Boaventura de Sousa Santos
Boaventura de Sousa Santos escreveu um Ensaio Contra a Auto-Flagelação, que tem Portugal no centro do furacão. As palavras centrais do discurso: identidade, crise, esperança. Os protagonistas: a Grécia, as instâncias internacionais, o português (suave) modo de ser numa Europa belicosa. Quem é que leva uma corrida? Cavaco, a banca, Merkel e Sarkozy, os que têm olho rútilo nos lucros, mesmo que isso implique o desmoronamento de uma economia, e consequentemente de um país, e consequentemente de um povo.
Portugal vive dias especialmente inquietantes. Boaventura diz que cada geração vive o seu momento como se fosse o último. Somos, como numa canção de Chico Buarque, uma gente que tem medo de morrer na contramão atrapalhando o tráfego. E falamos, mais do que nunca, desse medo, da urgência, das nossas idiossincrasias. Pensamo-nos. E pelo meio dedicamo-nos ao nosso desporto favorito: a fustigação.
Com o sociólogo Boaventura Sousa Santos, iniciamos uma série de entrevistas em que o nosso foco, mais do que qualquer outro, é Portugal e os mecanismos do Poder. Não falámos, por isto, com ele, e como seria habitual neste registo de entrevistas, das razões porque divide os meses entre Portugal e os Estados Unidos, da sua imensa popularidade no Brasil, das razões porque a sua lupa incide sobre o homem na esfera social, e muito sobre a sociologia do direito. Doutorou-se na reputada universidade de Yale. Mantém um sotaque de Coimbra de quem faz daquela terra, ainda, a sua terra.
(Preâmbulo: grava a entrevista para ficar com um registo para si? Não é a primeira vez que me acontece, mas foi quase sempre com estrangeiros.
É por vício profissional. Entre o jornalista e o sociólogo há alguma convergência: usam os mesmos métodos de recolha de dados.
O testemunho.
No projecto para o doutoramento que fiz, vivendo nas favelas do Rio de Janeiro, não podia usar gravador. Estávamos num período de ditadura. Quase não podia entrevistá-los com papel na mão. Tinha um diário de campo, acabava as entrevistas, metia-me num botequim e transcrevia tudo de cabeça. Quando é possível, o gravador capta uma presença da minha vida. Posso, amanhã, pô-la na minha página.
Este pormenor pode dizer coisas do que são os portugueses – e já entro no âmbito da entrevista. É normal sentirem-se postos em causa, que a acção do outro é questionante de quem são e do seu espaço. Quando alguém diz: “O teu trabalho não está bem feito”, a reacção, frequentemente, é: “Porque é que me estás a atacar?”.
Não é nada o caso. Desligo a minha gravação, se fica mais à vontade. Não tenho medo que me ponha em causa.
Não. Seria eu a pessoa posta em causa. Mas não me incomoda nada que grave.) Acha que Portugal está num particular “momento de perigo”, que é uma expressão que usa no Ensaio Contra a Auto Flagelação? Se olharmos para os últimos séculos, Portugal parece estar sempre num momento de agonia, ou de pré-agonia, na véspera de qualquer coisa que vai suceder e que se imagina salvífica, e que é sempre protelada.
Qualquer geração tem tendência a ler o momento que vive como um momento de perigo, como uma situação única, sem precedentes. Se analisarmos a história contemporânea de Portugal não é essa a leitura que colhemos. Apesar de todas as crises e conflitos, não deixa de ser evidente que a sociedade portuguesa, neste século [XX], teve progressos extraordinários. Um discurso extremamente crítico das suas condições, alertas para perigos abissais, não impediram a sociedade de fazer o seu caminho. Mas não soubemos pactuar grandes transformações. Nenhuma das independências deste vastíssimo império colonial que tivemos pôde depender de negociações tranquilas, programadas, pactadas entre a potência colonial e as colónias. O mesmo sucedeu com os nossos aliados – fosse a Inglaterra, fosse a Alemanha – no final do século XIX.
