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Anabela Mota Ribeiro

Daniel Proença de Carvalho

17.12.13

Uma secretária meticulosamente arrumada, papéis alinhados, pontualidade exemplar. Há outro Daniel Proença de Carvalho? “Todas as pessoas são duas pessoas. Melhor, todas as pessoas públicas têm um lado público, às vezes mitificado, e depois são as pessoas reais. Quando se tem uma vida pública, as pessoas são actores que desempenham uma função, e vestem a pele dessa função. Nos cargos que desempenhei procurei a pele mais adequada ao cargo e exercer esse cargo da forma mais eficiente. Despindo-me muito, muitas vezes, dos meus sentimentos, da minha vida pessoal. Chego a casa, dispo este fato relativamente formal, ponho uns jeans, vou tocar guitarra, fazer jardinagem, lavar a louça quando é preciso. Tenho o cuidado e o hábito de não transportar a vida profissional para casa. Embora a minha mulher seja licenciada Direito, muito raramente troco com ela uma palavra que seja sobre a minha vida profissional.”

E na entrevista? Está Daniel Proença de Carvalho profissional, que fala de Mota Pinto e Soares, Sócrates e Cavaco, Champalimaud. E está o homem que nasceu na Soalheira, uma aldeia pobre da Beira, e que faz este ano 70 anos. Esse continua a surpreender-se com o rumo que a vida levou. O outro, sabe que à entrada do edifício pode ler-se Uría Menendez-Proença de Carvalho – e que aquele é um dos maiores escritórios de advogados do país.

Conversámos terça feira de manhã. Todos estávamos ainda dominados pelos resultados eleitorais do domingo anterior.

 

Comecemos por olhar para as presidenciais. Um dos vencedores da noite eleitoral foi Fernando Nobre, um candidato exterior aos partidos. Isto é revelador do ciclo agónico em que estamos, em que as pessoas se distanciam da política?

As pessoas votaram, não num político, não em alguém que tivesse qualquer projecto político, nem sequer em alguém que tivesse revelado especiais aptidões para aquela função. Votaram em alguém que é um homem bom, que se dedica a causas humanitárias. Estas características não fariam um bom presidente. Mas é [sintomático] de um desencanto pelos políticos em geral.

 

Cavaco Silva teve um resultado que, sendo uma vitória, e uma vitória à primeira volta, é apesar de tudo uma vitória com menos 500 mil votos do que conseguiu há cinco anos atrás.

Não me surpreendeu. Não havia dúvidas de que ia ser reeleito. É tradição portuguesa, a reeleição. Reconheço que não houve um grande entusiasmo, mesmo da parte de pessoas que votaram nele com grande entusiasmo na primeira eleição. Uns porque se sentiram defraudados, mais conservadores…

 

A promulgação do casamento homossexual.

Exactamente. Outros porque esperavam dele uma posição mais intervencionista, para dar um contributo mais positivo para a estabilidade do país – nos quais me incluo, em parte.

 

Ter já exercido a tal magistratura mais activa de que falou na campanha.

Há momentos em que é preciso criar convergências políticas. Não podemos ter um governo minoritário com toda a oposição aos gritos a tentar enfrentar a crise. O presidente podia ter tido uma maior influência. Podia ter tido uma influência maior na justiça, que é um problema que preocupa todos os portugueses.

 

É o grande problema?

Um dos grandes problemas. Afecta a confiança dos investidores. É muito grave. Num recente estudo feito pelo Projecto Farol, 75% dos portugueses disse que não confia nos tribunais. Gravíssimo. O presidente devia ter-se empenhado mais nessa área, ter assumido mais responsabilidades. Houve aquele momento pouco feliz na história das escutas. Espero que este segundo mandato seja melhor.

 

Surpreendeu-o o tom de vendetta no discurso de vitória?

Surpreendeu. Os vencedores devem ser sempre magnânimos. [Cavaco] devia chamar à atenção dos portugueses para que deve haver maior respeito por quem exerce funções de grande responsabilidade. A descredibilização não é apenas das pessoas, é das instituições. Não se pode de ânimo leve levantar suspeitas, fazer insinuações quanto ao carácter das pessoas. Devia ter feito referência às calúnias que lhe lançaram nesta forma didáctica e não na forma agastada com que o fez.

