava plenamente consciente, achei que era uma obrigação, fornecer uma alternativa. Nisso, não estou minimamente arrependido.

 

Ganhar não era a questão central naquele momento?

Não era a questão central.

 

Mas é claro que quando se vai a jogo é para ganhar.

Mas ainda hoje me pergunto se queria mesmo ganhar, embora soubesse que ia perder. Isso contribuiu de alguma maneira. Muita gente, que estava muito empenhada em que eu ganhasse, tinha dúvidas sobre se eu queria verdadeiramente ganhar. Isto é uma confissão.

 

O que é que está por trás desse “não sei se queria ganhar”? Que leitura faz disso hoje, passado um ano, sobre as eleições internas?

Voltando ao inicio deste capítulo da nossa conversa: saber se temos a obrigação ou não de. Mesmo que achemos que para nós era melhor estar noutra situação. Se temos ou não essa obrigação para com a sociedade e para com os ideais em que acreditamos. Há coisas de que falei nessa campanha que valia a pena, hoje, recordar. Fui a única pessoa que disse que era preciso aumentar impostos. Falei muito na questão da educação, da agricultura. São agendas que, independentemente da agenda económico-financeira, deviam estar já tratadas pelo PSD e não estão. Há um património ideológico, de causas, que estão na génese dessa candidatura, e que estão disponíveis para que o PSD as aproveite nesta conjuntura, que espero que conduza a actual liderança à governação de Portugal. Desejo isto sinceramente. Mas há ali muita coisa que não foi partilhada pelos candidatos em disputa.

 

No seu livro, editado cerca de seis meses depois das eleições, falou de novo, essencialmente, de ruptura, que foi a palavra-chave da sua candidatura.

O país precisa de um rompimento. Uma simples mudança não dá horizontes de recuperação.

 

Acredita nessa ruptura quando assistimos, como nas eleições presidenciais, a um índice de abstenção elevadíssimo?

A abstenção é justamente porque as pessoas não viram ruptura.

 

Uma ruptura para um regime presidencialista, que é aquilo que defende?

O que defendo é que no actual regime devíamos ter um Presidente mais interventivo. Quando isso acontece, o regime funciona melhor. Não aconteceu na década de Sampaio, e não aconteceu suficientemente, apesar de ser um apoiante indefectível, com o Prof. Cavaco Silva.

 

Voltando ao ano passado, que foi um ano muito importante para si. Tanto quanto sei, Balsemão convidou-o para os encontros de Bilderberg. Foi antes ou depois da sua derrota?

Foi antes até da minha candidatura.

 

Bilderberg é um centro de discussão, de poder e estratégia. Muito poucos são convidados para ir lá. Sentiu que era o partido, que era um certo PSD, na pessoa de Balsemão, que estava a apostar em si, quando o convidou?

O Dr. Balsemão todos os anos convida pessoas diferentes.

 

Mas na iminência de haver eleições no partido, e de o senhor protagonizar…

Não sei o que é que o motivou a convidar-me. Mas se há uma pessoa que tem uma dimensão que o PSD nem sempre tem aproveitado, intelectual, ideológica, e até moral, embora não no sentido moralista do termo, é o Dr. Balsemão. Foi uma pessoa com quem tive o privilégio de lidar muito nestes últimos dois anos. Conhecia-o, mas mal.

 

Insisto: estavam a apostar em si, pensando que no futuro estaria no poder?

Não senti isso nesses termos. O que senti, e digo-o sem nenhuma imodéstia, é que tenho feito um esforço sistemático para pensar a política. Nomeadamente num livro que publiquei em 2009, O estado do Estado. [Os meus livros] não são livros para fazer campanhas. Um, por pura coincidência até surge na campanha das Europeias, mas estava combinado com a D. Quixote há muito tempo.