Conseguimos impor-nos – expressão disso é a maneira como nos instalámos nos territórios que foram sendo desbravados durante a Expansão. Mas, historicamente, parece haver uma crónica dificuldade em negociar com o outro. Estamos sempre no tudo ou nada.
Negociámos muito bem no mundo. Não negociámos bem na Europa. Os nossos comerciantes, os que quiseram expandir o império, em nome dos nossos reis, fizeram-no negociando muito. Gungunhana, antes de ser um celerado nas mãos de Mouzinho de Albuquerque, foi um rei com o qual Portugal negociou e teve embaixadores. Foi um tipo de colonialismo assente na negociação.
A dificuldade em negociar com a Europa: é uma dificuldade em negociar com iguais?
Com aqueles que não são iguais. Na Europa nunca houve iguais. E por isso houve aqui tanta guerra. E por isso temos de zelar tanto por ela. É um continente violento, de lutas fratricidas e com duas guerras mundiais no mesmo século. O que tem havido sempre é hierarquia. Entre países do norte, países do sul, países do ocidente, países do leste, com situações de colonialismo (o da Inglaterra sobre a Irlanda, por exemplo). Desde muito cedo Portugal e Espanha tiveram um papel dominante que termina, no nosso caso, no final do século XVI. Dividiram o mundo entre si, ninguém lhes disputava o poder. Quando entram em crise, são outros os países que começam a dominar o mundo.
O que é que faz que uma nação exerça domínio sobre outras? É sobretudo o aspecto financeiro? Quem manda é quem tem dinheiro?
Não quer dizer que seja capital financeiro. Vai haver sempre uma luta entre aqueles que dominam o capital produtivo e aqueles que dominam o capital financeiro. Até muito recentemente, até 1980, dominou sempre o capital produtivo. O capital financeiro é o que ajuda o capital produtivo a criar riqueza. Fica com uma parte – as comissões, os juros – mas sempre foi uma instância de segunda linha, ao serviço do capital produtivo, e fortemente regulada. Em 1960 um banco de Nova Iorque não podia emprestar em New Jersey – que é do outro lado do rio. Veja o nível de regulação. Temia-se que este capital financeiro, desregulado, se sobrepusesse ao capital produtivo. Foi exactamente o que aconteceu nos anos seguintes.
Portugal, como perdeu essa hegemonia, ficou dependente.
A história da dependência é antiga. Conseguimos furar este círculo?
Não furamos. Temos é de negociar melhor as nossas dependências no sentido de criar interdependências. Isso é que não temos sido capazes de fazer bem.
Foi muito importante que Portugal se tivesse libertado em 1974 do fascismo e em 75 do colonialismo. Era um país pária. Estava duplamente rejeitado pela Europa de então – porque era fascista e colonialista.
Espanha teve uma ditadura com o peso do franquismo, mas o que aconteceu a seguir foi muito diferente do que aconteceu em Portugal. No pós-franquismo, os espanhóis juntaram-se para pensar o que queriam para Espanha e como fazê-lo; em Portugal houve uma pulverização de partidos no pós-25 de Abril, uma desunião, o PREC. São duas atitudes diferentes face a um momento de ruptura.
Tinha muitos amigos em Espanha, que conhecia dos EUA ou de Inglaterra, e que foram pessoas importantes no processo, alguns ministros. Várias vezes discutimos num parador. Queriam ouvir-me sobre o que se estava a passar em Portugal. Para mim, a grande diferença entre Portugal e Espanha foi causada pelo facto de nós termos colónias e eles não. Não tínhamos condições para fazer uma continuidade. Os espanhóis puderam fazer o Pacto de Moncloa, que foi uma forma de se articularem em relação ao futuro. Em 1961, Franco entendeu que devia abrir a economia espanhola ao mercado mundial e ao investimento estrangeiro. Foi nessa altura que começou a guerra colonial e que Salazar fecha [o país].
