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Anabela Mota Ribeiro

Maria José Morgado

19.12.13

Do que falámos? Dos mecanismos da corrupção, “velha como o mundo”. De Portugal ser “o campeão das Parcerias Público Privadas”. O que há nelas?, corrupção ou esbanjamento de dinheiro públicos?

Do “país de funcionários públicos” que somos, onde o dinheiro do Estado, o empregador, o animal perigoso, foi tratado “como se não fosse nosso”.

De obras públicas. “ Em Portugal têm uma regra: as derrapagens”.

De coisas absurdas. “O bater das asas de uma borboleta no tribunal pode provocar um atraso de 15 anos num processo. A simples falta de um toner pode provocar uma prisão preventiva.”

De a justiça ser o bombo da festa, de se assistir a uma tabloidização da justiça.

Falámos da existência de raters terroristas. Onde está a solução?

Não falámos do neto que está para nascer, nem do marido, o fiscalista José Luís Saldanha Sanches, falecido há um ano. Ainda que estes apareçam no discurso. Quando se fala do ciclo da vida. (Versos de Sérgio Godinho: “E o sol, como é costume, foi augúrio de mudança, sãos e salvos, felizmente…”)

Maria José Morgado foi considerada a mulher mais poderosa do país. É responsável pelo DIAP. Nessa manhã, como sempre, fizera uma hora e meia de ginástica. Mens sana in corpore sano. Fez 60 anos. 

 

 

Como é que isto se endireitava?

Essa é a pergunta pior de todas, porque não há um único remédio. Não há um elixir. Lugar comum: precisamos de um país empreendedor, de gente com garra, capaz de emergir do choradinho e do fatalismo. Temos de reconhecer que há dois países. O que vive sob a capa da protecção do Estado, que nunca quis fazer nada, e o país da luta, da inovação. Se esse país emergente conseguir rasgar caminho e impor-se sobre o país da lamúria, algum dia nos endireitaremos. Mas não vai ser tão cedo, há um caminho longo a percorrer.

 

Quando lemos textos antigos, de romancistas a historiadores, percebemos que isto que vivemos parece inscrito no ADN colectivo. Esta propensão para o fado, para o queixume, este estar à beira do precipício.

É ler o Portugal Contemporâneo do Oliveira Martins – está lá tudo. A dependência das famílias do Estado. Toda a gente querer arranjar emprego no Estado para ter segurança. Ninguém querer arriscar. Não haver empreendedorismo.

 

Porque é que lidamos mal com o risco?

Não gosto de falar sobre o país. É um tipo de retórica que não me pertence. Gosto de perceber o país naquilo que diz respeito à minha profissão. Pegando na sua pergunta, vou dar-lhe uma resposta de historiadora, que não sou: nunca fizemos a Revolução Industrial. Nunca tivemos um desenvolvimento tecnológico e industrial que desse força ao mercado. Como o mercado não tem força, a sociedade e as empresas habituaram-se a depender excessivamente do Estado. O Estado [converteu-se] num empregador. Temos um país de funcionários públicos. Essa é a verdadeira tragédia portuguesa. Agora que não há dinheiro, e chegou o FMI, e não tomámos mais cedo as medidas que o FMI nos obriga a tomar…

 

Mais cedo, quando?

Devíamos tê-las tomado voluntariamente, proactivamente, antecipadamente. Pelo menos dois ou três anos antes. Agora que a receita chega, percebe-se que o nosso problema é esse. Não há livre concorrência. Não há um culto do mérito. Da ética. Mesmo a ética na governação.

 

A confiança dos políticos está nas ruas da amargura.   

Foi preciso chegarmos a uma situação dramática, como a actual, para se começar a sentir a necessidade de um discurso da ética. Isto tudo foi enfraquecendo o país, enfraquecendo a vontade das pessoas, enfraquecendo a massa crítica. Funciona como um mecanismo corrosivo, a puxar-nos para trás. É como se tivéssemos umas argolas de ferro que não nos deixam avançar.

 

Estava a ouvi-la e a pensar que essa podia também ser a descrição para o fenómeno da corrupção.

