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Anabela Mota Ribeiro

Jorge Molder

30.07.20

“O cinema é a grande arte da colagem. Tem a ver com a magia da arte de contar histórias.” Mas o que Jorge Molder faz é fotografia. Contando histórias. A Interpretações dos Sonhos, exposição na Gulbenkian, em Paris, serviu de ponto de partida para falar dos sonhos e das histórias.

“A fotografia é uma coisa de instantes. De coisas fixas, que estão mortas. Talvez o cinema esteja mais do lado da vida e a fotografia do lado da morte. A fotografia é uma coisa que atinge nesse momento a sua culminância”. Jorge Molder é artista plástico. Se quisermos dizer numa frase, a fotografia é o seu modo de expressão. O cinema é um sedimento inesgotável para a criação das suas imagens. Mas a isso há que juntar a vida, o quotidiano, as pessoas, o acaso, a continuidade, a descontinuidade, o que o Tempo faz a um sujeito.

Aquele que aparece nas fotografias não é ele. Ainda que o seu corpo seja quase sempre o lugar da representação. Aquele é um personagem que acolhe as suas micro-ficções. Não são auto-retratos. São auto-representações. São fragmentos de histórias. Recorre à elipse, deixa narrativas em aberto.

De que é que tratam? Primeira coisa: Jorge Molder não gosta de arte que trata de. (Como se isto contivesse um enunciado programático que é preciso desenvolver). Embora a arte trate de. E trata de coisas importantes.

Falámos das suas coisas importantes numa manhã desta semana. Jorge Molder regressava de Paris onde inaugurou a exposição A Interpretação dos Sonhos, no Centro Gulbenkian. Composta por três séries, O Pequeno Mundo (2000), Não Tem Que Me Contar Seja O que For (2006/2007) e aquela que dá nome à exposição e que foi feita no Verão do ano passado. As duas primeiras foram doadas à Fundação pelo artista quando encerrou funções de director do CAM, há um ano.

Jorge Molder nasceu em Lisboa em 1947, é casado com Maria Filomena Molder, têm duas filhas, Adriana e Catarina. Vive no centro da cidade e tem um estúdio a dois passos de casa.

A entrevista aconteceu no estúdio. Na parede em frente, estava um retrato do pai de Jorge. Um belo retrato de um belo homem. Nas parede em frente estava um trabalho do amigo Julião Sarmento. E na outra, uma série de obras dispostas como se formassem um mosaico. Uma amostra do seu universo particular.

 

 

 

Comecemos por uma frase de La Jetée, flme mítico de Chris Marker, que cita numa das suas séries: “Esta é a história de um homem marcado por uma imagem da sua infância”. Que imagem lhe ocorre imediatamente, se lhe devolvo a questão?

Todas as imagens são muito marcadas por imagens da nossa infância. As imagens têm a ver connosco, nós temos a ver connosco, com alguma continuidade. A questão da continuidade do Tempo é curiosa. Não podemos encontrar uma unidade em relação à passagem do Tempo, mas encontramos isto: o Tempo não existe, existem muitos tempos. E a nossa memória relativamente a esses tempos é descontínua. Quando somos novos, temos a ideia de que o Tempo vai criar uma espessura, e que um dia olharemos o passado através dessa espessura. A experiência da passagem do Tempo é exactamente esta: essa espessura é descontínua. Há coisas que se passaram há muitos anos e que poderiam ter sido ontem; e há coisas que se passaram há pouco tempo e que ficaram perdidas. Isto tem a ver com aquilo que me perguntava sobre o La Jetée: será que toda a nossa experiência é configurada a partir de um princípio e de uma sequência? Creio que sim e creio que não. Encontramos marcas de coisas primordiais, que vão fazendo a sua reaparição. E há as coisas que nos acontecem na vida, e as pessoas com quem nos vamos encontrando.

 

Os encontros, os acasos. Outra dimensão.

Creio que é o que há de mais importante na vida. Com isso, vai-se tecendo uma teia.

 

Comecei pela frase do La Jetée para começar a falar de imagem e infância. Se temos a exposição A Interpretação dos Sonhos como ponto de partida, interessa o território imenso do inconsciente e o território matricial da infância. Temas nucleares do seu trabalho.

