André Gonçalves Pereira
André Gonçalves Pereira. Conta-se que quando foi para Ministro dos Negócios Estrangeiros de Balsemão, o dinheiro que aí ganhava não lhe dava para os charutos! Riso. Voz espessa. Os charutos. A pena de não os poder fumar no escritório. Bom dia. Pontualmente às 10, começámos a conversar.
Essa foi a vez em que foi MNE. Mas essa não é a história mais famosa quando se fala dele como MNE. A outra aconteceu anos antes, quando era um jovem príncipe de Marcelo e foi convidado para integrar o governo. Tinha 32 anos, recusou.
Quis ser independente. Foi. Será. É um homem distinto. Exibe uma educação de colégio interno – podia ser suíço ou inglês, foi inglês. A mãe era francesa, e a vida internacional. Chegava de Nova Iorque para dar aulas na Faculdade de Direito. Guiava para a faculdade, sorumbática, num carro improvável. Um dandy que se fez catedrático muito cedo na vida. Um bon vivant que casou muito tarde. Um respeitável senhor que admira Churchill e é admirado por gerações de alunos. Um filho de um pai que quer honrar, um protegé do Presidente do Conselho.
Muito mais do que um advogado. Uma entrevista rara. Um acesso limitado, e mesmo assim excepcional, a uma figura que não se parece com as outras.
Dois pontos de partida: a casa redonda ou o apelido Delauney. Prefere começar por qual?
Qualquer dos dois… [riso]
Ou seja, começamos por um aparente fait divers ou pelo princípio.
O apelido Delauney: a minha mãe é francesa e é descendente do Marquês de Delauney, que foi o último governador da Bastilha. Quando, no dia 14 de Julho de 1789, a população francesa ocupou a Bastilha cortou a cabeça ao Marquês de Delauney.
Não há nenhuma relação com a pintora Sónia Delauney?
Tenho pena, mas não tenho nenhuma relação – que eu saiba. Embora sejamos originários da mesma área, na Normandia. Quanto à casa redonda, é uma casa que fiz há 34 anos, extraordinariamente realizada do ponto de vista arquitectónico. Ficou pronta em 74, para celebrar a democracia. Até que o ano passado decidi vendê-la para comprar uma outra na Quinta da Marinha.
Porque é que a vendeu?
Por variados motivos. O principal é que fiz 70 anos, comecei a pensar no futuro e cheguei à conclusão que não tinha fortuna suficiente para manter duas casas com muito pessoal nos dez, 12 anos que me restam de vida. Como não sou rico, como vivo do meu trabalho…
Não é rico?
Em Portugal é muito difícil uma pessoa ser rica na base do trabalho. Pode-se enriquecer licitamente – já não falo do enriquecimento ilícito – com operações, negócios. Um médico ou um advogado podem adquirir um belo nível de vida, como eu fiz, e nunca tive dificuldade nem falta de dinheiro; mas não enriquecer. Nunca tive o desejo de ser rico.
Tinha a ideia de ser rico e de isso ser uma evidência na sua vida.
Sempre vivi como se fosse rico, mas nunca fui. Nunca me preocupou acumular contas no banco. Não tenho filhos. Se tivesse, tenho impressão que prevaleceria o ponto de vista norte-americano: a obrigação dos pais é dar aos filhos a educação e lançá-los na vida.
Quando li a notícia da venda da casa redonda, pensei no “capital afectivo” que ela representa.
Quando me perguntam: não tens saudades da casa? A resposta é complexa. Não tenho saudades de coisas materiais. Quando temos saudades – eu, pelo menos – temos saudades de nós próprios. Tenho muitas saudades dos tempos bons e agradáveis que vivi naquela casa. Isso significa que tenho pena de não ter 30 anos, ou 40. Mas não vejo solução para esse problema…
Como era esse homem de 30, 40 anos, e como era essa vida de que tem saudades?
Eu tinha 36 anos quando foi o 25 de Abril e fiz toda a juventude, e essa idade madura, no Antigo Regime. Nunca gostei do Antigo Regime, ainda que tivesse muito boas relações com Marcelo Caetano. Também não fui um combatente da liberdade. Fui simplesmente uma pessoa que procurou não se comprometer com o Regime. Não aceitei ser Ministro dos Negócios Estrangeiros quando Marcelo Caetano me convidou aos 32 anos. Qualquer outra pessoa da minha geração teria aceite.
