Catarina Furtado
Falou da Maria Beatriz. Referiu-se a ela como «a minha filha», e só uma vez lhe chamou Beatriz. Antes de se chamar assim, a criança que nasceu no Dia da Espiga era chamada pelo pai e pela mãe de Papoila.
Encontrámo-nos num café perto de casa, com vista para o rio e os telemóveis alinhados sobre a mesa. Falou com esperada paixão da felicidade em que vive. Do que a fez ultrapassar os seus limites e inseguranças. De gostar de antecipar as coisas para não ser submergida por elas. De não desmerecer o pai. De assumir a honestidade como linha essencial. De ser a Catarina Furtado e de isso já ser uma identidade. A nossa menina é já uma mulher madura.
No outro dia estava a vê-la no «Dança Comigo» e achei-a mais parecida com a sua mãe. Perguntei-me se essa identificação, mesmo em termos físicos, não se acentuou depois de ter passado pela maternidade. Isto já lhe ocorreu?
Não. Não me lembro da minha mãe numa fase em que gostaria de me lembrar dela: grávida da minha irmã. Mas vi fotografias. Durante a minha gravidez falava com a minha mãe e usava o cabelo muito à semelhança do que ela usava nos anos 60. Depois de ter a minha filha, isso não me ocorreu mais. Não sou parecida com a minha mãe, a minha irmã é muito mais.
Durante a gravidez, essa imagem foi procurada?
Não, foi comentada. Na minha cabeça há uma imagem [que corresponde a] ser mãe. Um bocadinho lírica, do ponto de vista estético. O cabelo é escorrido, uma imagem branca, em que os olhos brilham imenso. Tentei recriar isso de alguma forma.
Essa visão da maternidade é romântica, algo encantatória. Antes de começarmos a gravar dizia-me que a maternidade é muito mais do que uma coisa maravilhosa.
É diabólica.
Por ser uma coisa que vai além do seu querer, do seu ser? Como uma possessão.
Há coisas que se comprovam, confirmam o que eu pensava. Mas fui confrontada com outras, uma série de surpresas. A forma como, por exemplo, me fui adaptando à minha filha… Há aquelas mães que demoram a gostar dos filhos, há aquelas mães que têm uma paixão imediata. Fui mais por aí. Mas fui surpreendida, porque imaginava-me super-protectora, aflita com tudo e sou muito despreocupada.
Descobriu-se outra?
A maternidade também me deu uma visão diferente daquilo que eu achava que era. [A minha filha] é um vício grande, é uma dependência saudável. Confronta-me permanentemente com o ter paciência, com os limites. O amor incondicional: existe uma expressão para o designar, mas na prática é um sentimento. É uma coisa que vem do umbigo. E onde me senti mais livre até hoje foi em São Tomé e Príncipe, num sítio onde achei que estava no umbigo do mundo. Aquilo não nos deixa tombar, põe-nos na vertical, é o centro, é o mais indispensável. A filha é isso também.
O que foi condição para a sua liberdade?
Ter espaço, muito espaço. Tudo aquilo respirava... Obviamente que há a vida antes de se ter um filho e depois de se ter um filho. As coisas que mais se alteram são do dia-a-dia. Eu fugi algumas vezes e agora já não posso, porque tenho-a a ela. Tenho que lhe dar atenção, e um dia tenho que lhe dar satisfações.
Como é que a sua filha é simultaneamente expressão de liberdade e a prende aos dias e à responsabilidade?
Ter um filho não é uma prisão. Há a responsabilidade de educar, mas é muito mais livre do que se possa pensar. Desde que se consiga organizar o lado prático, é uma folha em branco, onde nós as duas, ou os três, podemos desenhar. E isso é criar, é estar livre. Faço o paralelismo com o sítio onde respirei muito....
A sua vida, nesta fase, é dominada pela bebé e pela descoberta. É um momento em que a vida acontece deveras, em que não se está a cumprir calendário.
O meu medo é que a vida aconteça depressa de mais. Que ela se desenrole mais depressa do que eu desejaria. Eu vejo o tempo passar e não me apetecia nada ver o tempo passar. Ela cresce muito depressa, eu faço muita coisa ao mesmo tempo e gostava de não estar tão consciente dessa passagem. Gostava de segurar mais o tempo.
Cristalizá-lo. A infância também é mitificada como um tempo ideal. Mas depois existe o processo inelutável do crescimento.
Não sei se a infância foi o tempo ideal da minha vida. Foi uma das passagens da minha vida em que fui muito feliz, de facto. Tive uma atmosfera fantástica para poder ser criança.
A maternidade pô-la em contacto com a sua própria história e com a sua infância?
Em algumas situações, não muito. A infância dela será muito diferente da que tive. Havia uma liberdade diferente. Brincava na rua, com caricas, no passeio de casa, no Bairro Alto, em Campo de Ourique. Hoje em dia, não sei se não ficarei com receio que ela brinque na rua... Como é que faço para que ela não seja igual a todas as crianças, não fique a ver televisão e só a ver televisão?