Concordo inteiramente consigo, mas vamos por partes. Penso que o elemento de que estávamos a falar – como é que lhe vamos chamar?, infância – é um elemento que associamos aos sonhos. O sono, ou o sonho, tem a ver com um estado, com um estar, como aquele que tivemos [na infância]. É um bocado voltar a um universo imerso e no qual desenvolvemos imagens. É uma impressão que tenho: esses primeiros contactos que temos com o mundo são geradores de algumas imagens – como dizia, matriciais – que nos vão acompanhar ao longo da vida. Claro que depois se vão fundir como muitas outras coisas. Eu, que trabalho com imagens, encontro um relacionamento muito estreito com coisas que me surgiram em idade precoce.

 

Pode concretizar? Alguma coisa que agora faça e que tenha que ver com imagens mais antigas.

Há duas, três, cinco ou seis coisas, que vêm de um tempo que eu não sei explicar. Percebo que há uma certa forma, não de encontro, mas de reconhecimento. Mas isto que estou a dizer pode ser uma ficção. Por exemplo, um filme que vi quando era muito miúdo e que só voltei a ver há pouco tempo. Lili, [1953] com a Leslie Caron. Não sou um homem da côr, pelo contrário, mas toda a minha vida pensei nesse filme, tentei encontrá-lo e nunca o consegui; há algum tempo, uma pessoa amiga arranjou-me uma cópia e revi-o; percebi que ele teve um peso importante num conjunto de coisas que me aconteceram ao longo da vida. Não só ao nível da imagem como a outros níveis.

 

Não conheço o filme. É sobre quê?

É a história de uma rapariga que é mais ou menos abandonada, que vai parar a uma companhia de circo e que acaba por se apaixonar por uma pessoa do circo; a história tem períodos em que corre mal, mas depois, por fim, corre bem.

 

Tanto quanto consegue reconstituir, o seu interesse e a razão por que este filme o marcou, é do domínio do estético? Ou é também indissociável do enredo, da dramaticidade?

Eu não conseguiria separar as coisas. O conteúdo dramático é importante. Mas conseguiria dizer que as coisas não são informes. Aquelas características, de um certo naturalismo e artificialismo, encontramo-las no cinema da minha infância (o cinema dos anos 50). Até ao nível da cor. Uma cor excessivamente exuberante, saturada, uma cor de cores muito fortes. Há um outro filme que me marcou: A Noite do Caçador [de Charles Laughton, 1955]. A primeira vez que o vi, devia ter 15 ou 16 anos; achei que não era possível existir um filme assim.

 

Como assim?

Era demasiadamente trágico e belo para poder existir. Hoje em dia, estas questões são impossíveis. Porque podemos desfazer qualquer questão de imediato. O filme está disponível. Abre um computador e vê logo quem é que o fez, em que ano foi feito, até o pode comprar. Nessa altura, isso não era possível.

 

O filme é uma fábula. E as crianças, abandonadas e perseguidas pelo “caçador”, são salvas por uma “fada”, interpretada por Lilian Gish.

Vi muitas vezes o filme mais tarde, e não sei o que é que vi na altura e o que é que lhe fui acrescentando. Em termos visuais, o trajecto nocturno, a perseguição do caçador, o encontro das crianças com a Lilian Gish, tudo isso me pareceu um sonho.

 

A primeira vez que o entrevistei, há dez anos, falou-me de uma imagem desse filme. Aquela em que a figura feminina, a mãe, está submersa, no fundo do rio, com o carro. Por acaso, trabalha esse fotograma na série Não Tem Que Me Contar Seja o Que For, que fez para a Cinemateca de Lisboa, e que integra a exposição que agora está em Paris.

Não me lembrava. Mas agora que está a falar nisso, lembro-me perfeitamente. Quando João Bénard me convidou a fazer a exposição, eu não sabia que imagens ia trabalhar. Há imagens dessa série que são imagens do dia a dia. São imagens assim: “Esta noite, o que é que vou ver? Pode ser que haja alguma coisa". E há imagens assim: “Antes de mais, estas vão entrar de certeza”. Essa é uma delas.

 

Como se essas imagens fossem o começo de tudo?

Sim. Essas imagens dão os pontos a partir dos quais se vai tecendo a teia.