Porque é que recusou?
Quis ser independente. A minha vida foi marcada por uma pretensão de independência. Mas também pelo internacionalismo – que cimenta a independência. A Europa, mais do que prosperidade económica, era um ambiente de liberdade. Era de Paris ou de Londres que nos vinham os livros e as revistas, em papel pardo, para a censura não perceber do que se tratava. Era a Paris ou a Londres que íamos ver filmes que não chegavam aqui, e outros que, quando éramos novos, os nossos pais não nos deixariam ver por motivos que não políticos.
Quando é que começou a viajar?
Muito cedo. Os meus pais estimularam isso. Aos 20 anos corri todo o Médio Oriente. Estive em Israel e na Jordânia numa altura em que era preciso dois passaportes para ir aos dois países.
O que é que o levou ao Médio Oriente em 56? Em Portugal viajava-se pouco, como é sabido. Mas os destinos mais frequentes eram Paris, Londres, rotas europeias.
Mas aos 20 anos, já tinha estado dez ou 12 vezes, em Paris e Londres – para não falar de Madrid, Roma. Fui por curiosidade, e corri todo o Médio Oriente, do Egipto à Síria. E em 57 corri a África Portuguesa – Angola e Moçambique.
Era um desejo de aventura? Porque quer a África Portuguesa quer o Médio Oriente equivalem a dois continentes ignotos.
Já vai há tanto tempo que tenho dificuldade em recriar os meus sentimentos de então, mas havia certamente um desejo de aventura aí misturado. Mais ainda, de curiosidade humana. De ver como eram as outras pessoas, diferentes daquelas que conhecíamos.
O que é que lia? Os livros eram um farol?
Em minha casa havia um grande ambiente de leitura, quer por parte do meu pai, jurista e professor universitário, quer por parte da minha mãe, que era francesa e me iniciou na cultura francesa.
A familiaridade com o inglês existia por via do seu pai?
O meu pai falava muito bem francês, e por cortesia com a minha mãe falávamos francês em casa. No entanto, o meu pai tinha sido em parte educado em Inglaterra, reconhecia a necessidade de o meu irmão e eu falarmos inglês.
E mandou-os para um colégio interno, em 48.
Foi uma coisa horrível! A Inglaterra ainda estava assolada pela guerra, e uma das recordações mais difíceis é a do frio que fazia no colégio de Winchester. Tinha sido um menino mimado por não ter havido guerra em Portugal e não estava habituado a sacrifícios.
Pode falar-me do seu pai? Ele foi seminal na sua vida, claro, mas gostava de perceber a influência nesse lado internacionalista de que fala.
O meu pai é um exemplo dos portugueses espalhados pelo mundo. Nasceu em Goa, porque o meu avô, que era juiz e passou a advogado, casou-se com uma senhora goesa. Mas veio muito cedo para Portugal – não havia Direito em Goa. Como era professor universitário, ligava grande importância às classificações. O meu irmão e eu sabíamos do empenho que tinha em que tivéssemos boas notas.
Foi um aluno brilhante.
O meu pai prometeu-me um automóvel se tivesse 16 valores ou mais – que era o máximo que se podia ter no primeiro ano na Faculdade de Direito. Fiz 18 anos dias depois de acabar o primeiro ano, tive 16 e deu-me um automóvel. Parecem motivações muito mesquinhas – aos 18 anos, não são.
É conhecida a sua paixão pelos automóveis… Espampanantes.
Fui o único professor universitário que ia dar aulas num Ferrari descapotável. Provocava um escândalo que, secretamente, me dava grande gozo. Isto podia ter prejudicado a minha carreira na faculdade, porque os professores mais antigos não gostavam dessas extravagâncias; e também porque tinha a fama, exagerada, de ser muito mundano, de andar em festas e de ter aventuras amorosas. Nessa altura, ia muito a Nova Iorque e aconteceu chegar no avião das seis da manhã e às nove estar a fazer exames, como professor. No ambiente soturno da faculdade, não se gostava muito disso. Felizmente o Marcelo Caetano, que tinha por mim, suponho, afecto, embora isto não correspondesse minimamente ao modelo de vida que ele pretendia para os seus filhos, foi de uma indulgência extraordinária.
Porquê?
Via talvez em mim o que teria faltado na vida dele ou na vida dos filhos – não sei, estou apenas a elaborar. Sei que se não tivesse tido a protecção de Marcelo Caetano teria tido mais dificuldade em fazer carreira na Faculdade de Direito.
