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Anabela Mota Ribeiro

Isabel Leal

21.06.20

Isabel Leal é psicóloga clínica. É professora no ISPA. É presença regular em jornais e revistas, onde fala do seu tema. Que é também o nosso tema: o que sentimos, o que somos. Não fala dela própria porque não é suposto que um paciente conheça a vida do seu terapeuta. Tem 52 anos.

Sexo, sexo, sexo. A verdade é que ainda vamos atrás. Saber o que esconde, ou revela, a palavra sexo. Procuramos, recusamos, praticamos. Escutamos, comentamos, acrescentamos. Afiamos a língua em histórias de bumba-bumba. “Sabes que ela dormiu com?”, “Quem é que dorme com um homem daqueles?”. “Do que ela precisava era de um homem”. 

Let’s talk about sex.

A palavra “queca” banalizou-se tanto que é dita como quem pede um copo de água à frente de crianças. As crianças também a dizem.

Somos uns modernaços. Lemos o kamasutra, conhecemos estratégias sexuais infalíveis. Há mulheres que dizem orgulhosamente: “Sou uma boneca de prazer e ele nunca apanhou outra igual”. Ouvimos falar de orgasmos do outro mundo – e, pelo menos intimamente, achamos que também os merecemos. Somos uns óptimos partidos – sobretudo na cama. E às vezes esta bazófia não dá certo.

Nas próximas páginas, não se fala do Nove Semanas e Meia. Não há cenas tórridas. Nem palavras picantes. Só mediamente picantes. Isabel Leal disse exactamente como costuma dizer: “Ninguém faz sexo para se vir”.

Falámos de sexo, e de uns assuntos à volta. Falámos de quando ele é apenas exercício físico e de quando, mesmo assim, existe a nostalgia do romance.

Se eu fosse a ti, eu queria ir para a cama comigo? Se eu fosse a ti, eu gostava de mim.

 

 

Estamos num tempo que mais facilmente se pratica coito do que se dá um abraço?

Gostava tanto de saber responder a isso…

 

O que está implícito na minha pergunta/provocação, por um lado é a existência de um novo paradigma, e, mais que tudo, a noção de intimidade.

Temos a ideia de que as relações sexuais são uma coisa banalizada. Isso é verdade para um grupo de pessoas, e é mais visível do que foi noutras épocas. Mas não penso que a maioria das pessoas seja muito promíscua e que vá para a cama a torto e a direito com toda a gente.

 

Os relatos de casais adeptos do swing fazem páginas de revistas…

As pessoas não têm uma relação com a sexualidade tão sacralizada, culpabilizada e angustiada como noutras épocas. Mas consome-se pornografia de uma forma crescente. Se podem ter uma vida sexual tão diversificada e intensa, por que é que recorrem maciçamente à estimulação ou visualização da pornografia? (Isto sem nenhum preconceito em relação à pornografia). O mercado que ela cria diz-nos que há ainda uma relação com a sexualidade que não está naturalizada.

 

Como entender, então, que ela apareça, sobretudo na comunicação sexual, como uma coisa banalizada? Como se vivêssemos numa total desinibição.

Vivemos em equívocos. Há muitos mundos paralelos. A dimensão da ternura física, que remete para a noção de segurança, afecto, vinculação, é constitutiva do que somos. Precisamos imenso disso. O sexo, o coito, também são precisos. Mas, do ponto de vista desenvolvimental, o abraço vem sempre antes.

 

O sexo é um patamar de comunicação diferente do da ternura.

O sexo pode ser exercício físico, desligado de afectos. Há pessoas que falam do sexo desligado de afectos, há pessoas que falam dos afectos sem sexo. Provavelmente, a maior parte das pessoas andará algures entre uma coisa e outra, e lá vai conseguindo, como pode e sabe, relacionar uma coisa com a outra.

 

Em encontros episódicos, de sábado à noite, existe espaço para a intimidade? Procura-se a intimidade, ou vestígios disso?

A sexualidade (estrito-senso) pode não ter nada que ver com o universo afectivo. O que há de residual da moral judaico-cristã, em países velhos e católicos como o nosso, em que as noções estão esbatidas, mas estão lá, é que a sexualidade deve estar ao serviço dos afectos.

 

Não são compreensíveis um sem o outro – esse é o discurso oficial.

O que os pais ensinam aos filhos é isso. Há imensas pessoas a dizer: “Não sou capaz de ter uma relação sexual sem gostar do outro”. Digo que isto é residual em relação à moral cristã porque é como se o pecado da carne fosse desculpado e legitimado pela pureza do sentimento. Não acho que seja assim. Às vezes o sexo é mesmo exercício físico. Corresponde para muitas pessoas a uma dimensão de luxúria.

 

Isso é válido para homens e mulheres?