 

Persecutória?

Um pouco. O presidente, enquanto presidente, já devia ter feito esse alerta quando outras figuras do Estado foram vítimas de campanhas muito mais graves, e também sem fundamento. Se não tivermos respeito pelos direitos, que estão na Constituição, ao bom nome e à reputação, estamos a cavar a nossa própria sepultura. Não podemos querer ter políticos prestigiados, e pessoas que estejam disponíveis a intervir na política se não nos respeitarmos minimamente.

 

O politólogo António Costa Pinto disse no Público, ainda antes das eleições, que Cavaco estava a experimentar, numa dose diferente, um pouco daquilo que Sócrates foi experimentando ao longo destes anos. E que não deve ter gostado.  

O Eng. Sócrates foi o político, desde que temos democracia, mais causticado. Injustamente. As campanhas, quer quanto à orientação sexual, quer quanto à interpretação de actos administrativos – nada de menos correcto se apurou quanto à sua actividade política. Nada de factual e de concreto se apurou que pusesse em causa o seu carácter.

 

Não é um político. Embora pudesse tê-lo sido. Vamos perceber o percurso e as escolhas. Qual é o momento de viragem na sua vida? Que encontro é decisivo, que precipita outros encontros, e que o põe a jogar noutros tabuleiros?

Acabei o meu curso e, como não tinha nenhuns recursos, e já tinha uma família para sustentar…

 

Casou tão cedo assim? Pensei que fosse muito mais programado.

Nada programado. Casei aos 20 anos. Fui para o primeiro emprego possível. Era o Ministério Público. Fui colocado em Santiago do Cacém como delegado do Procurador da República interino. Depois diz o concurso. Fica-me mal dizê-lo, mas fiquei em primeiro lugar. Era regra que os primeiros classificados fossem convidados para a Polícia Judiciária.

 

O que é que fazia um inspector da Judiciária nesse tempo? O facto de ser um regime político diferente condicionava o exercício da actividade?

O que fazem hoje. A polícia Judiciária não intervinha em nenhum processo político. Era uma polícia civil, ocupava-se de crimes comuns. Estava numa secção a que hoje se chamaria Crime Económico. Burlas, abuso de confiança… A PIDE ocupava-se dos, “crimes políticos” [as aspas são de DPC].

 

Tentacularmente, a PIDE tentava intervir, condicionar, controlar?

Não. Pode ter havido um ou outro caso de crimes que tivessem uma natureza política. Suspeitas de que o PC pudesse ter assassinado alguns militantes… Casos raríssimos. Eram mundos à parte. Mas eu não tinha como vocação ser funcionário público. Respondi a uns anúncios. Simultaneamente abri um pequeno escritório ao lado do tribunal de Oeiras, sítio mais fácil para se começar a vida. Em resposta a um anúncio, fui para a Cimentos de Leiria, que era uma empresa do grupo Champalimaud.

 

Como se deu o encontro com António Champalimaud?

O primeiro encontro foi a propósito de um contrato em Moçambique. A empresa de que eu era advogado estava a fazer um contrato de aquisição de umas pedreiras. Quis falar comigo sobre este contrato. Falámos do contrato, nada mais.

 

Imagino a sua surpresa. Ele era o Champalimaud.

O grande empresário. Poderosíssimo. Uma pessoa por quem se tinha um certo temor reverencial. Uma das suas características era que não gostava nada de yes, man. Fazia às vezes o teste de dizer uma coisa e ver a reacção do interlocutor. Se alguém dissesse: “Isso não é bem assim”, ele ainda era capaz de manter a discussão durante um tempo, ver até que ponto a pessoa resistia.