A sua relação com Marcelo é fascinante. Esperar-se-ia que escolhesse para seu pupilo dilecto uma pessoa com características diferentes daquelas que tem.
É verdade. E mostra-se nisto: as outras pessoas que formaram a escola Marcelo Caetano eram bastante diferentes de mim.
Porque é que ele o escolheu para assistente, a despeito de tudo o que acaba de relatar?
Esse facto não me surpreendeu muito, porque fui o aluno mais classificado do curso. Praticamente todas as pessoas que terminavam com 18 valores eram convidados para assistentes. Mas fez várias coisas pelas quais estou muito grato. A principal foi, ao contrário do que muitos professores faziam, que era atrasar a emancipação dos assistentes, espicaçar-me para fazer o doutoramento. O que fez com que fizesse doutoramento aos 25 anos, (fui o mais novo da segunda metade do século XX), e aos 32 anos era professor catedrático, (também de longe o mais novo da Faculdade de Direito).
Que tipo de conversas tinham? Eram de foro profissional, circunscreviam-se ao âmbito da universidade?
Falávamos de tudo. Não que me contasse segredos de Estado – de maneira nenhuma. Ele conhecia as minhas opiniões sobre variadíssimos assuntos e eu conhecia as dele sobre alguns. Era um homem muito inteligente e bem intencionado dentro de uma formação muito conservadora. Nunca foi um democrata. Foi Marcelo Caetano, mais do que Salazar, quem criou a estrutura jurídica do Estado Novo. Estava por exemplo convencido de que tinha introduzido o Estado de Direito em Portugal, sem se questionar se a lei era boa ou má, legítima ou não. Este é o problema típico do intelectual que se deixa enredar nas suas construções mentais, e explica, a meu ver, o drama político em que se viu envolvido.
Como é que foi esse momento em que foi convidado para ser ministro?
Marcelo Caetano sabia do meu interesse pelas coisas internacionais – já estava a leccionar Direito Internacional na universidade. Quando subiu ao poder manteve Franco Nogueira como Ministro dos Negócios Estrangeiros – um homem notável, mas que representava a ala direita do regime. Quando Franco Nogueira manifestou interesse em sair do governo – manifestamente não estava em concordância política com Marcelo – começou a procurar sucessores e propôs-me assumir aquelas funções.
Tinha 32 anos e recusou. Foi uma decisão difícil? Inesperada?
Tive grande dificuldade… Mas as razões essenciais – para ser honesto, e com toda esta distância – foram duas: primeiro, já em 68 ninguém podia acreditar numa política ultramarina; e aceitar esse lugar significava ter um patrão. Que nunca tive na vida. E agora já é tarde e nunca virei a ter. Tenho, em certa medida, uma patroa, que é a minha mulher, em áreas limitadas mas importantes. Quando, dez anos depois, fui Ministro dos Negócios Estrangeiros – já tinha sido convidado para outros governos – só aceitei por causa das relações fraternas que ainda hoje duram com Francisco Balsemão. Sabia que ele seria um companheiro e não um patrão – embora não questionasse a autoridade do Primeiro Ministro.
Como correu a vossa relação nesse período?
Nunca foi uma relação de súbdito e patrão, foi sempre uma relação entre iguais.
Porque é que lhe é tão intolerável pensar que há um patrão?
É uma pergunta a que não sei responder. Tive sorte: as circunstâncias permitiram toda a vida que nunca tivesse patrão. Na universidade, a partir do momento em que se chega a professor catedrático, não há patrão. E na profissão liberal, a gente depende dos clientes, mas se, em 50, há um de que não se gosta, podemos mandá-lo passear.
Diz-se que quando foi convidado por Marcelo respondeu que só aceitaria se fosse para negociar o regime das colónias. Para fazer a transição.
Isso não é verdade. Dei várias razões, pífias. Lembro-me perfeitamente de Marcelo Caetano me dizer: “Pois, tu não queres, e depois queixas-te que as pessoas que vão para ministro não prestam. Afinal, o que é que tu queres?”. Respondi: “O que eu gostaria, não depende de si”. Ficou pasmado, nessa altura tudo dependia dele. “Gostava de ser administrador da Fundação Gulbenkian”.
A Gulbenkian, então, representava um oásis de liberdade.