Há um diálogo que tenho tentado manter. Com pessoas como o Miguel Veiga, que muito admiro, e que pensa muito a política, embora com o seu código próprio, e muita gente nova; o Miguel Morgado, o Pedro Lomba, o Rui Ramos, o Henrique Raposo, o Pedro Mexia, a Sofia Galvão, o Nuno Morais Sarmento (que julgo que tem muito a dar ao país).

 

Temas dessa discussão?

Coisas como as redes sociais, ou o que vai ser a medicina nos próximos 20 anos, ou o que é a evolução da crise financeira, ou o problema da proliferação nuclear. Não se trata da cartilha dos programas banais que fazem as campanhas, mas das causas que um partido de centro-direita como o PSD deve abraçar.

 

Há pouco usou a palavra “desiderato”.

O português é para se usar. Nunca uso calão. Uma das razões é porque ele é o grande factor de empobrecimento do vocabulário.

 

Surpreende que use palavras como “desiderato” e que goste da música dos Van Halen ou dos Metallica.

Gosto desde muito cedo. Não são mundos inconciliáveis. Somos sempre figuras muito ecléticas. No Heavy Metal, um álbum dos Van Halen, de 1984, foi a minha primeira aproximação. Quando estudava loucamente na universidade, (no secundário não, mas na faculdade estudei muito, 13, 14 horas por dia, concentrado), tomava um banho às seis da tarde e ouvia na Rádio Comercial o Rock in Stock aos berros. E depois retomava no outro dia. Aquilo era o factor de relaxe. Se há uma coisa que gostava de ser era diseur. Actor, não, mas diseur gostava de ser.

 

Voltemos à política. O que é que aprendeu com a derrota?

Não sei se aprendi muito. Porque, em rigor, já me tinha sentido derrotado antes, no passado. Quando o PSD perde as eleições em 2005, quando o PSD perde as eleições em 2009. Não são derrotas pessoais, mas são derrotas.

 

Faz toda a diferença serem derrotas pessoais. Sobretudo se nas eleições para as Europeias o PSD teve uma vitória que se considerou que tinha sido grandemente sua. Não vamos escamotear o facto de ter havido, por causa disso, uma expectativa adicional em relação à sua prestação na disputa interna.

Apesar de tudo, os jogos estavam feitos. Era claro quem é que ia vingar, não havia dúvidas sobre isso, e para mim também não. A ideia da aprendizagem com a derrota não foi uma coisa penosa.

 

Apesar de ser tão expressiva a margem? Não chegou a ser vexatório para si?

Na minha opinião, 35 por cento não é uma coisa vexatória. Não tive essa experiência amarga, tive até um certo alívio. Depois tive a atitude que tenho tido: a preocupação de passar, não para a conspiração, mas para uma lógica de cooperação.

 

Ter um projecto que o resguardava – o projecto do parlamento europeu – fez com que se sentisse menos perdido?

Está a tocar no ponto nevrálgico. Estava aqui a omitir uma coisa, não voluntariamente: a minha experiência europeia, como experiência política, é a de que mais gostei, e aquela de que estou a gostar mais. Não tem comparação com nenhuma dessas que tive, incluindo a candidatura, a liderança do Grupo Parlamentar. Devo dizer que os debates com o Eng. Sócrates foram para mim momentos muito positivos de afinação. Coisa erradíssima: considerar que o Eng. Sócrates é um grande orador, um grande comunicador. Em termos retóricos, ideológicos, vocabulares, tudo. Uma pessoa que assistiu a um debate no parlamento britânico, ou que leu um discurso do parlamento britânico, pode perceber que aquilo é de uma pobreza franciscana.

 

Mas gostava das contendas com ele.

Gostava, para demonstrar essa pobreza, para demonstrar essa vacuidade.

 

Carisma, tem, ou nem isso lhe concede?