Debate-se com os dilemas da educação. Perguntaram a Freud se havia uma educação que era a certa. E ele respondeu que se podia experimentar qualquer uma, porque estavam todas erradas.
A certa é aquela que nos convém, que nos veste. Quando eles vêm para casa são minúsculos, e somos confrontados, “se a meio da noite acontece alguma coisa, o que é que faço?”. E houve uma intuição imediata, uma espécie de kit que saltou que nem Sport-Billy, tive ferramentas para tudo, para as birras, o choro, as cólicas.
O parto: antecipava-o como um momento difícil?
Sempre tive esperança que as coisas corressem muito bem, também pelas minhas características_ diziam-me que tenho anca de parideira. Mas não deixei de ter medo. Sempre desejei muito que fosse um parto normal, apesar de poder ser mais doloroso. Tive epidural só até um certo ponto, porque não queria ficar demasiado anestesiada. Senti a minha filha nascer. Foi um dia abençoado, o Dia da Espiga, e sempre foi chamada de Papoila por mim e pelo João... Alguém escreveu muito bem esta história...
Quais são os agentes de mudança nas nossas vida? Normalmente, têm que ver com a morte e com o nascimento. E com o amor, claro. Estas são as forças motrizes?
Da minha vida? Felizmente tem sido o amor, e agora o nascimento. A morte ainda está em stand-by. O trabalho, às vezes, também nos move.
Tem a noção de nada do que está para trás subsiste com a mesma força?
Há muita gente que diz que assim que nasce uma criança tudo é completamente secundário. Eu não digo isso. Estou apaixonada pela minha filha, ela é a minha prioridade, mas não estou a sofrer de uma amnésia geral, enclausurada entre os babetes e as fraldas. Tenho conseguido gerir as coisas muito bem. Temos conseguido as duas namorar imenso. Na prática, produzo menos em termos de trabalho. Comecei a trabalhar muito cedo, porque me foi pedido. Mas nesta primeira fase digo que não a muitos convites.
Continua a existir enquanto pessoa, e não exclusivamente na dimensão de mãe.
É mais superficial, mas também fundamental, a questão do corpo e da mãe enquanto mulher. É muito importante a mulher continuar a gostar dela, dar-se bem consigo. (Agora passamos da Máxima para a Cosmopolitan!) Vejo imensas mães, quando vão às consultas, têm o brilho de terem sido mães, estão com seu rebento; mas depois estão um bocadinho esquecidas de si próprias, engordaram muito ou já não ligam àquilo que vestem… Eu saí da maternidade e não saí nada com vontade de “ai, meu Deus, o chinelo”. Eu sabia, eu sou muito desconfiada e faço muitas previsões; sabia que, se me arrastasse, era eu, era ela, era o casamento.
Tem uma vontade enorme de antecipar as coisas para não ser supreendida e submergida por elas. Diz que a maternidade é diabólica no sentido de ir além do que pôde imaginar. Foi a única coisa que verdadeiramente ultrapassou os seus limites?
Acho que sim. E o amor também. Não me posso alongar muito, porque não gosto, depois, que estas coisas sejam publicadas. Mas no amor também.
Antecipa o que vai ser a sua vida daqui a cinco anos, dez anos?
Não penso. Tenho vontades, em vez de ter uma estratégia montada. Por exemplo, tenho imensa vontade de voltar a fazer teatro. Essas vontades precipitam que as coisas aconteçam, porque sou empreendedora por natureza.
Por um lado, quer imenso antecipar as coisas e controlá-las. Isso pertencesse ao imediato, a um lastro de tempo que é curto. A longo prazo, não premedita, não planeia.
Eu quero antecipar para não ser surpreendida, mas também para poder controlar as coisas. Quero ser eu a passar pelas coisas e não as coisas a passarem por mim.
Mas isso implica sempre uma atitude de domínio em relação às circunstâncias.
Tenho essa permanente característica. Depois há esse paradoxo: não gosto de projectar as coisas a longo prazo. Tira-me uma magia de que também gosto.
Tudo aconteceu muito cedo na sua vida. Durante estes anos, houve uma procura daquilo que é a sua identidade e propósito? Ziguezagueou entre o jornalismo e a apresentação, no apogeu do sucesso mudou-se para Londres para estudar representação, tornou-se embaixadora das Nações Unidas.
Sim, continuo nessa procura. Já não procuro é ter uma definição para mim.. Com 34 anos, continuo a explorar os campos, mas deixei de me preocupar em ter uma identidade.
Ou então é uma identidade múltipla: é-se isto e aquilo e aqueloutro.
Acontece-me imensas vezes. Antigamente ficava inquieta, e como queria muito afirmar-me numa área ou noutra e que me levassem a sério… Acontece imensas vezes perguntarem-me nos guichets: “Que profissão é que ponho?”. Uns dias digo apresentadora, outros dias digo actriz.
Quando é que essa inquietação amainou?