Penso que percebeu que, se eu tinha uma opinião própria, lha transmitia, independentemente de isso ir ao encontro do gosto dele ou não. Mais tarde, no decurso do célebre processo da herança Sommer, o António Champalimaud teve de se refugiar no México e fui encarregado de fazer uma espécie de investigação aos regimes dos países da América Latina. Para verificar onde é que ele poderia estar mais a salvo de um mandado de captura internacional. Fiz esse périplo. Chegámos à conclusão de que o México era o país onde poderia estar mais tranquilo. A última fase desse périplo foi ir ter com ele. Não sabia onde é que ele estava. Não me tinha sido dito. Recebi só muito sobre a hora a instrução para ter um encontro com ele. Passámos algum tempo. Falou comigo sobre o processo no qual estava envolvido, e que eu não conhecia sequer, porque não tinha tido nenhuma intervenção.

 

Esse périplo pelos países da América Latina: estamos em pleno romance de Graham Greene.

Falei com professores de Direito Criminal desses vários países. Levei daqui uma lista de pessoas que devia consultar. Depois apresentei esse trabalho. Isto passa-se em 1968, tinha 27 anos.

 

Era um jovem. Que características é que tinha que acha que impressionaram positivamente Champalimaud? Podia ter os advogados que quisesse, mas escolheu-o a si.

Quis-me a mim, mas também quis Sidónio Rito, Manuel João da Palma Carlos, Salgado Zenha (mais tarde), Francisco Sousa Tavares. Advogados dos mais ilustres do país, e com os quais colaborei.

 

Todos os outros eram de uma geração diferente da sua.

De facto, Champalimaud quis que eu fosse uma espécie de secretário-geral da defesa. E que depois, em colaboração com esses colegas já consagrados, a levasse a cabo. Fui o único advogado que permaneceu desde o início da defesa até ao fim.

Suponho que terá achado que tinha inteligência suficiente para entender as coisas. Que tinha voluntarismo, capacidade de trabalho, que era capaz de organizar os dossiês e uma defesa. Que tinha coragem. Para se ser advogado de barra e neste tipo de processos a coragem física e moral é importante. Muitas vezes temos que afrontar situações de grande agressividade, onde tudo parece estar contra nós.

 

Plus: se não se deixava intimidar por ele, talvez não se deixasse intimidar por outros.

Naturalmente.

 

Se percebemos que ele gostasse de pessoas que lhe faziam frente, ainda não percebemos como é que não se deixa intimidar por aquele homem, que tinha tanto poder, tanto dinheiro.

Talvez seja uma coisa sistémica, da natureza das pessoas: medo, nunca tive. Nem medo físico. Nunca me senti atemorizado em nenhuma circunstância. Se entro numa sala de audiências e vejo um juiz autoritário e advogados a bajularem esse juiz, fico com a pele eriçada. Devemos dizer aquilo que pensamos com frontalidade. Um advogado que defenda o interesse dos seus clientes, se há coisa que não pode é deixar-se intimidar pelo que quer que seja.

O processo da herança Sommer marcou-me nesse aspecto. Fomos confrontados com um juiz que era um déspota. Era também juiz do Tribunal de Plenário. Expulsou-me da sala uma vez, retirou patrocínio ao João da Palma Carlos, dirigia as audiências de forma arbitrária. E estava disposto a condenar António Champalimaud fosse de que maneira fosse. O que tivemos foi de o enfrentar a sério. Tive o exemplo do João da Palma Carlos, que foi um dos advogados mais corajosos da história. Foi advogado do Cunhal. Suponho que foi o único caso de um advogado que em plena sala de audiências passou da bancada de advogado para o banco dos réus e foi ali condenado. O que levou à alteração da lei. Tínhamos que enfrentar uma batalha dura, não só no tribunal como também na opinião pública.

 

Há processos onde a opinião pública faz o seu próprio julgamento.

Há. E às vezes a força desse julgamento é enorme. Eu escrevi dois livros em co-autoria com o Francisco Sousa Tavares sobre o caso; o Manuel João da Palma Carlos escreveu um, o Salgado Zenha publicou outro. No fundo tivemos que desmontar, não só no tribunal mas também perante a opinião pública, as convicções generalizadas que existiam acerca do caso, e que eram falsas, erradas.

 

Fê-lo mais tarde novamente, com Rui Nabeiro ou Leonor Beleza, que defendeu.