A corrupção é uma faceta de um país pobre. A corrupção que vem da pobreza produz ainda mais pobreza. Amortece os mecanismos da livre concorrência, ou apaga-os completamente. Apaga o mérito. Apaga a capacidade de correr riscos. Cria dependência. Voltamos ao mesmo: ao Estado. O Estado como sector gigantesco – um animal perigoso, como já alguém lhe chamou.

 

Um exemplo dessa dependência.

Não se pode fazer nada, não se pode abrir um negócio, sem a assinatura de alguém na administração pública.

 

Ou uma palavrinha.

As duas coisas. A palavrinha antes da assinatura.

 

Sabemos que há as grandes negociatas e sabemos que há a pequena corrupção (“dê lá um jeitinho”, “meta lá o rapaz”). São próprias do país pobre que somos?

Uma questão prévia: a corrupção é sempre instrumental. Se as pessoas não são honestas, a corrupção medra. Mas ela vai instalar-se em todos os níveis da sociedade e do Estado. Temos corrupção aos mais variados níveis. Temos o chamado speed money – a pequena corrupção junto da administração pública.

 

Coisas como pôr a pasta no cimo de uma pilha de processos?

Apressar a decisão. É a corrupção directa, imediata, e que tem dois sujeitos. O passivo, que é quem decide, e o activo, que é o interessado, que vem de fora, e tem um problema para resolver. Isso é velho como o mundo. Nos países do terceiro mundo é endémica, viral. Quer porque os funcionários públicos ganham muito pouco, quer porque são pouco qualificados. Quer porque não há códigos deontológicos, quer porque não há fiscalização. Acontece por apodrecimento das próprias estruturas. As instituições ficam vulneráveis.

 

Depois, há a corrupção da grande golpada.

Uma corrupção fabulosa, multifacetada, que nunca acontece numa ligação directa. Acontece por contratações. Adjudicações. Contratações sem concurso. Grandes decisões a respeito de aquisições de bens e serviços para o Estado. São actividades que o Conselho de Prevenção contra a Corrupção considera de risco agravado. Decisões importantes que movimentam grandes lucros para determinadas empresas. Se não houver competência, transparência, respeito pelos dinheiros públicos, podem acontecer fenómenos de grande corrupção.

 

Acontecem, como sabemos. As parcerias público-privadas (PPP) são, potencialmente, um dos maiores cancros?

As PPP à portuguesa – elas existem em toda a Europa, mas Portugal é o campeão das PPP – são uma espécie de renúncia ao mercado da livre concorrência, em que o Estado dá determinados ganhos a determinadas empresas – acabam por ser sempre as mesmas – com todas as vantagens para o interesse privado e com todas as desvantagens para o interesse público. O que significa para nós milhões e milhões de prejuízo no futuro.

 

A expressão mais constante: hipotecar as gerações futuras.

Hipotecar a riqueza futura. Isso está explicado no livro do Conselheiro Carlos Moreno, que analisa muito bem os mecanismos perversos e nefastos para o erário público das PPP. São, em geral, más decisões, em que parece que o interesse do Estado não foi devidamente protegido. Não é que eu tenha alguma coisa contra o interesse particular. Mas quando há um contrato, tem de haver equidade. Muitas vezes, essas PPP traduzem-se numa desigualdade ilegítima em relação aos dinheiros dos contribuintes. Produziu-se obra, mas essa obra tem atrás de si prejuízos gravíssimos que vamos ter de pagar com sangue, suor e lágrimas.

Quando falamos de más PPP, não sei se houve corrupção no sentido típico do termo. Mas sei que houve esbanjamento do dinheiro público.

 

Isso é um outro crime?

Pode não ser crime. Mas pode envolver responsabilidade financeira. Temos é de ter a noção que todo o esbanjamento de dinheiro público, a incompetência ao nível das decisões (dos altos cargos políticos), a falta de prestação de contas públicas, cria um plano inclinado. Viscoso. Que nos empurra fatalmente para fenómenos de corrupção. Porque criam oportunidades! Se não há controlo, se há incompetência, se há esbanjamento… Se há alguém que vê a oportunidade de ganhar dez vezes mais do que seria justo… O que devemos exigir é que os negócios do Estado sejam escrutinados.

 

De que maneira?