 

Tentemos elencar as imagens essenciais, os nós essenciais para perceber a sua obra. As peças do puzzle.

Se conseguir fazer isso, fico com o trabalho de casa todo em dia… É muito difícil. É muito difícil.

 

Tanto quanto consegue indentificar. Da mesma série, a imagem do Henry Fonda, ao espelho, partido, poderia ser outra imagem essencial?

Podia. Surge noutras séries, muito antes dessa. O espelho, a fractura. A ideia de que a fractura, por um lado, fractura, e por outro, multiplica. Há uma imagem da série Nox em que isso aparece. Um espelho partido: primeiro dá estilhaços, mas depois, cada estilhaço, tem uma certa autonomia reflexiva. Quer dizer, vai também reflectir à sua maneira. Esse exemplo que foi buscar ajuda-me a ir buscar outros. Por exemplo, jogo, acaso.

 

Em relação ao jogo: há nas suas imagens casinos, cartas, croupiers, esse ambiente. 

Que tem a ver com o meu mundo dos sonhos. Mas não com o meu mundo real. Sou um jogador peculiar. Gosto do jogo como distracção. Mas não sou um jogador no sentido dramático e espectacular do termo.

 

O sentido dostoievskiano, de se empenhar completamente naquela jogada?

Nem pouco mais ou menos. Durante a minha vida, joguei meia dúzia de vezes e não fui envolvido pelas circunstâncias. Mas essa convivência visual, esse aspecto, fascina-me. Também pode dizer-me que não sou jogador porque tenho medo de perder… E daí talvez seja, não sei.

 

O que é que foi sendo claro para si que era ganhar? E o que é que tinha medo de perder?

Perder é claramente perder a mão. Perder controlo sobre uma coisa. O jogo desenvolve-se como uma actividade que me fascina. Como obsessão de ganhar, não me faz sentido. Poucas vezes joguei em casinos, e não perdi nada ou ganhei muito pouco. O que me interessa é o fazer, não é o resultado. Talvez seja verdade que as perspectivas catastrofistas do Dostoievski e de outros jogadores me possam assustar...

 

Em algum momento é mais sedutora a ideia de ser um espectador do que alguém que participa? Um agente de tal modo envolvido que perde a distância que lhe permite observar.

Não. Eu gosto mais de jogar do que de estar a ver. E o risco? O jogo não corresponde para mim à ideia de risco. A ideia de jogar, e a actividade em si, são superiores às perdas e aos ganhos.

 

Gosta de fazer, de estar mobilizado na acção, é isso?

Sim, independentemente do resultado.

 

Nas suas fotografias, parece haver uma escassa margem de erro. São exactas, como se o erro não coubesse nelas. Pode dizer, evidentemente, que só vemos aquelas que não contém erro…

Não. O erro é o aspecto mais importante do meu trabalho. O erro e o acaso. O acaso no sentido de deixar as coisas mostrarem-se. Manifestarem-se. Não impor uma norma que condicione o seu aparecimento e a sua existência. O erro é também aceitar que aquilo que se está a fazer não corresponda à nossa expectativa, mas que corresponda a uma coisa mais interessante do que a nossa expectativa.

 

Voltando às imagens e aos temas: fractura, multiplicação,  jogo, erro e acaso. Que outros temas e imagens reconheceria como sendo nucleares?

Não sou capaz de fazer um mini-vocabulário das coisas que faço; mas há coisas que faço permanentemente. Por exemplo, fotografar objectos. Alguns são, de facto, mais auto-retratos do que as auto-representações. Têm muito a ver como o modo como me sinto, ou como me vejo.

 

Como se houvesse uma deslocação do seu Eu mais para aqueles objectos do que para as auto-representações?, onde o seu corpo é apenas um suporte de uma ficção.

Sim. Há outra questão: a do reaparecimento. As mesmas coisas voltam a aparecer, mesmo que transfiguradas. É como estar na estação de metro e de repente parecer-nos ver passar uma pessoa conhecida. Se calhar não reconhecemos nada, mas parece que sim. Gosto de encontrar…

 

Vestígios?

Cintilações. Era?, não era. Mas isso já não interessa. Não é tanto encontrar: é o momento do quase reconhecimento. Não é voltar sempre às mesmas coisas. É voltar a uma sensação que está antes disso e que diz: parecia mesmo que, e afinal, não.