Concedo. Carisma tem, no sentido cristão do termo – o de todos termos carisma. Tem uma coisa sinceramente positiva: é extremamente trabalhador. Aprendeu imenso. Quem o viu como eu vi, na apresentação do programa do Governo em 2005, em que a pobreza não era franciscana, era confrangedora, e quem o viu um ano depois, dois, três, é um salto extraordinário. Reconheço que consegue passar de um registo frágil para um conhecimento dos dossiers relativamente exaustivo. Na fase inicial, existia uma certa arrogância, mas insegura.

Tive um certo prazer nesse challenge, que acabou por resultar bem e ser reconhecido.

 

Já passou tempo suficiente para poder confessar: nem antes do primeiro debate se atemorizou um pouco?

Não. Fui para a campanha das europeias sem medo nenhum, convencido de que ia ganhar. Fui para as eleições internas sem medo nenhum, embora consciente que era mais uma marcação e o oferecimento de uma alternativa a alguém que tem um certo percurso – o percurso das juventudes partidárias. Não conhecia a Dra. Manuela Ferreira Leite. Ela telefonou-me uma vez a agradecer uma referência elogiosa que lhe tinha feito num programa de televisão. Foi uma surpresa quando me ligou e me convidou para essa função. A relação com os colegas deputados, com os políticos, é extremamente difícil, são pessoas que se melindram imenso. (Mas estou a incluir-me nesse grupo!) Há muitos pequenos protagonismos, que é difícil gerir. Tudo isso me assustou muito [quando fui líder parlamentar].

 

Era um newcomer na política.

Continuo a ser, num certo sentido, é assim que sou visto por muitos dos meus colegas. Ou pelo menos um outsider.

 

Já está nos partidos há demasiado tempo para ser um outsider.

Tenho o pior dos dois mundos: sou um outsider para o partido e um insider para os de fora [riso]. Há uma coisa que nunca fiz, nem sei fazer: não sou pessoa de ir almoçar, jantar ou fazer telefonemas com os colegas. Não pertenço à política dos jantarinhos. Telefonar dez vezes à mesma pessoa, pedir desculpas, não faz parte de mim. Vou às reuniões, trato das coisas que tenho a tratar e depois vou para a minha vida, que não tem nada a ver com essas coisas.

 

Pergunta provocatória: e tem vida? A ideia que temos é que a sua vida é a política, que não faz mais nada senão trabalhar.

Na vida, nunca distingui lazer de trabalho. Para mim não há tempos sagrados e tempos profanos. Pode dar a ideia de que não tenho vida, mas tenho, como as pessoas que me são íntimas sabem. Desmultiplico-me em muitas coisas. Estou no Parlamento Europeu, estou a chefiar o departamento de Direito Público na minha sociedade de advogados, ainda vou dar, de quando em vez, umas aulas à Católica, tenho convites para conferências, escrevo imenso.

 

Porque é que trabalha tanto? Corre atrás de quê?

Não quero chegar a lado nenhum. É pelo gosto que as coisas me dão. E por um certo sentido de obrigação, de retorno. Costumo dizer que sou um cristão de cultura católica (não sou um católico no sentido mais tradicional do termo). Tenho fortes divergências com o pensamento moral da Igreja Católica.

 

É conservador, mas não moralista.

Não sou um conservador, sou um liberal. É curioso, toda a gente acha que sou conservador.

 

Porque é que acha que é assim?

O Pedro Norton foi apresentar este meu livro (uma apresentação muito interessante), e só o corrigi numa coisa: a dada altura diz que sou um conservador. Não sou. Tem a ver com o perfil psicológico e com o meu perfil físico.

 

Novo parêntesis: desde quando é gordinho?

Desde os dez, 12, 13 anos. Fiz dietas múltiplas, sempre com enorme sucesso. Sou muito disciplinado e cumpro rigorosamente. Mas depois aquilo descamba, com aquele efeito que todas as pessoas conhecem, quando se faz uma dieta e depois se recupera: passa-se sempre para um nível superior àquele em que se estava antes de ter feito a dieta.