Justamente porque também nesses casos se gerou uma convicção generalizada da culpabilidade de pessoas que estavam inocentes. Sem que haja também esse combate na opinião pública as coisas são difíceis. Há pessoas mais imunes, outras menos, mas o normal nas pessoas é acreditarem naquilo que ouvem, naquilo que lhes é transmitido pela comunicação social.

 

Voltando a esse período no final dos anos 60 e começo da década de 70 em que se movimenta no universo Champalimaud. Conhece aí os actores políticos, as pessoas de poder com quem se vai dar no pós-revolução?

Conheço aí, em geral, os políticos mais representativos da oposição, não do regime. O Salgado Zenha, de quem fiquei amigo e com quem tive uma convivência diária durante bastante tempo. O Mário Soares, logo que regressou a Portugal conheci-o bastante bem.

 

É pela mão de Zenha que vai para o PS logo depois do 25 de Abril?

Diria que sim, embora isso fosse natural.

 

Natural? Quase me esqueci que em tempos foi PS. Não sei se isto é um insulto para si, espero que não seja. Mas todo o seu percurso, posteriormente, é feito num espaço de direita ou centro-direita.

Os meus amigos eram da oposição. Já não tinha nenhuma espécie de ilusões quanto ao comunismo. O que era normal era que, a ter qualquer participação política, a tivesse num partido de oposição ao Antigo Regime, moderado. Para mim isso era o PS, o PS social democrático. Trabalho desde há muitos anos com um colega que foi um dos fundadores do Partido Socialista, o Nuno Godinho de Matos.

 

Porque é que saiu do PS?

Não foi dissidência com o partido. Foi pelo facto de entretanto ter assumido a direcção de um jornal. Era incompatível ser director de um jornal e militante de um partido. Nesse mesmo dia escrevi uma cartinha ao Dr. Mário Soares a explicar que me afastava do partido. O Partido Socialista teve um percurso ambíguo. Por um lado, a vertente social democrática, Mário Soares. Por outro lado, o Secretariado, e até Salgado Zenha. Recordo conversas nessa época em que tomaram posições próximas do eanismo, daquela visão militarista de tutela da democracia. Com esse PS, cortei.

 

Já era demasiado radical para si.

A minha intervenção foi sempre no centro-esquerda, centro-direita. Um pouco centro-esquerda em matéria de costumes, um pouco centro-direita em matéria de economia. Se há coisa em que não mudei é nisso. Se ler os meus artigos no Jornal Novo está lá o que pensava, que é o que penso hoje. Com uma diferença: naquela época um pensamento liberal era considerado extrema-direita, hoje um pensamento liberal é de centro-esquerda, centro-direita.

 

Assumir a direcção do jornal era também uma forma de fazer política, de fazer intervenção? Estávamos numa década em que toda a gente acreditava que era possível mudar o mundo, reconstruir tudo.

Não tive essa ilusão. No 25 de Abril tive uma enorme alegria e festejei isso de todas as formas, com os meus amigos, com a minha família…

 

Quem eram os amigos com quem festejava o 25 de Abril?
Festejei com o José Niza, que ainda é militante do Partido Socialista. Com uma pessoa que já morreu, o António Rolo Duarte. O Manuel João Palma Carlos, o Salgado Zenha. Com muitas pessoas, com quem convivia, que iam a minha casa.

 

Como é que se desencanta em relação a esse fulgor inicial?

Pouquíssimo tempo depois percebi que o Partido Comunista tinha tomado conta do processo revolucionário. Dominaram os media, o aparelho de Estado. Passei imediatamente a ser contra-revolucionário. Entendia e esperava que o 25 de Abril fosse uma transição para a democracia política e para uma economia mais liberalizada. Tivemos uma revolução comunista que andou entre o 1º de Maio e o 25 de Novembro de 75. Sendo que depois do 25 de Novembro de 75 também não se voltou atrás. Um dos maiores erros de Portugal foi o 11 de Março de 75. Foi catastrófico. Ainda hoje estamos a pagar essa enorme factura que foram as nacionalizações e a chamada Reforma Agrária. Destruímos o que havia de melhor, empresarialmente, no país. O que era desejável era que fizéssemos uma transição, como a Espanha, para a democracia política, mantendo o sistema económico e liberalizando.