Sim. Há o discurso tradicional, que considero verdadeiro, que [diz que] tendencialmente as mulheres, ainda hoje, usam o sexo para chegar ao amor. E vice-versa para os homens. Muitas vezes enganam-se a si próprios nesse processo. Uma mulher precisa de se reconhecer apaixonada para ser capaz de desenvolver uma estratégia de sedução ou aproximação sexual. Encontro imensas pessoas que têm relações ocasionais e que estão sempre à procura do homem e da mulher perfeita – mesmo que o sexo seja do mais instrumental que há.

 

Está a dizer que nas relações ocasionais continuam a procurar o grande amor? Que dessa vez lhes saia a sorte grande?

Pode não fazer sentido, mas acontece. Uma coisa é o sexo, outra coisa é a simbólica do sexo. Homens e mulheres andam em busca do príncipe encantado e cada encontro sexual é simbolicamente uma tentativa de o encontrar. Quem está de fora, diz: “Então tu vais todas as semanas com uma pessoa diferente para a cama, como é que estavas à espera que corresse?”. Mas no discurso que as pessoas fazem, percebe-se que havia ali uma espécie de romance. Aqueles cinco minutos em que houve troca de olhares, a tentativa de encaixe, a festa no cabelo, o gesto simpático, a maneira como dormiram… Coisas que para quem está de fora são banalidades, mas que as pessoas valorizam e a que dão importância.

 

Isso parece um relato nostálgico de um tempo em que se foi cuidado, ou pegado assim, em que se observou isso.

Exactamente. As pessoas não sabem bem o que procuram no afecto nem o que procuram no sexo. Acaba por ser uma coisa estranha, até para os próprios.

 

Nessa procura, continuam a reproduzir o que viram em casa? Procurar o semelhante ou o contrário do que se viu e viveu; mas ainda assim referente a essa experiência passada.

Pode não ser aquilo que viram em casa, mas é com certeza referente ao que sentiram que eram as relações entre as pessoas. E à maneira como se sentiram amados, ou desamados, ou mal amados.

 

Sobrevaloriza-se o orgasmo e a performance?

Nos discursos públicos, nos media, valoriza-se a performance e o orgasmo. Como se fosse necessário objectivar. Essa objectivação traduz-se por: “Quantos orgasmos tiveste?, quantas vezes teve relações sexuais?, quais os comportamentos que teve?” Coisas concretas.

 

O quantitativo.

Sim. A minha sensação é que isto corresponde cada vez menos às necessidades das pessoas. A maioria – e sendo verdade que há uma fatia de pessoas que faz sexo porque sim – tem relações sexuais por razões complexas, e não simples. Costumo dizer que ninguém tem relações sexuais para se vir! Dá uma trabalheira desgraçada.

 

Para isso masturbavam-se?

Com certeza. Se a relação sexual fosse só isso, se o que estivesse em jogo fosse só isso, as pessoas não tinham o trabalho de desenvolver uma relação, conhecer o outro. A relação sexual [compreende] um conjunto de significados que têm um valor de comunicação, um valor de relação, de intimidade. É por isso que a maioria das pessoas não fica satisfeita com uma versão meramente performativa – “Tive o orgasmo, acabou”.

 

As revistas abusam de expressões como “o cume do prazer”, “prazer sem limites”, “o caminho até ao clímax”. Porquê essa sobrevalorização do orgasmo?

Por causa do quantitativo. Um orgasmo pode não ser especialmente bom. Há orgasmos e orgasmos.

 

Pode ser uma simples contracção do corpo.

É mesmo uma contracção do corpo. Uma coisa mecânica, sem qualquer memória afectiva. Uma sensação de bem estar como muitas outras. Há imensos homens e mulheres que têm uma relação sexual agradável que não culmina necessariamente no orgasmo. Há mulheres que não são orgásmicas.

 

Não têm orgasmos facilmente, é isso?

Sim. Há mulheres que numa relação sexual de penetração não atingem o orgasmo; têm mais facilmente um orgasmo clitoriano. No entanto, gostam de ter relações sexuais de penetração. Porque é que o orgasmo está na moda? Talvez por ter sido um tabu durante tanto tempo.

 

O facto de o “o orgasmo estar na moda” traduz a obsessão da sociedade em que vivemos com a performance e os resultados? Temos de ser sempre óptimos, até na cama.

E como essa performance se mede por resultados… O resultado é: “Quantos orgasmos tiveste?”, “Quantos orgasmos é que ela teve?”. Esquecemo-nos que uma coisa que seja só factual – quer se trate de um orgasmo, quer de trate de um resultado – é só um número. Não quer dizer nada. Na minha experiência, não é nada disto que aparece.

 

Quando a procuram na clínica para tratar de questões sexuais, o orgasmo não o tópico principal. Qual é?