Isto tem uma certa graça porque passados 30 anos tornei-me administrador da Fundação Gulbenkian e contei esta anedota no dia em que tomei posse. E Marcelo disse: “Ah, querias isso… Mas se o lugar estivesse livre não era para ti, era para mim!”. Essa história, que pus restrições à política colonial, seria muito bonita mas não é verdade. Nunca fui um combatente contra o Antigo Regime, não quero vangloriar-me com penas de pavão como tenho visto outras pessoas fazerem.
Gostaria de ter tido uma carreira política mais interventiva?
Não.
Hoje, quando olha para esse período, lamenta não se ter empenhado mais? Não ter participado na construção da democracia?
Não. [Não o fiz] provavelmente por egoísmo. Este desejo de liberdade é um egoísmo. Fui criando um desamor, um desafecto em relação à vida política nacional – não queria usar expressões mais duras. À medida que a vida política se tem vindo a deteriorar, este meu desamor tem aumentado. Não há nada que me desinteresse mais do que a vida política portuguesa, em especial a vida partidária. É-me completamente indiferente saber quem será o líder do partido A ou B.
É triste que um homem como o senhor sinta isso.
Talvez. Mas isto não é exclusivo do nosso país. É como a situação da indústria portuguesa em relação à alemã: as coisas são mais pequenas e piores. Mas qualquer governo português, por mau que seja, é melhor do que a administração Bush. Esta mediocridade é, paradoxalmente, sinal de triunfo da democracia. Significa que não estão em causa em Portugal e noutros países europeus as grandes questões da vida: a liberdade, a liberdade de consciência, a liberdade de expressão. Não é preciso lutar por elas, a democracia entrou em funcionamento – de facto. A democracia, através do sufrágio universal, gera naturalmente a mediocridade. Mas é melhor do que qualquer outro sistema – como dizia o Churchill.
É uma figura que admira, o Churchill?
Ah, muitíssimo. Era um misto extraordinário: de aristocrata, de alcoólico, de homem determinado; só tinha um defeito, que se transformou em qualidade durante a Segunda Guerra: é que gostava da guerra. Mas era uma coisa da educação dele. Lembro-me de o ver uma vez em Veneza a pintar, vê-lo ao longe, em 1949. Ele estava acompanhado por um empregado, e estava a pintar a ponte de Rialto.
Teve vontade de o abordar?
Não, acho que não se pode incomodar as pessoas, sobretudo nessa idade veneranda. O que mais admirava no Churchill é que era um lutador e ao mesmo tempo foi na vida pessoal e política magnânimo. Não era vingativo. O que talvez adviesse do seu passado aristocrático. Não se lhe encontra ódio – a não ser ao Hitler – como hoje se encontra entre os líderes políticos.
Em quem votou em 1958?
Votei no General Delgado. Tenho votado no chamado mal menor. Encontro sempre grandes defeitos em todas as candidaturas, mas numas mais do que noutras. Às vezes tenho-me abstido. Por exemplo, na última eleição votei em branco porque não podia votar nem no Pedro Santana Lopes nem no Sócrates – embora já tenha votado no Partido Socialista. Não podia votar no Sócrates porque compreendia que ele ia aumentar os impostos e tinha declarado que não o faria. De maneira que começava por uma mentira.
Mas preferiu o voto em branco a ficar em casa.
O voto em branco exprime a rejeição de qualquer das candidaturas. Nunca pensei que o regime se resolvesse com a eleição do General Delgado para Presidente da República – ninguém pensou. O génio político de Salazar conseguiu acrescentar mais 10 ou 15 anos de vida ao regime através da guerra do ultramar. Isto é impossível de demonstrar, mas estou convencido que a divisão nas forças armadas provocada pelo Delgado levaria à queda do regime mais cedo.
A guerra foi para si um fantasma?
Era um fantasma para toda a gente da minha geração. Acabei o curso em 58 e fui imediatamente fazer a tropa. Podia ter adiado, mas fui para a administração militar, que era para onde iam os licenciados em Direito, e saí em 59 – dois anos antes do início da guerra. Dos homens da minha geração, foram sobretudo os médicos que foram incorporados à força. Eu posso datar o dia em que percebi, ou reiterei, a minha ideia de que o império estava perdido. Foi a 18 de Abril de 62. Nesse dia fugiram cerca de 20 estudantes africanos da universidade – muitos deles meus alunos. Joaquim Chissano estava na Faculdade de Medicina e também fugiu. Quer dizer, Portugal não tinha conseguido atrair as elites de que precisava para que alguma coisa de português continuasse em África.