O Jornal Novo foi o único que durante esse período combateu essa tendência. Foi criado por empresários.

 

Presumo que fosse olhado como um perigoso direitista.

Quando fui nomeado director do jornal fiz uma reunião com a redacção e fizeram-me perguntas muito embaraçosas. Eu tinha sido advogado do Champalimaud, como é que era possível ser director de um jornal? [riso] Saí do Jornal Novo porque tinha outras tarefas a desempenhar. Tive um jantar de despedida, e salvo um jornalista, todos estiveram, todos reconheceram que afinal não seria um perigoso direitista autoritário que ia criar um regime ditatorial dentro da redacção.

 

Porque é que nessa altura não quis ser um político frontline? Já sabia o suficiente para ser um dos actores políticos.

A política só me interessou enquanto missão momentânea, em momentos difíceis, para cumprir uma missão. A política como carreira, nunca me interessou.

 

Era o comprometimento com um partido que o impedia de dar esse passo?

Tudo isso. Não estou a criticar as carreiras políticas, são absolutamente necessárias. Nunca senti vocação para isso. Ser advogado e ter liberdade de pensar, de falar e de agir…, habituamo-nos a isso.

 

Insisto. A seguir, quando foi ministro de Mota Pinto, talvez tenha pensado: “Quero ou não quero ir para ali?”, e depois não foi. “Para ali” significava não ser só um ministro, poder ser primeiro-ministro.

Aquilo era um Governo de combate e travei esse combate. Depois fui convidado por vários partidos para ser militante, mas não quis mesmo. Depois da minha experiência governativa recusei sempre.

 

Conte-me mais desta experiência governativa. Não deixa de ser extraordinário que antes dos 30 anos fosse ministro.

Suponho que fui o ministro mais novo daquele Governo. O Prof. Mota Pinto era uma pessoa por quem tinha bastante admiração. Convidou-me directamente. A comunicação social estava ainda dominada pelas forças revolucionárias. A televisão era do Estado, a rádio, idem aspas. Havia ali um grande desafio: “desgonçalvizar“ a tomada dos meios de comunicação social. O Mota Pinto disse-me: “Há aqui um problema grave na comunicação social, preciso de alguém que tenha coragem, que tenha as suas características, que conheça a lei”. Achei que era uma missão indispensável naquela época.

 

O que é que o desgostou profundamente nestes dois anos? Nunca mais foi ministro e constantemente se falou do seu nome sempre que havia formação de novos governos.

Não foi essa a questão. Estava a prejudicar bastante a minha vida profissional.

 

Estava a deixar de ganhar dinheiro? Também era essa a questão?

Pude exercer essas funções políticas porque tinha tido uma carreira com algum sucesso que me permitiu ter algumas economias. Pude dar-me ao luxo de sacrificar a carreira por isso. Mas se continuasse a carreira política não podia continuar a ser advogado. E tinha bastantes encargos familiares nessa época. Tinha quatro filhos. Quando foi o Bloco Central, com o Dr. Mário Soares e o Dr. Mota Pinto, ambos insistiram muito para ir para esse Governo. Disse-lhes francamente que a razão principal era essa, que não tinha condições para poder continuar na política.

 

É como se a vida pessoal acabasse por marcar as decisões da vida profissional.

Claro.

 

Foi director da campanha de Freitas do Amaral em 1986. É talvez um dos últimos momentos em que politicamente está tão metido no ninho. Porque é que depois disso nunca esteve tão próximo dos partidos?

Recordando um pouco a história. Foi na minha casa que o Dr. Mário Soares e o Dr. Mota Pinto combinaram o Governo...

 

Conte lá isso. Porquê na sua casa?

Nunca revelaria esta situação não fosse o Dr. Mário Soares tê-lo feito. Antes da campanha eleitoral, o Dr. Mário Soares perguntou-me se estaria disponível para organizar um jantar em minha casa com o Dr. Mota Pinto, um jantar secreto. Tiveram algumas reuniões em minha casa onde combinaram a estratégia para o futuro. Ambos preocupados. A situação do país estava dificílima, à beira da intervenção do FMI.