Salazar escreveu uma carta à Coca Cola, citada no livro Os Portugueses de Barry Hatton: “O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que detesto acima de tudo, o modernismo e a famosa efficiency.”
Ele queria organizar uma economia de guerra. De todo o modo, quer Portugal, quer Espanha, estiveram numa situação de inferioridade em relação ao norte da Europa a partir do século XVII. Isto deu origem a muitas formas de colonialismo interno. Não colonialismo no sentido técnico, mas de concepção do outro como sendo inferior. Os frades franceses e alemães diziam de nós o que nós dizíamos dos selvagens africanos ou dos indígenas latino-americanos. Que éramos preguiçosos, lascivos, pouco higiénicos, que comíamos com as mãos, que as casas eram tegúrios.
Apesar de tudo, é um pouco diferente o que dizem hoje de nós os franceses e os alemães. Mas temos fama de preguiçosos. Somos assim?, ou somos simplesmente desorganizados?
Não somos. São estigmas. A estigmatização do outro ocorre em função de comparações que não toleram a diferença. Se os alemães têm poucos impulsos sexuais e transformam isso numa vantagem, são capazes de dizer que somos lascivos. O que disse a Sra. Merkel sobre as férias [dos portugueses] é ofensivo e não é verdade. Segundo estatísticas da OCDE que revelo no livro, trabalhamos 8,9 horas por dia.
O problema não é a quantidade, mas a produtividade.
Temos um problema de produtividade – é essa a questão. Desde há cinco séculos, só durante 12 anos Portugal esteve confinado a um rectângulo ibérico. Quando nos lançámos nas descobertas em 1415 – e é impressionante como o império esteve em três continentes – imediatamente nos extrovertemos. É aí que se dá o primeiro golpe na nossa agricultura. Depois mantivemos as colónias até 1974. Em 86, já cá não estamos, já estamos na Europa.
E isso depois de séculos nos quais se investiu nessa extensão imperial, e usufruiu do que aí vinha. Há efeitos ainda visíveis do desinvestimento que foi feito neste rectângulo, nos recursos próprios?
Como tínhamos todo este território, que o Papa dizia que era nosso, à disposição, porque havíamos de nos preocupar com as serras do Marão? O que pensávamos era que as riquezas que traríamos de fora haveriam de desenvolver aquelas regiões.
Nenhuma riqueza do Minho seria tão valiosa quanto a pimenta da Índia…
Ou o Ouro de Minas Gerais, o açúcar do Brasil, os escravos. Foi a grande ilusão, a de que não precisávamos de um centro produtivo. Tudo isto é antes do século XIX. Com a revolução industrial, as potências europeias interessam-se por África, precisam das suas matérias-primas. Carvão, minério, algodão. Queriam desenvolver os seus territórios, a Inglaterra, a Alemanha, a Itália. Portugal, que não tinha feito a revolução industrial, não tinha este imperativo. Os nossos colonizadores, depois da conferência de Berlim (em 1894/5, que faz a divisão de África), e do Ultimato, sobretudo em Moçambique, queriam fazer uma administração colonial “à inglesa”. O Terreiro do Paço não tinha essa necessidade endógena de explorar as colónias dessa maneira. António Ennes, que diz que Inglaterra, que administrou a Índia, administra melhor do que nós, sai amargurado; e Mouzinho de Albuquerque suicida-se.
“Fazer à inglesa”. Temos a ideia de que o ideal é fazer como se faz lá fora. E somos manifestamente incapazes de fazer dessa maneira. Ou porque não aprendemos, ou porque, simplesmente, não somos assim, temos outra matriz. Mas nunca se pensa em potenciar características próprias (como se fossem recursos naturais).
Tem toda a razão. Devemos fazer à portuguesa e bem. Para isso, é preciso valorizar o que temos de positivo.
E então?