Devia existir um portal onde fosse possível acompanhar todos os gastos com contratações do Estado. Um portal onde o Estado presta contas sobre a maneira como gasta o dinheiro do contribuinte. O mal é termos tido durante tantos anos – e falo do passado – governantes que tratavam o dinheiro do Estado como se não fosse nosso. Se fosse o dinheiro deles já tratariam de maneira diferente. Quando, ao nível da opinião pública, se levantavam vozes a esse respeito, isso era tratado como se fosse um justiceirismo radical. Estamos a ver agora que quem fazia denúncias há seis, sete anos, infelizmente teve razão antes do tempo.

 

Está a falar das derrapagens das obras públicas?

Casos emblemáticos: estádios do Euro 2004. O meu marido [Saldanha Sanches] e eu fomos crucificados por atitudes anti-patrióticas. Por denunciarmos o despesismo e o esbanjamento do dinheiro público com a construção daqueles estádios. Agora, até já há estádios à venda. Os estádios transformaram-se numa corda de enforcar das autarquias. E do contribuinte.

 

O mais difícil é encontrar uma obra cujo orçamento não tenha derrapado.

As obras públicas em Portugal têm uma regra: as derrapagens.

Não sei se é por incompetência dos gestores públicos se são outros fenómenos. A Casa da Música, que é uma obra belíssima, teve uma derrapagem de 300%. Mas o túnel do Terreiro do Paço…, e outras. 

 

Chegamos a uma encruzilhada. Há anos que as pessoas se queixam do despesismo. Há anos que se ouve dizer que a lei é boa, a aplicação é que falha. Há anos que as pessoas se sentem desmoralizadas porque, apesar dos rumores, todos os grandes processos parecem dar em nada.

Acho que não chegámos a uma encruzilhada. Estamos sempre a chegar a encruzilhadas. Na encruzilhada ainda há escolha. Agora é pior. Ou caímos no abismo ou conseguimos salvar-nos do abismo. Na Justiça temos um problema sério que nunca é agarrado, que é a gestão e organização dos tribunais. Trabalha-se muito, há gente muito dedicada, há condenações, há acusações, há até resultados (não são proporcionais aos desejáveis; quando são, não são conhecidos). Mas temos ao nível do funcionamento da máquina judiciária irracionalidades e aberrações que davam para fazer um museu do desperdício dos dinheiros públicos. O nosso grande problema é pensar que fazemos reformas com leis. Há leis boas e há leis más, e há uma grande sobreposição de leis. Acontece que não temos gestão e organização que nos permita funcionar de forma moderna. Nem sequer temos um sistema informático verdadeiro!

 

Tem computadores – esses são visíveis. Está a dizer que os processos daquele edifício em frente…

Os processos estão todos em papel.  

 

E não têm uma relação com os computadores deste edifício?

Com os computadores, não têm. Têm com os processos que saem deste edifício. Saem em papel daqui para o tribunal de julgamento. Cada tribunal é uma base de dados, que trabalha em sobreposição, e, como tal, não trabalha em rede. Um magistrado – não por razões supérfluas, mas de serviço – se precisar de aceder a dados de outros processos que estejam noutros tribunais, não pode fazê-lo. Não temos rede informática internamente. Mas também não temos entre Ministério Público e as polícias. Os processos transitam em papel com toda a morosidade que isso representa. Não há inter-operabilidade – que é uma palavra que os políticos adoram – entre os diversos sistemas. Toda a gente adjudicou a uma empresa a construção do seu sistema informático. O que é que isto representa?

 

Inoperabilidade? Desperdício?

Desperdício monstruoso dos dinheiros públicos. E maior morosidade, ainda. Ainda! Como não estão criados os interfaces, esta não é a tecnologia do automatismo do trabalho. O magistrado não tem culpa disto. A polícia também não tem culpa disto.

 

Alguém há-de ter a culpa disto.

São culpas políticas. Estas decisões foram tomadas ao nível governamental. E não estão previstas em nenhum código penal. Não temos um crime de gestão política danosa. Podíamos ter – tenho um colega que muito estimo que é defensor dessa incriminação.