 

Fale-me de objectos que gostou de fotografar e onde se reviu mais do que nas auto-representações.

A maior parte deles têm a ver com o jogo, com espelhos, com magia. A magia, tema de que ainda não falámos, é essencial. Vem também desde o princípio do meu trabalho. A imagem, no fundo, é trazer do nada uma imagem; isso é um acto de magia. Há muitos anos, um amigo meu escreveu um texto para uma exposição minha que terminava com uma frase que volta e meia cito: “Não há milagres, há só truques”. Os truques bem feitos têm qualquer coisa de milagroso. Essa actividade, fazer aparecer coisas – imagens, palavras – é milagre, se é truque, é irrelevante.

 

Lá atrás, como é que começou a ver cinema?

O cinema era uma coisa muito distante (não havia cinema em casa), e era uma coisa constante (agora não é). Os cinemas eram grandes. As salas estavam esgotadas. Uma experiência pré-histórica. Quando, no início dos anos 70, ia à sessão da meia-noite no Apolo 70, passava pelo cinema antes de jantar para comprar bilhetes, porque à meia-noite estava esgotado. Os meus pais iam muito ao cinema. Ter visto o Bambi ou a Lassie no São Jorge, no Tivoli ou no Éden não é a mesma coisa que ver os mesmos filmes, agora, em cinemas pequenos ou em casa. A concepção que os miúdos têm hoje de cinema é diferente. Não tem uma perspectiva linear, como para nós tinha. A repetição, o poder começar por onde queremos, são ideias que já nos acompanham. A experiência do Tempo é completamente diferente.

 

Estávamos a falar das imagens desse tempo que têm ainda importância hoje.  

Não podemos confinar o universo das imagens ao universo infantil, apesar da sua importância, apesar da sua capacidade de reaparecer permanentemente. No meu caso, no tempo dos grandes cinemas, das grandes multidões, da espectacularidade total do cinema (com película de 70 milímetros). Há filmes que apareceram na idade adulta e que são muito importantes. Ou livros que vamos acumulando. Mas depois temos de falar da vida. A vida é uma coisa muito mais comprida. É o conjunto de pessoas que fui conhecendo, com quem vivo e para quem vivo. Têm um peso determinante. Pessoas da minha adolescência. A minha mulher, as minhas filhas, os meus netos.  

 

O crítico de arte Delfim Sardo falava da sua obra como simulacro de ficções, e de si como um puzzle. Voltemos ao puzzle e às várias peças que encaixam: imagens, literatura, a vida, as pessoas…

Quotidiano. O quotidiano é o mais forte. As figuras que vemos no dia a dia. Algumas delas são as tais pequenas simulações de reconhecimentos. Bem, podemos saltar directamente para A Vida, Modo de Usar…

 

O livro de George Perec.

Está familiarizada com esse livro? É a história de um prédio, nesse prédio vive um homem com um nome muito sugestivo: Bartleby. É um homem que dedica a vida dele, numa primeira fase, a ir aos sítios pintar paisagens e depois a transformar essas paisagens em puzzles; ele dedica a segunda parte da sua vida à recomposição dos puzzles. Cada puzzle que completa, é devolvido ao sítio onde foi feito. Bartleby completa o último puzzle, vai meter a última peça e morre porque ela não encaixa. É uma boa imagem..

 

Uma boa imagem para si?

Uma boa imagem para tudo.

 

Interessa-lhe o desfasamento? Quando a pessoa não encaixa.

Acho que deve haver sempre qualquer coisinha que não encaixa. Se encaixar completamente é muito mal sinal. O desajustamento: penso que é bom que as coisas batam certas, mas não completamente certas. Há pouco estava a falar do meu trabalho como se fosse uma fuga ao erro, e não. Nele, há sempre qualquer coisa que não bate certo. Mesmo quando tudo bate certo, como dizia Jorge Luís Borges, há que introduzir o erro à maneira árabe. Para marcar a diferença em relação à divindade. Uma coisa sem erro é pouco interessante.

 

Assim, percebe-se melhor o seu fascínio pelo jogo e pelo acaso. Esses podem introduzir o erro. É o elemento que não se controla.