Podemos ser preguiçosos, lascivos…, digam tudo o que quiserem. Mas nós não destruímos a Europa duas vezes no mesmo século. Nós não matámos seis milhões de judeus e ciganos. Isto não se pode dizer? Eu digo! Os alemães, que são a nossa referência, podem ser a nossa referência para tudo? Quando avaliamos um país, não podemos reduzi-lo a uma cifra da economia, que é o que domina hoje o comentário. Os países não são só negócios, as pessoas não são só negócios. Os países bem organizados: também são os países como mais alta taxa de suicídio. A Finlândia tem a mais alta taxa de suicídio. Será a organização que traz felicidade? A felicidade não conta? Nós não temos uma extrema-direita agressiva, xenófoba.
Agressivos? Pelo contrário, parecemos apáticos, amorfos. Parecemos?, estamos?, somos?
Agradeço-lhe que não me faça cair no preconceito dos brandos costumes. Não somos um país de brandos costumes. Temos massacres do colonialismo por esclarecer. Alguns foram crimes cometidos contra a Humanidade. Não podemos pensar que fomos benévolos… O que é que significa parecer? O que dizem publicamente de nós. Numa tradição muito portuguesa, o comentário é negativista, miserabilista, humilhante...
Auto-depreciativo.
Auto-destrutivo. Isto merecia um estudo sociológico. Criou-se a tradição do estrangeirado em terra. Ou seja, estas elites estão em Portugal mas não vivem em Portugal. Vivem no mundo dos jornais, da comunicação, não fazem um trabalho útil. Por esse tipo de análises, tornam-se paralisantes. De facto, cria-se a apatia.
Dizemos de nós que somos apáticos quando olhamos para estas imagens de violência na Grécia. Presumimos que em Portugal, face a um quadro de austeridade semelhante, estas coisas não acontecem. Os portugueses, com medinho, comem e calam.
Se um sociólogo, não é preciso que venha de Marte…, mas da Islândia, analisar a situação dos países do sul, não vê muitas diferenças. São capazes de maximizar o que há de comum. Mas isto são as lentes. Se pusermos uma lente mais forte, as diferenças são maiores. Apáticos? O treino de sociólogo faz-me não psicologizar. Foi a trajectória histórica que fez dos portugueses um povo que é capaz de acessos de grande violência, mas que em geral evita a violência. Há países assim. Trabalho num outro país, o Equador, onde morreram dez pessoas num golpe de Estado contra o presidente Correa, e foi uma comoção nacional! Os equatorianos dizem: “Em termos de dissensão política, não nos matamos”. Ao contrário dos bolivianos ou venezuelanos, que tiveram a mesma colonização espanhola e estão ao lado. Criaram aquele micro-clima de paz, de luta pacífica.
Nós temos também esse micro-clima de paz? Basta pensar no modo como se fez a transição para a democracia, com tão pouco sangue derramado.
Sem dúvida. A troika pediu para falar comigo e falei com eles. Já houve situações em que o Fundo Monetário Internacional reconheceu que não calibrou bem as medidas. Apertou demasiado e tive efeitos contraproducentes. Foi assim na Tanzânia e na Indonésia. Pediram desculpa, mas não indemnizaram.
Quando analisamos as medidas, mesmo que sejam semelhantes, como são aplicadas em Portugal, um a dois anos depois, e como a situação da Grécia se deteriorou, quer eles quer a Europa vão ter uma atitude diferente. Porquê? Porque o tempo conta no capital financeiro. Não lhes interessa que Portugal tenha uma deterioração do tipo da que tem a Grécia. Porque depois não há nada que vá parar a Irlanda, a Espanha…
É o perigo do contágio que nos pode safar?
O perigo do contágio tem-nos prejudicado muito. Veja os juros dos mercados secundários da Dívida. Mostram o que vamos ter que pagar quando voltarmos aos mercados. É o aspecto mais perverso das agências de rating. Não é pelo contágio, mas pela lição que a Grécia está a ter. No momento em que a Grécia entrar num sistema de desobediência civil... Não são só as greves; as pessoas deixaram de pagar portagens, o metro, as taxas moderadores (se as tiverem), deixaram de pagar qualquer serviço público. Isto entra num estado de implosão caótica que desregulariza as contas. Vai haver uma enorme crise fiscal. As contas foram feitas [no pressuposto de que] as pessoas pagariam as suas portagens, contas do metro, o médico. O FMI deve estar neste momento a fazer contas… Se apertarmos o torniquete a um ponto que o país reage desta maneira – totalmente disfuncional – já não se pode garantir nada. Os défices das empresas públicas irão todos ao ar se tudo passar a ser gratuito.