 

Carlos Moreno defendeu que os políticos fossem responsabilizados…

Responsabilidade financeira. Essa está prevista. Acontece que as auditorias do Tribunal de Contas, que são muito competentes, não têm conduzido à condenação em julgamento dos responsáveis financeiros pelas más decisões. O TC faz as auditorias, detecta os problemas, mas depois tem de ser o Ministério Público a fazer a acusação e a apresentar o arguido a julgamento. Isso não tem acontecido as vezes necessárias.

 

Tudo o que descreve parece muito desengonçado. Como um corpo que não está articulado.

Ou um carro com rodas quadradas. É preciso empurrar muito, empurrar muito, de vez em quando anda um bocadinho, depois pára outra vez. Nunca desliza. É um corpo sem cabeça, sem braços, sem pernas. Como se fosse uma paramécia. Mas as paramécias ainda têm alguma unidade… [riso]

 

A Justiça em Portugal é isso?

Não. As pessoas gostam muito de atirar as culpas para os ombros dos magistrados e vão para casa muito felizes e dormem descansadas. Isso não é bom para ninguém, nem é correcto. Em matéria de gestão, organização e informatização, de arquitectura dos tribunais, os magistrados não têm uma palavra sequer.

 

Essa decisão é tomada pelo Ministério da Justiça. Em última instância, o responsável é o Ministro da Justiça.

Com certeza. E Governo. E verbas para o efeito… No DIAP de Lisboa trabalham 200 e tal pessoas. Interagimos com os órgãos de polícia criminal. A contabilidade que permite o nosso funcionamento não é da nossa responsabilidade. Não temos autonomia financeira. O Ministério da Justiça é que define qual a fatia de verbas que nos afecta. Tenho de manifestar as necessidades, fundamentá-las e quase implorar [que nos dêem meios]. Tenho uma autonomia com mão estendida. Evidentemente tenho que fazer muito com pouco. Os funcionários não dependem da disciplina nem da hierarquia dos magistrados; dependem do conselho dos oficiais de justiça, que decide a sua colocação e medidas disciplinares. Ou seja, eu nunca sei com que funcionários posso contar. Dentro do próprio ministério da Justiça há sobreposição de organismos com funções semelhantes para a administração da máquina judiciária. Tudo isto produz um fenómeno de desculpabilização mútua.

 

A culpa morre solteira.

Mas é que morre mesmo. Porque está diluída por um aracnídeo de responsáveis. E cada um tem apenas um bocadinho dessa responsabilidade. Nunca responde pelo resultado final. O bater das asas de uma borboleta no tribunal pode provocar um atraso de 15 anos num processo. A simples falta de um toner pode provocar uma prisão preventiva. De quem é a responsabilidade deste preso preventivo? A falta do toner implicou que a fotocopiadora não funcionou naquelas 48 horas. O secretário teve de pedir o toner à direcção geral da administração da justiça, esta teve de pedir a verba a não sei quem, depois não sei quem a mais não sei quem... Ninguém teve culpa.

 

E ficamos completamente enredados na teia.

Isto é uma teia muito latina em que não se pede contas a ninguém, ninguém responde por nada. Eu respondo por aquilo que faço. Um juiz, quando assina um despacho, responde por aquilo que assinou. Estamos metidos numa máquina em que há muitas pessoas a responder por partículas de decisões, e não pela decisão na sua totalidade.

 

Imagine que explicava isto à troika…

Eles devem ter sabido.

 

Li um artigo no qual se dizia que quiseram saber como funcionava a Justiça em Portugal. Responderam-lhes que não era possível explicar e açambarcar tudo isto, tal a complexidade. Então afunilaram e quiseram saber como se fazem as insolvências.

Tiveram razão, porque é importante para a economia. É preciso começar por algum lado. Quando vai descer uma escada, não desce os degraus todos de uma vez, senão fica politraumatizada. Temos de descer os degraus um a um.