Mesmo assim, o regime subsistiu 12 anos. Não pensou, nessa altura, em viver fora? Na América, nomeadamente, país com que manteve relações tão próximas.
Não. Estive muitas vezes na América, mas verdadeiramente, tirando cinco ou seis anos em que passava largas temporadas em Nova Iorque, sempre vivi em Portugal. Em Portugal não havia liberdade de expressão, mas eu, pessoalmente, tinha alguma – não muita. O exílio é uma coisa muito dura, e talvez não tenha tido coragem para isso. Também nunca senti a necessidade.
Até onde se sentia um privilegiado? E isso dava-lhe uma espécie de culpabilidade? Um pouco como há pouco falava do Churchill e do complexo por ser um aristocrata.
Acho que sim. Sempre me senti um privilegiado e isso dava-me um sentimento de culpabilidade. Mais em relação às questões sociais do que às políticas. Na minha juventude, tinha um sentimento de culpabilidade por ver que havia gente muito pobre e que eu tinha uma existência confortável. Tinha a noção de que, por mim, não podia fazer nada.
Esse ano e meio que passou na tropa, foi a única vez que esteve entre um grupo heterogéneo, e desprotegido? Quando esteve no colégio interno, ou na faculdade, estava entre pares.
Já no liceu convivi com gente de todas as classes sociais. Os liceus públicos eram um grande igualizador social. Andei no liceu Pedro Nunes, onde tive excelentes professores, e que me despertou interesse pela Matemática. Só mais tarde percebi que há muitas afinidades entre a Matemática e o Direito. Em qualquer das duas hipóteses, trata-se de extrair conclusões de premissas abstractas. Como gostei imenso de Latim – era uma escola de rigor.
Com quem é que aprendeu a ler?
Isso é tão antigo… Aprendi em casa. Tive uma professora, a Dona Letícia, que me ensinou a mim e ao meu irmão nos dois primeiros anos. Na terceira classe, como se chamava, fui para o colégio inglês que havia em Lisboa, onde fiz o exame da quarta classe e a admissão ao liceu.
Lembra-se da Dona Letícia? As preceptoras deixaram de se usar.
Lembro-me perfeitamente. Isso aconteceu durante a Guerra (39/45) e, por razões materiais, o meu pai, a minha mãe, o meu irmão e eu vivíamos numa espécie de casa de campo que tínhamos perto do Estoril. Tínhamos uma horta, com batatas e umas coisas. Era um pouco isolado. Penso que não era muito fácil ir à escola, de maneira que durante esses dois anos a Dona Letícia foi lá a casa e ensinou-nos as coisas elementares. Já perto do fim da Guerra, voltámos para Lisboa.
O seu irmão é mais velho?
Sim, mas pouco, três anos. Também licenciado em Direito, como toda a família. Começou por ser advogado, tornou-se presidente de um banco (foi o último governador do Crédito Predial) e depois do 25 de Abril continuou a exercer a sua profissão de banqueiro – primeiro na Suíça, depois nos Estados Unidos, onde tem hoje um banco, que é em parte dele.
O senhor trabalhou no escritório com o seu pai, mas isso não aconteceu com o seu irmão.
A certa altura, os escritórios, o do meu irmão e o meu, separaram-se, mas apenas fisicamente. Estávamos aqui ao lado, no Marquês de Pombal, e já não havia mais espaço; o meu irmão foi para a Baixa. O meu pai favoreceu essa separação porque tinha receio que houvesse um grande conflito entre nós se estivéssemos todos os dias na mesma organização e a disputar a chefia. A partir de certa altura, o meu irmão desinteressou-se da advocacia e eu fiquei a dirigir o escritório.
Qual dos dois foi melhor aluno?
Talvez eu, mas com pouca diferença. Ele também foi um aluno distinto. Eu formei-me com 18 e ele com 16.
É natural pensar que havia uma disputa. Nem que seja em termos freudianos, pelo afecto e pela admiração do vosso pai.
Isso uma pergunta natural que me tenho feito a mim próprio. Nós tivemos as nossas querelas, até andávamos às vezes à pancada.
Não consigo imaginá-lo à pancada.