É bom não controlar tudo. Há pessoas que tentam controlar tudo. Assustam-me imenso.

 

Pode ser por insegurança que tentam controlar tudo…

Voltando à interpretação dos sonhos: não sou psicanalista e não sei se as pessoas querem controlar tudo por insegurança ou por excesso de segurança. O que me incomoda não é que haja erro, é o esforço que a pessoa faz para ver se não há erro. Torna-se uma obsessão.

 

Porque é que chamou a esta série A Interpretação dos Sonhos?

Toda a minha vida é feita de sonhos. Desde a infância até hoje. Tenho uma forma de vida entre a realidade e o sonho. Sou uma pessoa com grandes problemas de sono. Vivo entre o estar a pensar e o cair no sono e o acordar… Portanto, as coisas prolongam-se e interferem-se. Saltam de umas para as outras. Nesse sentido, e também no sentido da reincidência, achei que este nome ficava bem para esta série.

 

Sono, sonho surgem em séries do passado. Insomnia ou Nox, por exemplo. Nox significa Sono, Morte, Noite, Deusa da Noite. É antiga a quase indistinção entre o que é a vigília e o sono.

A diferença: quando se dorme bem, há uma descontinuidade. Também acontece pensar muito numa coisa, e depois adormecer, e depois acordar, e ter a solução. O sono deve ter tido algum trabalho. Não foi um tempo de inactividade. Foi um tempo em que as coisas procuraram ajustes. Esta minha forma de vida, que se prolonga há 20 e tal anos, é diferente. Vou dormindo, vou acordando. Uma continuidade. É continuar a pensar nas mesmas coisas de outra maneira. Isso altera a nossa percepção das coisas.

 

Explique mais das ficções que aparecem nas suas imagens. Provêm do quotidano, da realidade?

Não sei como posso falar das coisas que vou fazendo.

 

Consegue falar das que já fez? É mais fácil, estão mais distantes.

Não sei se sou capaz. Em primeiro lugar, as coisas acontecem. Melhor, as coisas têm que acontecer. É possível definir um conteúdo programático e desenvolvê-lo. A mim, não me acontece. Mas acontece-me pensar numa coisa e depois deixá-la andar. Essa coisa vai acumulando, atraindo outras coisas, e a certa altura pode ter alguma consistência. Umas vezes pego logo nessas coisas, outras não. Não é por uma questão estratégica, é porque se metem outras coisas. Por exemplo, estou há dois ou três anos a fazer umas séries e uma delas pode ser que se venha a chamar Anunciação.

 

Um milagre.

Também pode ter a ver com a publicidade, o termo é equívoco. Mas é como aquelas coisas da culinária: ainda não está no ponto de rebuçado. Funciono muito assim. E há coisas que por lá ficam, que por lá morrem, porque não dão em nada.

 

Até reconhecer que estão acabadas?

Até reconhecer que já vale a pena começar a lidar com elas. Lidar com elas: não quero dizer “trabalhá-las”. Trabalhar tem sempre um lado que me desagrada. Mas a verdade é que é trabalhar.

 

Porque é que desagrada?

Tem qualquer coisa de diligência moralista de que não gosto. “Agora vamos trabalhar”. Uma parte da arte contemporânea tem uma coisa que me desagrada muito (estava há tempos a falar sobre isso com o Waltercio Caldas): a arte que é “about”, é acerca de. As coisas não são propriamente acerca. A arte não tem causas. Tem pretextos. Não é uma actividade que se desenvolva de causa a efeito. Ser “about” ou “tratar de”: são termos clínicos. Eu digo: tenho estas coisas em banho-maria e depois vou buscá-las; você diz-me: “Isso trata de quê?”; no fundo, não trata de nada. Quer dizer, trata de coisas e de coisas que são importantes. Mas não é como ir agora tratar da questão dos pavimentos ou das imagens visíveis dos miradouros de Lisboa. É no sentido em que a arte tem a ver com alguns dos grandes envolvimentos do Homem. Tem a ver com os seus sofrimentos, os seus dramas, os seus medos, as suas alegrias. E essas coisas todas vão-nos aparecer sob determinadas formas. 

 

Morte. As imagens “tratam” disso?