 

Depois da sua explicação, que me deixa aterrada…

Não devia deixar. Se entrar no portal do Ministério da Justiça perceberá a variedade de organismos e a variedade de competências para tratar da variedade de assuntos. As pessoas gostam mais de se aterrarem do que de se informarem. Tornou-se fácil no país transformar os juízes e o Ministério Público no bombo da festa. Também é verdade que temos culpas. Podíamos ter feito coisas de maneira diferente. Mas começou-se a reforma pelo telhado. Começar pelo mapa judiciário é começar a reforma pelo telhado. Vai ser uma tragédia, porque não há funcionários, nem magistrados, nem dinheiro. O mapa judiciário é uma bandeira a brilhar no horizonte. Uma bandeira que não alcançamos.

 

Repito a minha primeira pergunta: como é que isto se endireitava?

Estamos melhor agora do que estávamos há dez anos. Tenho 30 e tal anos de magistratura, e estamos melhor. Mas há coisas que não mudaram. Passámos a ter computadores – para substituir a máquina de escrever e para ter uma base de dados em casa sítio de trabalho. Como é que isto se endireita? Não vai encontrar uma resposta. Ou encontra, e será uma resposta pouco séria. Só nos resta lutar e trabalhar. Endireita-se lutando e trabalhando.

 

Precisamos de uma estratégia, para pôr a máquina a funcionar num determinado sentido, para lutar e trabalhar num determinado sentido.

Na justiça cível é ultra-prioritário o controlo da acção executiva, alguma velocidade, capacidade de fazer execuções e ressarcir os credores. Na justiça penal os problemas são diferentes. No sistema anglo-saxónico há uma gestão por objectivos no combate ao crime. No sistema continental, até há pouco tempo não havia prioridades de investigação de política criminal. É uma política com um fosso enorme em relação à prática.

 

Na prática, é preciso escolher.

Na prática, uma comarca que recebe mais de 65 mil inquéritos por ano, como é o caso do DIAP Lisboa, não pode despachar tudo. Na panóplia de ameaças criminais, quais são as que devem ser atacadas primeiro? Se ler a lei, vai ver que são prioritários praticamente todos os crimes do índice do Código Penal.

 

Se são todos…

… não é nenhum. Objectivos? Findar mais processos do que aqueles que entram. Princípio vital para não acumular e haver produtividade. Sabe como é que se estabelecem as prioridades? Por força da natureza das coisas, os presos e os processos em risco de prescrição. Politicamente, alguém responde por este sistema de prioridades? Na prática, nós, que estamos aqui, no terreno, como é que podemos responder? 

 

Vivemos num clima de impunidade.

Há uma percepção de impunidade na opinião pública, que é diferente dos resultados. Porque há condenações.

 

A opinião pública é bombardeada com casos mediáticos. 

É bombardeada de forma irregular. Conhece os casos sonantes que não são a radiografia do dia-a-dia dos tribunais.   

 

Nesses casos, normalmente, ninguém acaba preso. A montanha pariu um rato. Fica-se num perigoso sentimento de desconfiança em relação à justiça.

Pode haver um défice de prisões em relação a certo tipo de ameaças criminosas graves. Se quisermos falar de forma quantitativa, não há uma proporcionalidade entre as acusações e as condenações. Mas reajo mal quando me falam de “quem é que está preso, quem é que não está?”. Entramos em concepções totalitárias. Deixámos de fazer as condenações necessárias para repor os valores sociais que foram violados com os crimes? E é isso que mantém o ensinamento às pessoas do que é certo e errado. Na corrupção essa é uma falha sistemática. Para dizer o seguinte: as pessoas usam a análise crítica estatística para não fazerem a análise crítica. A estatística é o fim das ideias. A estatística é o mundo a preto e branco. Se deixámos de fazer a justiça possível e exigível? Em alguns momentos, talvez. Mas aí a discussão é substantiva. É uma discussão a doer.

 

O que é que quer dizer com isso?

A sociedade portuguesa não tem o hábito de lidar com estes conceitos. E a comunicação social ainda menos. Assistimos a uma tabloidização da justiça. Uma tabloidização que nós permitimos (nós, magistrados). Interiorizámos que não devíamos falar. Acho que o magistrado não deve falar por protagonismo. Isso é um desvio grave e censurável. Mas deve falar por humildade e para explicar porque é que falhámos, ou o que é que estamos a fazer, ou uma certa forma de prestar contas. Sair da redoma para voltar à redoma. Porventura nunca aprendemos a fazer isso – o que constitui um problema. Depois é a pasta fora do tubo. E quando falamos, já ninguém ouve o que dizemos. A missão do magistrado é resolver os problemas das pessoas, com a maior isenção que conseguir. Fazemo-lo processo a processo, e não de uma vez só. Porque um magistrado não é um revolucionário. E não pode instrumentalizar a justiça com o fim de transformar a sociedade.