No liceu andei muitas vezes à pancada. Felizmente nunca me magoei muito e foi sempre por motivos secundários. Hoje não sei dizer quais eram os motivos, e se era freudianamente o desejo de saber qual era o preferido do pai ou da mãe. O que me dá satisfação é perceber que quando chegámos à idade adulta todas as nossas divergências desapareceram e hoje temos uma relação fantástica.
Têm uma relação de intimidade? Se se for abaixo, telefona ao seu irmão?
Não sucedeu ainda, mas sei que ele está disponível, e eu também estarei para ele. Uma das razões porque temos uma relação maravilhosa, é porque não nos vemos muito. O meu irmão mora sobretudo em Londres e em Nova Iorque, e vemo-nos uma vez por mês. Por sinal, falei esta manhã com ele ao telefone.
Sobre quê?
Está a organizar uma viagem a Moçambique e estou a ajudá-lo, só isso.
O seu pai, sendo um jurista estimado, não deu aulas na Faculdade de Direito. Esse facto foi determinante para que o senhor se tenha aplicado tanto nos estudos? Para cumprir absolutamente esse desígnio.
O meu pai teria gostado mais de ser professor da Faculdade de Direito do que de Económicas, como foi. Nessa altura, ser professor da Faculdade de Direito era mais importante do que é hoje – como a Fundação Gulbenkian era mais importante. Salazar tinha sido professor de Direito, Marcelo também, os professores de Direito tinham grande prestígio. O motivo que me levou a estudar foi o desejo de agradar ao meu pai e a vaidade de querer aparecer como um bom aluno.
O seu pai terá tido toda a estima social e académica de que era merecedor? Este era um tópico importante para si? Não ter transitado de Económicas para Direito era a confirmação desse estigma?
Não era sentido como estigma. Penso que o meu pai teve uma vida feliz. Ele desenvolveu um verdadeiro amor ao Instituto de Ciências Económicas, de que foi director cerca de 20 anos e, com outros, mudou o instituto; transformaram-no numa escola moderna de economia. Tinha um enorme orgulho nisso. Acontecia uma coisa curiosa que só vim a compreender muitos anos depois: quando andávamos pelo país e pelo estrangeiro, estava sempre a encontrar antigos alunos, que o iam cumprimentar. Era muito sensível a isso.
O que é que lhe provoca encontrar antigos alunos?
Estive há dias em Cabo Verde onde antigos alunos, incluindo um antigo Presidente da República e um antigo Primeiro Ministro, se juntaram a outros para me oferecer um almoço. De homenagem, confraternização, simpatia. Já o mesmo tinha sucedido em Moçambique. Foi extremamente gratificante, ainda mais porque eram alunos de todas as cores políticas, étnicas e de todos os sectores da sociedade.
Porque é que isso é uma coisa tão enternecedora para si?
Sei lá, é tão difícil identificar as razões do nosso sentimento… Será por eu não ter filhos e aí reconhecer alguma ligação desse tipo? Sei que fiquei tocado por esses dois gestos de antigos alunos, mas procuro não levar a introspecção longe demais. Fico com uma sensação agradável, e isso basta-me.
Posso perguntar porque é que não teve filhos?
Porque… Por vários motivos, mas não me interessa entrar por esse assunto.
Então podemos voltar ao seu pai? Ou seja, à sua condição de filho. Foi um menino muito reforçado? Isso repercutiu-se na sua auto-estima?
Sei lá porque saí assim! É um conjunto de circunstâncias, hereditárias, influências, et cetera. Sei é que saí assim. E que a minha vida foi norteada pelo desejo de independência. Talvez o facto de ter casado bastante tarde – casamento que foi a coisa mais inteligente que fiz ao longo da vida – seja derivado do desejo de independência. Sempre gostei imenso de mulheres e de companhia feminina, mas nunca tive o desejo ou a necessidade de casar jovem. Num determinado momento da minha vida apareceu uma mulher que gostava de mim e eu dela, queria e podia casar comigo – o que não teria sucedido com outras.
E casou-se aos 50 anos. Porque é que diz que foi a coisa mais inteligente que fez na sua vida? Inteligente? Esse atributo, aplicado a um casamento…
Costumo dizer isso de brincadeira. Obviamente houve razões de natureza afectiva. Não foi uma coisa ditada pela razão pura, kantiana. Mas visto com anos de distância, posso dizer que foi a decisão mais importante para contribuir para o objectivo de todos – que é a felicidade.