A segunda coisa que nos diferencia da Grécia, e que considero mais importante, é que a Grécia tem uma tradição de militância política que nós não temos.
É o berço da democracia. Razão longínqua, mas estruturalmente importante?
Está no imaginário das pessoas. Admito que se sintam mais humilhados pela forma como estão a ser tratados pela Europa. Delinearam esta matriz democrática. Nos livros escolares de todo o mundo fala-se da democracia ateniense. A Grécia tem uma das classes operárias mais militantes. Tiveram uma guerra civil, uma ditadura mais forte do que a nossa, embora mais curta (1967/75). Nota um anti-americanismo que não encontra em Portugal. Há o período em que estiveram sujeitos ao império otomano, que tem uma construção de Estado diferente da nossa. E fizeram todo o tipo de falcatrua para entrar na União Europeia, que nós não fizemos. Portanto, não é por sermos mais apáticos: a nossa situação é diferente. Isto não é uma grande consolação. Os mercados não olham para estas diferenças, olham para os seus lucros.
Quando falava do contágio, estava a pensar, por exemplo, na Espanha. Considerando que uma percentagem importante das exportações espanholas se destina a Portugal, se cairmos, Espanha não tem como não ficar abalada. Isto ajuda a manter a ilusão de que estamos safos?
Nesse caso, é o contágio pela positiva. A lição da Grécia pode ajudar-nos. O que aconteceu foi um demasiado egoísmo e subserviência dos governos francês e alemão aos seus bancos. Isto não teria sido possível se os bancos estivessem regulados como os de New Jersey em 1960.
Ou seja, quem manda é a banca?
Quem manda é a banca. Se é muito mais fácil ganhar lucros especulando com a possível bancarrota de um país, porque razão vou emprestar dinheiro a uma empresa, o que pode resultar bem ou mal, e que dá lucro daqui a dez anos? Na especulação, os lucros são instantâneos. Não devíamos admitir – é uma reivindicação que eu e muitos fazemos – que a Dívida Soberana esteja sujeita aos mercados. Devíamos ter o mercado central a emprestar directamente aos Estados. Não faz sentido que o mercado central empreste aos bancos privados, que depois emprestam ao Estado. Empresta a um juro barato, e depois os bancos privados emprestam a um juro alto. Acho que [a França e a Alemanha] actuaram tarde porque puseram os seus interesses políticos e dos seus bancos acima do interesse da Europa. Faltaram líderes.
Porque é que falharam?
Vamos à história deles. São duas pessoas, Merkel e Sarkozy, que vieram para a Europa Ocidental, mas que não são da Europa Ocidental. Ele é um filho de imigrantes de Leste, ela é da Alemanha comunista. Têm em relação a esta Europa a ideia de serem mais papistas do que o Papa.
Quer dizer que a história pessoal importa significativamente?
Armadilhou-me… [riso] Ia dizer que isto não é importante, mas que deve ser considerado. Eles não viveram aqui os problemas que resultaram da Segunda Guerra Mundial. Os seus pais viveram. Não, isto não tem muita importância, mas não deve deixar de ser lembrado. Se são líderes que não têm a estatura de um Jacques Delors, um De Gaulle é também porque os contextos históricos em que surgem são diferentes. A União Europeia foi possível por causa do trauma da Guerra. A solução encontrada para a Primeira Guerra Mundial conduziu ao nazismo. Isto é, sacrificou-se com medidas punitivas brutais a Alemanha, de maneira que a Alemanha não podia nunca recuperar economicamente. Veja os paralelos que se podem estabelecer. John Keynes escreveu um texto em 1919 chamado Os Efeitos Económicos da Paz, no qual dizia: “Com estas dívidas a Alemanha nunca vai levantar a cabeça. Isto é muito perigoso para a Europa”. Em 1953/54 negociou-se a dívida alemã e perdoou-se metade da dívida. A Europa saía da guerra com milhões de mortes, destruída – era preciso unir-se.