 

Não me diga que agora está a organizar jantares entre Sócrates e Passos Coelho…

[riso] Ambos também preocupados com o intervencionismo previsível do General Eanes, no sentido de voltar ao sonho de um partido ligado ao militarismo. Combinaram que fosse qual fosse o resultado eleitoral iriam fazer uma coligação. Que seria primeiro-ministro quem ganhasse as eleições, que seria vice primeiro-ministro quem as perdesse, e que fariam essa coligação, não para distribuir lugares mas para fazer as reformas que eram necessárias para tirar o país da situação em que estava.

 

Até por causa disso é mais extraordinário ter recusado fazer parte. É a pessoa que faz a ponte entre os dois, que acolhe estas conversas, e que depois se retira.

Pelas razões que expliquei. Mais tarde, quando se colocou a questão presidencial, de 85-86, o bloco de direita não tinha candidato. Falava-se no general Firmino Miguel, no general Soares Carneiro, várias hipóteses. Eu próprio fui referido por muitas pessoas, PSD, CDS, tive vários contactos. Confesso que fiquei logo cheio de receio, comecei a pensar muito na minha vida.

 

Receio de quê?

De me meter numa coisa dessas. Para se ser político também é preciso ter vontade.

 

Ao mesmo tempo é lisonjeador pensarem em nós para uma candidatura à Presidência da República. Esse elemento não é despiciente, somos humanos.

Claro que não. Entretanto o Prof. Freitas do Amaral convida-me para almoçar no Sheraton. Havia dúvidas sobre se o Prof. Freitas do Amaral seria o candidato possível apoiado por um partido como o PSD; ainda havia aquela coisa do CDS, muito à direita. Quando ele me disse que estaria disponível para encarar essa hipótese, disse-lhe que o apoiaria se ele avançasse. Depois perguntou-me se estaria disponível para gerir a campanha. Era mais uma missão, que acabava no dia das eleições.

Essa campanha foi marcante para a democracia.

 

Foi marcante porque aquele que parecia o vencedor à partida, o Prof. Freitas do Amaral, acabou por perder na segunda volta. Foi também marcante pela recuperação do Dr. Mário Soares que partiu de 7%.

Extraordinário. Ambos eram adeptos da democracia política, ambos eram contra qualquer experiência tipo terceiro-mundista, protagonizada pela Maria de Lourdes Pintasilgo, ou próximo da visão de uma tutela meio militar protagonizada por Salgado Zenha. O facto de a segunda volta se ter disputado entre estas duas personalidades foi de certo modo fundador da democracia. É curioso que Manuel Alegre, nestas eleições, tenha tido um resultado tão fraco. Fundamentalmente porque apoiado pelo Bloco de Esquerda. O país, na sua estrutura psicológica e política, é no centro, ou centro-direita ou centro-esquerda, que reconhece as alternativas.

 

Mais por ser apoiado pelo Bloco do que por ser apoiado pelo Governo, com os níveis de popularidade em baixa?

Penso que sim. Apesar de tudo, se houvesse eleições legislativas o Partido Socialista tinha mais do que [Alegre teve] nesta votação. Aquela soma subtraiu.

 

Foi presidente da RTP entre 1980 e 1983. Nem nessa altura sentiu que era um homem poderoso?

Talvez não acredite, mas tenho sempre a noção da transitoriedade de todas as situações. De um segundo para o outro a nossa vida pode alterar-se radicalmente, ou porque contraímos uma doença, ou porque perdemos um grande amigo, porque a situação profissional em que estamos pode alterar-se.

 

Como é que nunca se deixou iludir?

Nunca me senti poderoso. Sou presidente da RTP hoje, será que amanhã continuarei a ser? Será que não me acontece qualquer coisa, um erro qualquer que cometa? Tantas interrogações.

 

Então, verdadeiramente, quem tem poder é quem tem dinheiro? Porque isso no dia seguinte não desaparece.

O dinheiro dá uma grande segurança. Não dá felicidade mas dá segurança. Se dá poder? Depende da forma como se utiliza. Nunca fui empresário, por isso não tenho o sabor do poder como empresário.