 

Como é que isso marcou a sua vida? Pode parecer uma questão frívola e lateral, mas não é.

Não é uma coisa frívola. Num mundo em que o corpo conta tanto, o facto de uma pessoa ter uma compleição física que não é a esperada pela sociedade, dá-nos, para além de alguns complexos naturais, e de alguma frustração, a noção de que temos limites. Era um bom aluno, as coisas corriam-me bem, mas tinha aquele handicap. Não jogava bem futebol, não era o herói das raparigas todas. Isto dá-nos uma certa humildade.

 

E precisava de se afirmar pelo intelecto? Formou-se com 17 na Católica, não é coisa pouca. Era uma forma de se compensar e de se afirmar?

Podia ser, mas não é. Esse percurso já estava traçado mesmo quando era magro. Fui magro até aos 12 anos, apesar de ter um historial familiar de obesidade muito grande, do lado paterno, até com consequências trágicas do ponto de vista das mortes sucessivas ocorridas na família. Numas coisas somos bons, noutras não somos, e temos de aceitar as nossas limitações, viver com elas, tirar partido delas.

 

Acha que tem fama de conservador, também, por causa da sua compleição física?

Tem mais a ver com o perfil psicológico, com o discurso estruturado, com uma certa veemência.

 

E um certo ar arrumadinho e certinho, vamos dizê-lo com frontalidade.

É capaz de ser isso. Não consigo retratar o espelho com facilidade. Tenho boas relações com a Igreja em geral, mas muitos católicos, mais fundamentalistas, têm uma ideia de distância e reserva contra a minha pessoa. Pior do que uma pessoa que não acredita é uma pessoa que acredita, mas não pensa da mesma maneira. Essa é que é verdadeiramente perigosa, essa é que pode tresmalhar as ovelhas do rebanho.

 

Outra das razões por que as pessoas pensam que é conservador é porque a sua facção no PSD é conservadora e envelhecida. Manuela Ferreira Leite, Cavaco, Pacheco Pereira…

O Pacheco Pereira é um mau exemplo, é quase um libertário do ponto de vista dos costumes. Manuela Ferreira Leite é uma pessoa muito mais aberta do que aquilo que se supõe, é diferente da imagem que se quis fabricar dela – e isto com o condicionamento socrático da comunicação social, que é como a Terra a mexer-se… E pur se muove. Apesar de tudo continua aí, mesmo que não tenha os mesmos traços graves que tinha em 2006/7/8, e que teve condicionamentos claros em 2009. Tenho por ela uma admiração e um afecto sem limites. Acho que já começa a ser feita justiça à referência que ela é.

 

É uma pessoa fundamental no seu percurso.

Há pessoas que marcaram muito a minha vida; uma foi Canotilho, outra Manuela Ferreira Leite, outro Lucas Pires, de quem também fui muito próximo.

 

Começámos por falar de Gomes Canotilho e das pessoas que o convenceram de que podia ser tudo. Voltou a empenhar-se na política na universidade?

Na universidade, é quando me empenho menos.

 

O que é que queria, ser um académico?

Quis ser astrónomo, por causa do Espaço 1999. Tinha uma enorme admiração pelo Capitão John Koenig e esperava ter uma namorada igual à Dra. Hellen. Mas depois quis ser professor. A coisa que ainda mais gosto de fazer é dar aulas. Nem a feitura de um discurso. Cheguei aos 43 anos sem nunca ter lido um discurso escrito por outros. Agora está na moda ninguém ler discursos… Esse exercício de fazer discursos confronta a pessoa com as suas próprias limitações. Há ideias que não resistem ao teste da escrita.

Fui para assistente da Católica. Embora houvesse sempre a secreta esperança de que a política podia reaparecer.

 

Não havia ninguém à sua volta metido na política?

Havia o Diogo Feyo, mais do CDS. O Diogo Vasconcelos, uma pessoa empenhadíssima, também andou lá na Católica.