Segundo efeito: a Guerra Fria. Do outro lado estava o comunismo. Em 1954/55, pensava-se que o comunismo tinha grandes probabilidades de tomar o resto da Europa. Não eram conhecidos os crimes do estalinismo. Eram conhecidos por parte dos comunistas. O resto [do mundo] via como é que um país atrasado se transforma num país desenvolvido. A Europa, com a ajuda dos EUA, tenta mostrar que é possível um capitalismo europeu, e temos o Plano Marshall.
Portugal não teve uma devastação como aquela que sucede a uma guerra; mas está numa situação em que tudo parece precisar de ser refeito. Temos um tecido social dizimado e a perspectiva de que tudo pode piorar. Temos uma brutal falta de auto-estima. E, como se fosse um capital residual, precisamos de ter um fundo de esperança para levantar a cabeça e lidar com isto.
Isto tem safa. Essa pergunta – a da viabilidade de Portugal – põe-se há cinco séculos. Nos piores momentos, a posição dominante era a de que não era viável. No final do século XIX há muito a ideia de que Portugal tem de se anexar à Espanha (o famoso iberismo). Isso tem sido um leitmotiv. Portugal tem de ir buscar as coisas boas que tem, lutar contra essa [baixa] auto-estima. A gente tem de ter uma relação cordial com Portugal. Uma relação cordial que se tem com alguém com quem nos sentamos, amigavelmente, e a quem perguntamos: “Como é que nos safamos disto?”
Respostas?
A primeira coisa é analisar bem o que se passou nestes últimos tempos. Houve um grande desperdício e uma grande corrupção dos fundos estruturais. Mas vamos ver os aspectos positivos. Nos últimos dez anos demos um salto tecnológico notável. Somos o país que produz mais doutoramentos na área das ciências, na Europa (em comparação com a população). Estamos a dedicar 1,7 do PIB à investigação e desenvolvimento científico. Significa que estamos a criar as condições para uma renovação da especialização da nossa economia. Não quer dizer que vamos deixar de produzir sapatos ou têxteis; vamos é produzi-los com mais valor acrescentado. O nosso bloqueio? A nossa economia não está preparada para absorver esta tecnologia. Mas temos em Coimbra uma grande incubadora (o Instituto Pedro Nunes, que já ganhou prémios mundiais) onde jovens conseguem, numa sala, ser fornecedores da NASA. Leva tempo.
Em segundo lugar, diria que o país tem condições climatéricas e de paisagem importantes para fixar gente de qualidade nas universidades e nas empresas. Eu vivo quatro meses por ano nos EUA. Vejo o que a minha cidade, Madison, faz para atrair bons executivos de empresas e bons professores. O “nosso” lago, os trajectos para andar a pé e fazer jogging, não ter nunca ali existido um buraco de ozono… Em Portugal temos condições, mais do que em qualquer país na Europa, para isto; mas o país não se pode estragar.
Já está muito estragadinho.
Já. Já tem buracos de ozono por todo o lado. Mas é reversível. É tão bom que é difícil estragar isto tudo. São condições de fixação para nós. Sou director de um centro com cento e tal investigadores; dos que trabalham em full time, a maioria são estrangeiros. Nove italianos, dois austríacos, um moçambicano, um brasileiro, um espanhol… Gostam das pessoas, da comida, do ambiente, uma certa alegria de viver, uma certa festa. Eu vivi mais de dois anos na Alemanha e foram os anos mais deprimidos da minha vida, e tive de lutar muito em Berlim.