 

Houve um tempo em que era “o advogado do Champalimaud”. Agora diz-se que José Sócrates tem como advogado o Daniel Proença de Carvalho. É uma diferença de estatuto aos olhos da opinião pública. Não estou a dizer que tenha mais poder do que o primeiro-ministro.

Tenho muita honra em ser advogado de José Sócrates. Sou advogado dele em processos em que defendo os pontos de vista dele, mas onde temos uma posição de acusação de outro. Ele nunca precisou de mim para se defender do que quer que seja.

 

É advogado de pessoas de diferentes quadrantes políticos. O facto de ter um passado político e uma posição ideológica que é mais ou menos conhecida, marca as suas relações com os seus potenciais clientes?

Absolutamente nada. O advogado despe-se, enquanto advogado, de qualquer posição política própria. Posso defender pessoas que pensam o oposto de mim. Represento os seus interesses, não tem que haver uma identificação. A marca do advogado é essa: para exercer a sua profissão não se liga aos clientes. Isso é regra na generalidade dos advogados.

 

Quando vamos progredindo na carreira há tarefas consideradas menores que deixamos de fazer. Mas às vezes é também nessas coisas que sentimos um gosto especial. Como é no seu caso?

Às vezes tenho dificuldade em coordenar trabalhos de advocacia, tenho tendência a ser eu próprio a fazer tudo. Erro organizativo. Tenho muita dificuldade em satisfazer-me com aquilo que é feito por outros. Mas isso é erro meu, seguramente. O Direito é um instrumento que temos que dominar, mas onde os advogados se distinguem não é no conhecimento do Direito, é no conhecimento da vida, das situações, na forma como convencem das suas teses.

 

O que fez de si um excepcional advogado foi aliar as bases jurídicas ao conhecimento da alma humana?

Tenho essa preocupação.

 

Sei que tem sempre a preocupação de ser modesto e de não se deixar tomar pela vaidade, mas estamos num 7º andar, no centro de Lisboa, num dos maiores escritórios de advogados do país. Por uma vez não se sinta embaraçado com o sucesso que conquistou.

Sinto, sinto. Não sou capaz de me auto-elogiar. Não é excesso de humildade, é a natureza. Não me deslumbro.

 

Conheçamos um pouco da sua natureza e da sua história.

Tudo o que aconteceu na minha vida foi inesperado. Nasci numa pequena aldeia da Beira Baixa, em plena Guerra, num ambiente extremamente difícil, pobre, sem esperança. O estarmos aqui sentados, na posição em que estou, do ponto de vista profissional, foi uma surpresa. Sim, tenho algum orgulho nisso.

 

Como é que a Segunda Guerra, ou as dificuldades que decorriam da Guerra, chegaram à Soalheira?

Havia o racionamento. Os carros funcionavam a gasogénio, que já nem eu próprio sei bem o que é. Era uma espécie de fornalha, com carvão, e aquilo produzia um gás que servia para substituir a gasolina, que era escassa nessa altura.

 

Quem é que tinha carro na aldeia?

Duas ou três pessoas. O meu pai sempre teve carro. Recordo-me de o ver, e de eu próprio o ajudar, numa fossa, debaixo do motor, a fazer reparações. Um Citroën, em quinta mão, mas que funcionava. A minha mãe era professora primária, o meu pai era um pequeno comerciante. Embora tivéssemos uma vida muito modesta, comparada com vidas de outras pessoas, de grande penúria, era uma situação de privilégio. A maior parte dos meus colegas de escola acabou por emigrar. A minha mãe, com grande sacrifício, ajudou os irmãos a obterem um curso superior. Nomeadamente um irmão que era professor no liceu no Porto. Tinha a ideia que era fundamental valorizar as pessoas, e que os seus filhos (tenho um irmão) deviam continuar os estudos. Continuei os estudos num liceu em Castelo Branco, onde tinha uma tia, irmã da minha mãe, telefonista, e para casa de quem fui.

 

O que é que a sua mãe e o seu pai esperavam que fosse?