 

Passou pelo escritório de Lobo Xavier, no Porto.

Tinha uma grande admiração, e tenho, pelo Dr. Lobo Xavier (de uma inteligência e cultura avassaladoras). [Tinha escritório com] Osório de Castro, Verde Pinto e Vieira Peres. Digo isto sem medo das palavras: a pessoa mais inteligente que até hoje conheci é Osório de Castro. Está num campeonato que não é dos mortais.

 

Lobo Xavier não o puxou para o CDS?

Na altura, como colega do Nuno Pinheiro Torres, de quem hoje sou muito amigo, cheguei a ser militante do CDS. Não se sabia bem se tinha sido, se não tinha sido. Foi uma das polémicas da campanha. Depois vim a descobrir que o Passos Coelho tinha sido militante do Partido Comunista e não tinha dito nada. Valia a pena ter feito esse registo de interesses, mas entendeu-se que não se devia. Não me lembrava mesmo se tinha sido [ou não do CDS]. Sei que colaborei com o Lobo Xavier, gostávamos que ele fosse líder, éramos discípulos. Mas assim que, em 1998, o Paulo Portas rompeu a AD, de que era grande adepto, escrevi-lhe uma carta a dizer que saía do partido porque não concordava com a atitude que tomou relativamente ao Marcelo. Ainda me ligou uma ou duas vezes, mas nunca falei com ele. Em 2001, o Dr. Rui Rio, por intermédio de um antigo aluno meu, convida-me para um Conselho Consultivo do PSD - Porto e para escrever o seu programa [de candidatura à Câmara]. Um programa sumário, porque aquilo eram 900 páginas; reduzi-as a 30, no mês de Agosto, em casa.

 

Uma tarefa ciclópica.

Estive nessa campanha de alma e coração. Rio quis sempre que trabalhasse com ele, mas não tinha grande apetência. E depois surge o convite de Aguiar Branco para secretário de Estado, em 2004. Inicialmente o convite não era para secretário de Estado, mas disse-lhe: “Para outras coisas não quero, porque sinto que não me trazem nenhum valor acrescentado”.

 

Acordou outra vez para o sonho da política.

De um momento para o outro, quando nada fazia esperar. Tinha acabado de ficar sócio do escritório em que estava. Fui secretário de Estado, o Governo caiu, fiquei deputado. Comecei a fazer algumas intervenções. Entretanto mudei de escritório e tive a felicidade de encontrar um dos juristas mais completos que conheci, o José de Freitas, meu sócio da Cuatrecasas - Gonçalves Pereira. Montei um departamento de direito público, no Porto, com seis pessoas, só a trabalharem em direito administrativo, que é de longe o maior fora de Lisboa, e que é também o melhor, mas isto fica-me mal dizer.

 

Politicamente, o que é que o faz dar nas vistas?

Marques Guedes, que era o líder parlamentar na altura de Marques Mendes, convida-me para fazer o discurso do 25 de Abril de 2007. Julgo que isso muda a minha carreira política. Acabou por criar uma dinâmica que esteve na origem de ter sido líder parlamentar.

 

Ainda sonha ser líder do PSD, quem sabe primeiro-ministro?

Não sonho. Neste momento é um assunto que não ponho. Estou muito empenhado nesta minha dimensão europeia. Os oito deputados do PSD estão a fazer um trabalho notável.

 

Também sabe que é suficientemente novo para esperar pela sua vez.

Claro. Já lhe disse que tenho sonhos, não tenho projectos. Nunca nenhuma dessas coisas foi programada. Vivo cada uma com uma grande intensidade, faz parte do meu ADN. Outro dia tive de fazer uns versos para o livro de curso da 4ª classe de uma sobrinha minha, que tem dez anos. Perdi um dia inteiro a fazer os versos. Gosto de pôr tudo o que tenho nas coisas que faço.