Tem falado de colonialismo e das relações com as ex-colónias. É ainda uma marca importante em quem somos? Como é que isso determina as nossas relações com esses países e com a Europa?
Não temos de nos envergonhar do colonialismo. Estivemos, mais do que qualquer país europeu, mais tempo em qualquer parte do mundo. A maneira como as ex-colónias ficaram independentes: não nos ficaram a dever nada. Não houve traços neo-coloniais. Criámos um bom relacionamento. Algum presidente de um país, que foi colónia de França ou Inglaterra, podia escrever uma carta como aquela que Ramos Horta escreveu e que foi publicada no Público, dizendo que era uma vergonha o que estavam a fazer a Portugal?, e que países como Timor Leste ou Angola ou Brasil estão disponíveis para ajudar. Nenhum outro império viu os seus ex-colonizados reagir assim. Não beneficiámos, na Europa, disso. Já se fala muito da entrada de capital brasileiro nas privatizações.
Se olharmos para os bancos portugueses, não há senão capital angolano.
E a TAP provavelmente vai ser comprada pela TAM, quando antes era a TAP que queria comprar a Varig. Tenho vindo a dizer que se Portugal precisar de liquidez na Europa, se as coisas correrem mal, Portugal tem alguma possibilidade de recuperação e de recursos que a Grécia não tem. Sei que muitos comentadores acham isto utópico…
Acredita que nos podem estender a mão se as coisas correrem mal, é isso?
Sim. Criaram-se tantas ideias falsas a propósito de Portugal… Não vamos fulanizar. Nem fui um adepto do antigo Governo (o primeiro-ministro tinha uma série de características que não me agradavam). Mas com toda a franqueza, a economia portuguesa em 2009/2010, se não houvesse especulação financeira, cumpria as suas obrigações sem problemas. Aos juros a que estávamos a pagar, não havia problema. É evidente que os países estão endividados. Mas a Itália está mais endividada. A Dinamarca está mais endividada. Temos no meu centro estudos sobre o endividamento das famílias, que subiram extraordinariamente com o euro. O crédito ao consumo – não à produção – tornou-se muito barato, disponível. De onde vem esse crédito? Dos bancos alemães, que emprestam aos bancos portugueses, para os bancos portugueses comprarem...
…submarinos alemães.
E carros alemães, Audis e BMW’s.
E desta maneira, desenvolvemos a indústria alemã.
Exactamente. Mas já com os fundos estruturais foi assim. Em 1990, calculávamos que cerca de 75% dos fundos regressavam à origem, não só nos produtos que íamos lá comprar (para as pontes, para as fábricas) como em consultoria (em desenho, em planificação). Tudo o que era caro vinha da Europa. O presidente da República é o grande responsável histórico disto. Não tenho medo de o dizer: é o homem que mais mal fez a Portugal. Pela forma como geriu os fundos. É do tempo de Cavaco o abate dos nossos barcos, da frota de pesca. É do tempo de Cavaco dizerem aos nossos agricultores: “Não agricultem, arranquem as vinhas e as oliveiras, e pagamos por isso”.
Cometeu um outro [estrago], que na minha opinião é um crime: quando vieram os fundos destinados à formação profissional. Foram muitíssimos fundos. Lutávamos para que fossem geridos pelas universidades, sobretudo universidades técnicas. Cavaco Silva, que tinha um contencioso com as universidades, decidiu que seriam centros de formação [a fazê-lo]. E foi a mais completa, a mais secreta, a mais profunda, a mais prejudicial corrupção que alguma vez houve em Portugal. Criaram cursos fantasma, para dar formação fantasma, que não permitiram a requalificação da nossa mão-de-obra. A requalificação está a dar-se agora, nas universidades, com os mestrados e os doutoramentos.
Disse essas coisas à troika?