Que eu tivesse uma licenciatura. A minha mãe não gostou que tivesse ido para Direito. Tinha dos advogados uma imagem negativa. O meu tio, que, no fundo, era um funcionário público achava que o sobrinho, em quem depositava esperança, devia ir para Direito. Não tinha na família ninguém nessa área. Não conhecia sequer nenhum advogado ou juiz.

 

Fale-me da relação com ele. Para saber o que é que ele tentava realizar em si e porque é que tinha tanto ascendente sobre si.

Amigo de grandes figuras da cultura portuguesa, como António José Saraiva, Óscar Lopes, Ferreira de Castro. Era militante do Partido Comunista. Isso não era conversado. Nem julgo que alguma vez tivesse levado ao conhecimento dos irmãos a sua actividade clandestina. Era a pessoa que eu conhecia que mais me seduzia, pelo conhecimento, pela cultura. Convivíamos apenas nas férias, quando passava um mês na nossa casa, na Soalheira. Em minha casa havia livros, não muitos, mas havia. Passei a ser um frequentador habitual da biblioteca municipal.

 

Quando é que soube da ligação política do seu tio?

Muito mais tarde, quando estava na universidade, e depois do 25 de Abril tornou-se possível que ela fosse conhecida de todos. Inclusivamente quando morreu foi posta uma bandeira do PC sobre a urna, coisa que horrorizou a minha mãe e a minha tia. Era uma família enraizadamente católica. Sem ele, provavelmente, nunca teria feito a vida que fiz. Teria tido menos aspiração. Teria ido para Letras e hoje estaria reformado de professor. Senti uma grande perda quando morreu.

 

O seu pai era um defensor do regime salazarista? Um defensor acrítico?

Não se falava de política em minha casa. O meu pai recordava-se do tempo da Primeira República, e tinha as histórias que ouvia ao pai. A visão que tinham dela era de caos, indisciplina, insegurança, a que Salazar pôs cobro. Salazar era uma pessoa respeitada, fiável, quer pelo meu avô paterno quer pelo meu pai. Este era o ambiente em que eu vivia. Não discutia sequer com o meu pai. Desgostava-o que o filho tivesse posições de agressividade em relação ao regime.

 

A relação era próxima? Ou era, como muitas vezes são na juventude, combativa?

Reconheço hoje que eu era muito crítico do meu pai. E acabei por ser sempre. Embora tivesse com ele uma relação afectuosa. A relação com a minha mãe, ao contrário, foi sempre muito próxima, cúmplice. Era uma pessoa extraordinária que eu respeitava imenso, admirava imenso [diz com ênfase “imenso”]. Mesmo mais tarde, quando veio para Lisboa, e os tempos mudaram, e os costumes mudaram, e eu tive um divórcio, coisas que poderiam desgostá-la, compreendeu tudo muito bem.

Foi sempre muito solidária comigo. Na altura em que tive intervenção política e se dizia muito mal de mim, e se faziam caricaturas a meu respeito, e me chamavam nomes pouco recomendáveis, ficava bastante preocupada. “Daniel, cuidado. Será que não te estás a expor demasiado?” 

 

Foi ela, sobretudo, que lhe infundiu confiança? E a convicção de que podia ser quem quisesse, podia chegar onde quisesse.

Não. A minha mãe queria que eu fosse um bom cidadão e uma pessoa que soubesse governar a minha vida. Dizia muitas vezes que tinha sido uma surpresa ver que eu tinha atingido lugares de destaque na vida pública. Sentia-se orgulhosa. Mas era uma coisa inesperada. Nunca pensou que pudesse acontecer. 

 

Em que momento da sua carreira estava quando ela faleceu? Até onde é que ela o viu subir?

A minha mãe faleceu há meia dúzia de anos, com 94 anos. Foi uma vida longa, muito bonita, e esteve sempre bem.

 

Uma última pergunta: vamos imaginar que tem um problema qualquer; que advogado é que contrataria? A quem é que se confiaria?

É a pergunta mais provocatória que me fez. Tenho imensos amigos advogados, muitas pessoas em quem confio. Não sou capaz de lhe dar um nome.  

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011