 

Isso é um verso de Pessoa: “Põe tudo quanto és no mínimo que fazes”.

Não estou a descrever isto como uma virtude, é uma característica. Se vou fazer uma conferência, preparo-a com todo o gosto. Se faço uma peça jurídica, sou capaz de meter uma frase do Júlio César, do Shakespeare, do Camões. Tudo isso me preenche.

 

Quando os seus pais lerem esta entrevista, o que é que eles vão achar? Vão reconhecer este como o filho deles ou existe um que não aparece de todo nesta entrevista?

Há-de haver um que não aparece de todo nesta entrevista. Até mais do que um, não tenha dúvidas.

 

Resguarda-se muito?

Sim. E há-de haver algum, ou alguns, que eles também não conhecem. E alguns deles que eu também não conheço. Isso faz parte do mistério da nossa existência, e do nosso encanto. Temos sempre mundos que são só nossos. Isto é inerente à natureza humana, não é uma coisa singular. Mas acho que não vão ter grandes surpresas.

 

Qual deles lê mais e segue mais a sua carreira pública?

É o meu pai. A minha mãe é o adversário da minha carreira política. É uma pessoa que tem uma enorme influência naquilo que faço e penso. Aos 43 anos já se pode dizer, sem receio: o meu pai é um fã, sempre apoiou qualquer coisa que eu faça. Não com deslumbramento, mas como supportive. No caso da carreira política, a única coisa em que senti o apoio familiar foi na candidatura às Europeias. Achavam, o que é verdade, que o Parlamento Europeu era uma etapa de formação. Não houve nenhum sítio nem escritório onde aprendesse tanto como no Parlamento Europeu. Depois de um ano daquilo uma pessoa não é a mesma. Tem outro mundo, outra maneira de ver, aprende coisas extraordinárias.

 

Posso fazer uma pergunta íntima? Pensa casar e ter filhos, ou isso não faz parte dos seus planos?

Não sei. Gostava, mas julgo que me acontecerá como o resto: quando acontecer, acontece, se acontecer. É uma coisa que me preocupou mais no passado, há dez, 12 anos. Achava que ia acontecer, e que devia acontecer. Foi uma coisa que desapareceu das minhas preocupações.

 

Preocupava-o a possibilidade de isso não acontecer?

Tinha pena se não acontecesse, e hoje não tenho. Nunca desisti da dimensão pessoal. Mas alimentar esse sonho, como um sonho, não. Tenho muito tempo sozinho e muito tempo com gente. Estar fechado em casa, muitas vezes a ver televisão de baixa qualidade, é uma coisa que me liberta imenso.

 

E a comer gelado.

A comer gelado, não. A fazer asneiras gastronómicas. Mas não vou confessar quais. Há uma série, “As aventuras do Merlin”, o feiticeiro, que se passa quando ele tinha 19, 20 anos, ainda o Rei Artur não era rei. Na Sic Radical, aos fins-de-semana. Adoro ver aquilo.

 

Um miúdo.

É um lado infantil.

 

Deprime, às vezes? Ou não tem essa propensão?

Não acho que tenha. Quando tinha 29, 30 anos, tive um período de um ano em que estive muito em baixo. Estava fechado, só a investigar. Em casa, a ler autores alemães e franceses, ingleses e espanhóis, dias e dias a fio. Às vezes tenho, como toda a gente, desgostos, de amor e sem ser de amor, e esses também nos fazem ir abaixo. Mas uma pessoa pode estar triste sem estar deprimida. Não sou uma pessoa deprimida, mas também não tenho um optimismo antropológico como o Mário Soares.

 

Parece sempre muito confiante, todo o seu percurso é ascensional. E inseguranças?

Não acho que seja ascensional, é muito variado. Inseguranças, há bastantes, mais do domínio pessoal. Não me custa nada reconhecer que há – faz parte da minha idiossincrasia.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011