Não, porque só me perguntaram pela justiça. Quiseram falar comigo porque sou o director do Observatório Permanente da Justiça. Dei-lhes a minha explicação. É uma área onde não me repugna nada cumprir o que diz a troika. [No memorando] não há nenhum diagnóstico novo em relação aos relatórios que tínhamos feito, como também não se produz terapêutica nenhuma. As soluções que propõem são as que já estavam no terreno. O que dizem? “Façam-nas! E criem um prazo para as fazer”. Não é pequena coisa, e é absolutamente decisiva.
São cada vez mais a pessoas que dizem que a mais urgente reforma a fazer é a da justiça, e que, se não acabar o clima de impunidade que há em Portugal, nada poderá avançar.
A troika tem um entendimento muito estreito da importância da justiça. Falei-lhes disso – da luta contra a corrupção – e do acesso. A nossa justiça é cara. Um cidadão que veja os seus direitos violados, e numa crise eles vão estar mais violados, tem muita dificuldade em recorrer à justiça.
Vai gastar dinheiro e maçar-se para que, daqui a dez anos, tudo prescreva e não aconteça nada?
Exacto. Estas duas áreas (acesso e corrupção) não foram valorizadas pela troika. A troika valorizou o que entende que tem um impacto mais directo na economia.
Tanto quanto se sabe, ouviu José Magalhães para saber como funcionam as insolvências.
É evidente que há muito dinheiro parado nas insolvências. O que temos é de acabar com uma tensão permanente que existe entre a tutela política e o poder judicial. Entram em guerra uns com os outros, bloqueiam-se. A troika veio dar um empurrão a que isso melhore.
Que lhe parece o nome de Paula Teixeira da Cruz para o Ministério da Justiça?
É um bom nome, tenho uma boa expectativa. Conhece muito bem a área, está dentro dos dossiers. Tem fama de eficiência. Já lhe mandei o relatório que fizemos sobre o recrutamento e a formação dos magistrados – outra chaga do sistema judicial, como se viu recentemente pela história do copianço.
Por fim: quem manda mais do que tudo em Portugal, não é o poder político, nem sequer os bancos; são os bancos alemães?
Quem manda mais, neste momento, são as instâncias multi-laterais que nos impuseram estas medidas de ajustamento estrutural. Pelo poder enorme que têm – que é o poder do dinheiro que trazem consigo – dominam. Como, no meu entendimento, estão ao serviço do capital financeiro internacional…
“Instâncias internacionais” parece um pouco vago. Há um nome para isso, com mais peso do que o outro?
Tem razão, porque elas não são homogéneas. Era uma surpresa a mudança que DSK estava a introduzir no Fundo Monetário Internacional; preocupações de emprego, de crescimento, de criação de classe média. Inéditas no FMI. Fui tão céptico que pensei que estava a falar para as eleições francesas, que o Fundo estava a ser gerido pelo António Borges, que é um fundamentalista neo-liberal. Depois apercebi-me que vinha de trás a tomada de medidas que iam neste sentido. Chegamos à conclusão que o Banco Central Europeu e que o senhor Vítor Constâncio não é menos fundamentalista que os outros membros do FMI. Os países da União Europeia estão muito sujeitos ao que julgam ser as preferências dos seus eleitores. O Banco Central está sujeito à sua lógica de funcionamento – a de que os mercados financeiros não são tocáveis. A França e a Alemanha estão preocupadas com os seus bancos. O FMI… vá ver o mapa de dívidas.
Quem deve?
85% dos fundos estão emprestados na Europa. Só há uma coisa que os une: não admitem que o nível da dívida possa ser reduzido. Perdoar parte da dívida? Para isso tem de haver luta de rua. E por isso Sarkozy propõe reestruturação com negociação da dívida para a Grécia.
Sempre foi assim, o capital é flexível. Como dizia o Keynes, se eu te dever uma libra, o problema é meu, se eu te dever um milhão de libras, o problema é teu. Não é fácil vir para a rua, mas é uma maneira de os credores perceberem que é melhor receberem 30% do que não receberem nada. Pode ser que, por contágio da Grécia, decidam isto já para Portugal. Antes que isto colapse.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011