 

Frequentemente é isso que a opinião pública espera dos magistrados: que se transformem em justiceiros. Que sejam aqueles que corrigem os desvios.

Não pode esperar. Isso é produto da crise de valores. Da crise da ética na política, na vida em sociedade. Concentrou-se no mundo judiciário toda a exigência de ética, confundindo ética com legalidade. Se todos os dias despacharmos os processos que temos de despachar, estamos a mudar o mundo. Mas é de uma maneira não-espectacular.

 

Vivemos a crise de valores, as pessoas sentem-se perdidas, o país está numa fase agónica. Procura-se no outro um grande gesto, que salve.

Espera-se um milagre e a redenção. Mas essa não é a função da justiça. A função da justiça é reparar o mal feito. E já não é pouco. Não sei se as pessoas estão perdidas. Têm de ter a ideia de que elas é que são o país. O país não é uma abstracção. O país é o que cada um de nós faz. Por isso falei do país emergente e do país que está sempre à espera de umas migalhas do Estado. Mas isso vai acabar. Já acabou.

 

É o anunciado fim do Estado social?

Não chamemos nomes ao Estado social. Eu estava a falar do Estado parasitário. Empregar a família inteira na Câmara é Estado parasitário. O Estado social tem de ser defendido. Ainda mais na miséria e no desemprego, que é uma angústia social imensa. Todos nós temos de estar dispostos a fazer sacrifícios para isso. Com a falência, esse Estado que conhecíamos, próspero, que dava protecção a toda a gente, acabou. E quem vivia à custa dele vai ter de lutar pela vida. Mas isso é uma coisa boa. Uma boa parte das famílias portuguesas depende do Estado. E uma boa parte das empresas também depende de contratos do Estado. Como é que isto pode ser? É a subsídio-dependência. E não temos um pensamento de interesse público.

 

O entendimento é o de o Estado não somos nós.

Mas somos, somos.

 

Vox populi: isto está mau, e vai piorar. Partilha desta opinião? Há quem tema assistir à mendicidade, à explosão da raiva social.

O aumento do desemprego causa-me um sofrimento grande. É um estigma terrível. Famílias inteiras desempregadas, pais sem ter que dar aos filhos, sem a menor dignidade social. A desigualdade geracional é enorme. A minha geração ainda conseguiu comprar casa, pagar a casa. (Tivemos uma política que fez de todo o português um proprietário de imóvel… Não era meu desejo, sequer, mas não havia mercado de arrendamento). A minha geração ainda pôde ter sonhos. As novas gerações, os que têm 15 anos ou menos, não sei se vão poder sonhar. Ou se vão conseguir lutar e ter resultados dessa luta.  

 

Os que têm 25 anos e acabaram o curso e se dizem à rasca manifestaram-se na avenida. Esses já diziam que não podem sonhar. Uma das bandeiras da manifestação era a luta contra a precariedade. Como se continuassem a desejar o que, para os seus pais, era um dado adquirido.

Era um paradigma com o qual é justo sonhar. Estive nessa manifestação para ver bem quem lá estava. Estavam muitas pessoas da minha idade. E estive com a minha mãe, que tem 87 anos. Não arredámos pé, até ao fim. É um mundo em mudança. Sabe quando olhamos para uma água turva e não se vê nenhum reflexo? É como estamos agora. É melhor perceber que há mudanças grandes, que há sofrimento que vai acompanhar estas mudanças. Mas quero acreditar que da mudança e do sofrimento vai sair alguma coisa boa. Costuma ser assim – na química, na física, na natureza. O pior de tudo é querermos ter uma visão límpida das coisas. Não vamos conseguir.