Tenho uma grande dificuldade em falar da morte. Possivelmente porque me incomoda muito. Posso falar-lhe disto: quando se trabalha muito tempo sobre a mesma coisa, como é o meu caso, há algo a que é impossível fugir, e que são as marcas do tempo sobre as coisas. O meu trabalho tem muito a ver com essa visão devoradora do tempo. A morte, a morte é o inescapável. Não lhe podemos fugir, mas vamos tentanto inventariar ou contabilizar os sinais da sua presença. Isto tem algum carácter esconjuratório? Não sei, talvez.

 

O fazer?

Sim. Fazer coisas, já de si, tem um carácter vivificador. A morte não é propriamente um espectro ameaçador, é uma condição que faz com que a nossa vida seja de certo modo o que é.

 

E nesse fazer, entra a Urgência? É outra palavra essencial, e que sempre aparece quando se lêem textos sobre si.

No livro Luxury Bound fiz uma dedicatória à minha mulher, porque foi ela que me falou nisso. E falou-me a propósito da obra do Hermann Broch. A Urgência activa a consciência de que é preciso fazer determinadas coisas. Activa a consciência de que essas coisas têm de ser feitas, mesmo que a sua utilidade seja completamente de pôr em dúvida.

 

Como a arte?

Como a arte. Não podemos deixar de. É como falar sobre arte. Tantas pessoas e tão brilhantemente disseram coisas sobre arte… Mas não podemos deixar de falar de morte e não podemos deixar de falar de arte. Não podemos avançar muito mais sobre morte e sobre arte. Conhecemos os limites, mas não são os limites que nos vão fazer desistir ou obrigar a abandonar um propósito.

 

Tudo o que está a dizer tem uma relação directa com o ter perdido o seu pai quando era muito novo? Tinha 11 anos.

Tem com certeza a ver com isso. Tem a ver com um conjunto de experiências que tive e que teriam sido diferentes se o meu pai fosse vivo. Sou uma criança que viveu à sua maneira. Conquistei uma certa forma de maioridade muito precocemente. Aos 12 anos, ou mesmo antes, tinha chave de casa. E comecei a sair à noite muito cedo. Vivia numa cidade super-protegida. Lembro-me de andar toda a noite e de Lisboa ser um sítio acolhedor. O meu bairro era o Marquês de Pombal.     

 

Quando perguntei se tinha uma relação directa com a morte do seu pai, ocorria-me ter sabido de uma maneira tão brutal e tão cedo dos limites, da finitude, e da necessidade de prosseguir. E o fazer está ligado ao prosseguir.

Acho que percebi e não percebi. Percebi ali a finitude, as circunstâncias da vida, as dificuldades que se levantavam, todas as decorrências possíveis e imaginárias. Mas a experiência mais radical que eu tive não foi essa. Curioso: sou invariavelmente insultado ou elogiado por um carácter literário que eu acho que a minha obra não tem. Algumas obras literárias são fundamentais para a minha vida, mas leio pouco. Há uma obra que me marca terrivelmente; eu era miúdo, ia passar férias para casa de uns tios, e um primo meu tinha uns livros que comecei a ler e que me deram cabo do juízo. Eram do Samuel Beckett. Não percebi exactamente o que estava a ler, mas achei que aquilo era uma coisa que estava para além do que eu podia compreender. Isso fez com que eu alterasse muito a minha visão do mundo. Foi-me parar às mãos por acaso. Fiquei obcecado. Abriu-me uma fenda para outra realidade, na qual nunca tinha pensado. Eu era uma criança realista.

 

O que é uma criança realista?

Era capaz de conviver com todos os sonhos e imaginações e fantasias, mas era capaz de perceber que, se o meu pai tinha morrido, isso tinha implicações sérias nas questões da casa, rendimentos, tudo isso. Não era uma coisa abstracta e longínqua, era uma coisa muito concreta. Eu era ligado à minha mãe, ainda por cima sendo filho único. Mas o alargamento do meu mundo, a partir de qualquer coisa fundante, deriva da minha leitura do Beckett, e não da minha experiência de vida.

 

Encontrou no Beckett o quê?