Fui acalmando à medida que fui fazendo coisas com as quais me senti bem, e que tinham um feed-back de respeito. Hoje em dia, com toda a imodéstia, sinto que conquistei um lugar, ou vários lugares. Isso está muito claro em mim, e deu-me uma grande segurança. Não quer dizer que cada projecto que eu assuma não tenha aquele nervoso inicial, para que as coisas corram bem, e não quero falhar. Foi de há cinco anos cá. Comecei a trabalhar muito enquanto embaixadora das Nações Unidas. Foi importante a mudança para a RTP. No teatro produzi e representei essa peça.
Enquanto embaixadora das Nações Unidas, é fácil pensar que o que mais impressiona é o contacto com a miséria absoluta...
Trabalho muito lá fora. Tenho um mini-poder que me deu confiança para ir para a frente com as ideias que tenho, apesar de não ter quase nenhum bolso de manobra. Não é um trabalho remunerado, em Portugal há dificuldades de apoio, mas eu mexo-me para conseguir as coisas.
O que acabou por acontecer é que ser a Catarina Furtado transformou-se, por si só, numa identidade, independentemente das áreas em que se manifesta.
Hoje em dia é um bocadinho isso.
Mesmo que não tenha um poder extraordinário em termos financeiros, tem um nome que é reconhecido e atendido. Por exemplo, se telefonasse para a presidência, estou certa de que o Professor Cavaco Silva atenderia o telefone. Como é que se mede o poder?
Dinheiro, muito. Influência, sim, mas acaba sempre no dinheiro. Confronto-me com isso. Há um lado que funciona muito bem sem dinheiro: palestras, ir a escolas, influenciar os jovens, fazer debates, promover a informação – vou pelos meus meios. Tenho alguma influência, e sou atendida. Há imensas reuniões, tiram-me fotografias no gabinete, mas depois falta o dinheiro.
Libertou-se da imagem de ser “a filha do Joaquim Furtado”. Mesmo assim, exigia para si um rigor e uma excelência de que ele se orgulhasse. Como se não pudesse desmerecer a reputação do seu pai e a educação que ele lhe deu. Isto tem alguma coisa que ver com a sua insegurança?
Acho que sim. Queria provar que não foi em vão a educação dele e da minha mãe, que ouvi atentamente os sermões em relação à língua portuguesa, que sei que não é “póssamos”. E queria que ele gostasse daquilo que eu faço. Hoje sei que eles são muito orgulhosos de mim.
Os filhos imaginam que só se forem extraordinários e corresponderem às expectativas é que merecem um amor incondicional.
Havia até agora um receio de não corresponder àquilo que eles tinham na ideia para mim. Mesmo sendo eles aquele tipo de pais que nunca quiseram que eu fosse médica, nem advogada, nem nada disso. Mas que correspondesse muito à integridade, à honestidade, aos princípios. Sei que nisso, tanto eu como a minha irmã, foi [tudo passado a] papel químico!
Quando lhe escrevem nas cartas “quero ser a tua irmã” ou “quero ser a Catarina Furtado”, que significado tem isto para essas pessoas? Aparecer na televisão e ganhar dinheiro? Como é que o dinheiro e a fama mudaram a sua vida?
Sinto um agradecimento por as pessoas gostarem de mim, serem aquilo que se chama minhas fãs. Mas, por outro lado, tenho imensa dificuldade em percebê-las. E não é com nenhuma leviandade que respondo às cartas. A não ser coisas concretas, a pedirem ajuda ou conselhos, nas coisas do género das que acabou de dizer, há uma embriaguez em relação à realidade que me faz confusão. Apesar de fazer parte do espectáculo, é demasiado irreal. Quanto ao dinheiro e à fama, agradeço sempre imenso, em segredo.
A Deus? A quem?
Não sei muito bem a quem, mas sussurro. Se calhar a Deus. E não é pela fama ou dinheiro, é pela harmonia de coisas, é por sentir que fui abençoada. Eu não queria ter mais dinheiro do que tenho, não preciso. Não tenho sonhos de ter um barco, uma casa em Itália, outra em Los Angeles. Tenho essa segurança, que me dá imensa auto-estima: consegui estar onde estou só pelo trabalho.
Ainda que materialmente a vida da sua filha possa ser mais confortável do que aquela que os seus pais tiveram...
Vou passar-lhe exactamente aquilo que recebi. É aí que quer chegar?
Não é bem. No fundo, penso no que é que fica quando os anéis se vão embora.
Essa é uma boa imagem. Está o meu pai, a minha mãe, eu, a minha filha e o meu marido. Se os anéis forem ao ar, fica aquilo que foi transmitido. Está no sangue, na pele. Não está nessas coisas. Isso é fundamental que ela saiba.
O que é que pode correr mal na sua vida? O que é que poderia significar um desabamento?
A morte e doença.
E se as pessoas deixassem de gostar de si?
Acho impossível! As pessoas de quem eu gosto, as pessoas da minha vida? Completamente impossível. Até porque quem semeia colhe...
Publicado originalmente na revista Máxima