Esses jovens: percebo-os, sem saber explicar porquê. Gostava imenso que conseguissem vencer. Nos meus dias de trabalho, esse pensamento acompanha-me. Gostava de lhes ter deixado um mundo melhor. Se calhar não conseguimos. Lutar contra a precariedade não é lutar por acomodação na vida, mas por ter um lugar ao sol. Vencer, ter sucesso. Custa-me imenso o futuro sem futuro.

 

Em 1982/83 quando o FMI esteve cá, já tinha esta profissão – perseguir o crime. Antes disso, e mais colado a isso, há a sua actividade política e o desejo de construir um futuro com futuro. O ânimo era muito diferente do que encontra hoje, novamente com o FMI?

Muita coisa mudou. A globalização, as redes sociais, as tecnologias de informação. Mudaram os factores de socialização. Agora, eu facebooko, logo existo. 

 

Está no Facebook?

Não. Não tenho tempo.

 

Eu também não.

Não facebookamos, logo não existimos! [riso] As pessoas têm maneiras diferentes de pensar, reagir, concepções diferentes do mundo. Nos anos 80 havia grandes dificuldades. Mas o país não estava na União Europeia. Havia a chamada ilusão monetária, que funcionava como varinha mágica de solução para as crises financeiras. Essa varinha mágica agora não existe. Temos de pensar global. Num sistema fiscal europeu comum, num sistema financeiro europeu comum. As fronteiras acabaram. 

 

Esta semana falava-se da necessidade de criar um Ministério das Finanças europeu. E da urgência de criar agências de notação europeias. 

Acho que sim. E reforçar os mecanismos de supervisão. Sem isso…

 

À escala, pelo menos, europeia?

Devia ser à escala global. Toda a crise financeira que vivemos começou com um capitalismo selvagem e com a desregulação completa do mercado financeiro. Tem de haver entidades supervisoras fortes. Essa é que é a questão. Não é se as raters são boas ou más. Toda a crise do subprime, a falência Lehman Brothers, o rebentar do mercado financeiro como o conhecíamos são uma consequência de se pensar que havia uma mão invisível que regulava o mercado. Que o mercado se auto-regulava. Nada mais falso.

 

Mas uma vez que isso não existe, quem manda agora são as agências de rating? Os bancos? Os políticos?

Se calhar não manda ninguém. Há rater terrorista. Resulta do amolecimento dos factores e das entidades de supervisão. Em Portugal, julgo que a CMVM e o Banco de Portugal terão noção disso e defenderão políticas de reforço dessa supervisão. Mas isto é uma fase. Não sei quando passaremos à fase seguinte. Nem qual é a fase seguinte.

 

O país está mais deprimido agora do que nos anos 80? António Jorge Gonçalves fez um cartoon para o Inimigo Público. A Grécia aparecia à pedrada, a chumbar as medidas que lhe queriam impor. Portugal aparecia famélico, roto, de chapéu na mão, a pedir boleia para o Algarve.

É que nós temos sol de Abril a Novembro. As pessoas estão sempre muito deprimidas. Mas assim que vem o bom tempo, vai tudo para a praia, fica tudo contente. O desemprego é que não desaparece com a praia.

 

Há um ano foi considerada pelo Expresso a mulher mais poderosa do país.

Foi uma partida, para as pessoas fazerem troça de mim. [riso] Mas como tenho sentido de humor, não levo a sério. O que revela alguma saúde mental.

 

Não sente que tem muito poder?

Não tenho nenhum. Nem quero ter.

 

Está a fazer género?

Não. Tenho a gestão do DIAP, que é bater com a cabeça nas paredes todos os dias. Mas tenho o dinamismo das pessoas que trabalham comigo, que é gente com garra e que quer findar mais processos do que aqueles que entram. A minha força é a força deles, e da polícia.

 

Vêem-na como a justiceira, aquela que enfrenta poderosos. 

Não é verdade. Intriga-me o retrato que as pessoas fazem de mim. Sou estupidamente disciplinada. Se me atrasar cinco minutos num almoço é uma tragédia – não é bom. O que faço não tem nada de especial. O meu marido era igual. Sempre fizemos os dois a mesma coisa. Vim para o Ministério Público para tentar ajudar a resolver os problemas das pessoas. Mas nem sempre se consegue. Como os médicos nem sempre conseguem salvar as pessoas.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2011