Posso garantir que encontrei algo, mas não sei o quê. Talvez um limite, uma condição trágica, que eu acho que percebi, e que fez com que eu abandonasse a minha ideia de seguir uma carreira brilhante como engenheiro ou aviador!

 

Foi estudar Filosofia. Mas sabia o que fazer da vida? Agora vou dar aulas, agora vou ser artista…

Pensei que talvez a Filosofia me ajudasse a aumentar a minha aproximação às coisas. Era claro para mim, quando fui para a faculdade, que ia estudar Filosofia para ser um pensador e um professor universitário. Durante o curso, percebi que aquilo não me interessava radicalmente nada. A ideia de ser professor e investigador era trágica! Comecei a investir e a perceber que aquilo não era a minha vida. Estar com dedicação exclusiva a uma actividade de reflexão era-me inaceitável. Não colava com o que eu era. Ia ser uma destruição.

 

Destruição de si e das suas ficções? Ao mesmo tempo que se dedica em exclusivo a uma ficção, um pensamento, um personagem, é como se se distanciasse mais de si, das suas personagens e ficções. Do que estava por descobrir.

O que está a dizer é uma coisa muito bem organizada e certa, mas tem um senão: a nossa vida é caótica. Quando se é novo, a vida é tumultuosa. As decisões não assentam em bases tão reflectidas, sequenciadas, como acabou de dizer. Se nada tivesse mudado, tendo em conta as perspectivas que tinha nessa altura, eu teria ficado como professor na faculdade. Como não me interessava radicalmente nada, fui tentar outra coisa qualquer.

 

O que é que foi fazer?

Trabalhei durante uns anos em Psicologia. Mas eu tinha uma coisa: como era um passeador, e como desde miúdo tive uma atracção fatal por estas questões das artes, assisti a quase tudo. À divulgação da Buchholz, da Quadrante e da 111, da Sociedade de Belas Artes. Muitas das obras que estão no Centro de Arte Moderna, que dirigi durante 14 anos, foram obras que vi na sua primeira exposição, quer na Quadrante, quer na Buchholz. Este era o meu circuito, aos 17, 18 anos.

 

O que é que mudou na sua vida desde que deixou o CAM? Desde há um ano, está a trabalhar na sua produção artística a tempo inteiro.

O tempo que tenho agora é o mesmo. A minha vida sofreu transformações grandes. Estive doente, essa coisa toda. Também é a idade. A energia não é a mesma. Não vejo que haja uma diferença muito grande… A diferença é… o Frank Sinatra! [riso] “And the days dwindle down”, que ele canta naquela música, o September Song.  

 

Os dias diminuiram?

Sempre fui uma pessoa para quem os dias eram muito grandes. Trabalhava até às duas, quatro da manhã e levantava-me às oito. Agora, nem pouco mais ou menos. Tenho necessidade de ter um dia mais repousado.

 

Ter estado doente mexeu com os seus ritmos, mas foi mais do que isso? Esteve seriamente doente, foi operado ao coração. É, outra vez, olhar para a finitude.

É. Mas nessa altura lembrei-me de uma coisa que a minha mãe costumava dizer: se o restaurante é bom, não queiras saber o que se faz na cozinha. Quando fui operado, o professor José Fragata, que é uma pessoa extraordinária, bem me quis explicar o que me iam fazer; disse logo que não me interessava saber, que só me interessavam os resultados.

 

As imagens que integram esta exposição são de um arco temporal curto, nem dez anos. Mas não surpreenderia se O Pequeno Mundo fosse dos anos 90. São como que elos de uma mesma cadeia.

Há artistas que têm um encadeamento muito sequencial. Há artistas perdidos no tempo. Voltam a falar de uma coisa antiga como se fosse uma coisa da véspera… Há uma série que fiz em 94, que se chama Point of No Return. Tem a ver com duas ideias: a de passagem. Passagem da vida para a morte, do real para o imaginário, do sonho para a realidade. A outra ideia: encontrar a passagem. Em ambas as séries há muito do Saint Exupéry, do piloto que procura no meio da tempestade e no mapa se existe algum caminho, porque não pode voltar para trás. Point of no return é um termo técnico da aviação, não é um termo poético. Corresponde ao momento em que um avião já não pode voltar para trás. Pode ser é que a pessoa escape para a frente…

 

 

Publicado originalmente no Público.