É um homem mais feliz hoje?
Sou. Sobretudo porque a felicidade conjugal compensou a progressiva perda das outras coisas. Hoje tenho 70 anos e já não tenho a agilidade, até a curiosidade, que tinha quando era novo. Se não tivesse encontrado uma outra forma de vida, provavelmente seria infeliz ou menos feliz.
A juventude é o que mais lamenta ter perdido?
Com certeza. Mas isso não é uma coisa que aconteça só a mim. Se pudesse fazer o pacto faustiano, fá-lo-ia.
Foi um leitor de Goethe?
Pouco. Li sobretudo a poesia de Goethe. Estudei alemão mas nunca dominei o suficiente para ler, por exemplo, o “Fausto”. Li-o em tradução. Mas sabia, e sei, alguma poesia de Goethe. Os autores alemães nunca foram das primeiras preferências, porque tinha de os ler em tradução – enquanto que os de língua inglesa, francesa, espanhola ou mesmo italiana podia ler sem ser em tradução.
Um poeta de que goste especialmente, pode apontar?
Diria três: Shakespeare – é o máximo. Um nome do espírito de aventura: Camões. E outro, que dá o universo deste século, Pessoa. Todos com grande influência, ainda que uma pessoa não saiba bem que influência é. E releio, releio. “Hamlet” é um dos livros que tenho perto de mim.
Uma tragédia como a de “Otelo”: vejo-o fleumático, e não lhe colo facilmente sentimentos pulsionais, mesquinhos, mundanos, como o ciúme…
Tive a extraordinária fortuna de nunca ter tido esse sentimento. Toda a vida andei no mar, andei em barcos pelo mundo inteiro, apanhei muitas tempestades, e nunca enjoei. Também nunca tive ciúmes. Muitas namoradas me deixaram por outros homens. Eu também deixei muitas namoradas. Às vezes pode ter afectado o meu amor próprio…, mas ciúme, verdadeiramente, nunca tive.
Outra cena shakespeariana: a punhalada.
[riso] Não me imagino como Otelo, nem nunca tive um Iago. Nem na minha vida sentimental nem na profissional, aconteceu o sentimento da traição e de alguém não corresponder à expectativa que tinha nela. Foram-me poupados imensos sentimentos dolorosos, pelo acaso, pela Providência, se ela existe.
Dores, fracturas, perdas, todos temos. Que marcas foram essas na sua vida?
Ah, há coisas inevitáveis. O meu pai morreu há cerca de 20 anos. Foi um trauma grande, embora já tivesse 80 anos e não fosse uma coisa inesperada. Este desejo de independência faz com que não sejamos dependentes de outros. Se não sou dependente de outrem, nada do que outrem possa fazer me afecta extraordinariamente. Não sei se esta mania da independência é boa ou má. Nunca escolhi. E não tenciono fazer as contas: como já não vou a tempo de corrigir, já não vale a pena.
Em que circunstâncias sente a sua costela indiana?
Sinto-a, mas não sei exactamente como. Em Goa, todas as pessoas de uma determinada classe social se consideram, entre si, primos. A família da minha avó era uma das mais antigas. Temos na Ilha da Piedade uma capela feita por Lourenço Gonçalves em 1530. Era uma família de alguma importância. Tive essa noção quando em 1981 fui a Goa como Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Primeiro Ministro, que descendia de uma família hindu, disse-me assim: “Tenho muito gosto em recebê-lo. Como sabe, a minha família anda a lutar contra a sua família há 400 anos”! Tem uma certa graça… Nunca esqueci isto.
Quer morrer em Portugal ou na Índia?
Tanto faz, qualquer sítio. Desde que seja rápido e indolor.
Já pensa na morte?
Não. Mas tenho a ideia que qualquer dia vai acontecer.
O seu legado está nos seus alunos, na sua obra?
Não me preocupo em deixar um legado. Dez anos, 20 anos depois de eu morrer já ninguém se lembra que existi. Mas isso é perfeitamente natural – não sou o Marquês de Pombal.
Gostaria de ter feito qualquer coisa de heróico, que perdurasse?
Não. O objectivo da vida de todos nós é a felicidade pessoal e tenho muitas dúvidas que um projecto desse tipo fosse compatível com a construção da felicidade. A felicidade pessoal passa por um certo egoísmo. São facts of life que temos de aceitar.
Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2008