É a mulher que quer ter [relações sexuais] e o marido não quer tantas vezes, e vice-versa. Antigamente havia a ideia de que os homens queriam e elas não; elas estavam sempre com dor de cabeça. Agora são elas a queixarem-se de que eles estão sempre ocupados, cansados, que trabalham imenso. Aquilo de que ambos se queixam é de se sentirem pouco desejados, poucos amados, pouco atraentes.

 

O ónus é do próprio, e não do parceiro, que está ocupado.

Em última análise aparece essa culpabilidade. “Não sou suficientemente boa/suficientemente bom”. “Já não tem interesse por mim, já não gosta de mim”. Como se não acreditassem que o outro tem mesmo dor de cabeça, está mesmo cansado ou não gosta de ter sexo. Ainda é pior do ponto de vista das mulheres, porque lhes foi ensinado que os homens estão sempre disponíveis.

 

E sentem-se galdérias e culpadas por isso?

Eventualmente. “Será que sou uma pervertida?”. Quando isto não é trabalhado, passa-se desta situação de culpabilidade e sentimento de desamor a uma zanga com o outro. Quanto mais culpabilizado, mais agressivo fico. Numa outra fase, vem o discurso humilhante: o outro não presta… Destrói a relação e o afecto.

 

O jogo sexual é, sobretudo, um jogo de poder?

Não acho que seja só, mas acho que o jogo sexual é um jogo de poder. À medida que vai sendo outras coisas, vai deixando se ser sobretudo um jogo de poder.

 

É um jogo de poder na fase de sedução e conquista ou também na fase em que a relação está estruturada? 

Mesmo quando já está estruturada. Para muita, muita gente, a relação com o outro é uma relação de poder. Também no sexo. E todos sabemos isso. Sabemos quem é dominante na relação.

 

Mesmo que os papéis hoje não sejam claros.

Houve um tempo em que sabíamos quem tinha o poder, e onde. Os homens tinham poder no exterior, as mulheres tinham poder em casa. Os territórios estavam estabelecidos. Agora, à medida que os papéis sexuais são menos estereotipados, é difícil chegar a uma relação de equilíbrio, com zonas de dominância alternadas. Há conflitos que têm apenas que ver com a questão do poder.

 

Ou mandas tu ou mando eu.

E em que zonas mandas tu e mando eu. Como chegamos lá? Tu mandas nisto e eu mando naquilo. Mas imaginemos que “isto” é vital para ambos… O desgaste da relação começa quando, para ambos, o controlo daquela zona, é fundamental.

 

Outro cliché relacionado com o poder: o de que se opera no espaço íntimo uma inversão da ordem que observamos no espaço público. No Belle de Jour, do Buñuel, as pessoas que se submetem e querem ser submetidas são o ilustre ginecologista, o senhor duque.

Não é só um cliché. É também o descanso do guerreiro. As pessoas que têm um desempenho activo e dominante têm de ter momentos de relaxamento. Os momentos em que se sentem protegidas.

 

Mesmo que isso seja sob a forma de ordem? O outro manda e decide.

Sim. Pode ser no campo estrito do sexual. É o grande ditador que depois é embalado por uma prostituta… Quem domina, quem é dominado? A simetria não é possível.

 

Muitas relações estão condenadas porque os elementos do casal são dois titãs? E um tem de se submeter mais um pouco...

E vai ser cada vez mais assim, com esta diluição de espaços. O espaço da casa é comum, os confrontos são maiores, não há dogmas. Há 50 anos um homem não dava palpites sobre os cortinados. É preciso elaborar sobre as coisas estruturais de que não abdicamos, e o resto é peanuts. Preservamos uma coisa, e o resto, “leva lá a bicicleta”. Há casos de pessoas que gostam uma da outra, sexualmente funcionam, mas não conseguem acertar-se.

 

Porque é que ser dominado dá uma enorme segurança? É ainda a memória de um tempo em que o pai e a mãe estavam lá?

Então não? Já viu o bom que é, para algumas pessoas, ter alguém que lhes diga o que fazer? Já viu a angústia de terem que decidir, optar, todos os dias? Se tiverem alguém que impõe as regras, já viu o fácil que é?

 

Mas socialmente tem-se vergonha disso.

Claro. Passamos a vida a manter combates connosco próprios entre um desejo de autonomia e a dependência. A dependência garante-nos que o outro está lá – não há a angústia da separação. E o outro está lá para nos dizer o que vamos fazer. Por outro lado, aprendemos que temos de ser autónomos, pensar pela nossa cabeça. Isso dá uma trabalheira enorme. E paga-se o preço por essa autonomia: muitas vezes, a solidão, e o ter de escolher. Tanto maior é o domínio quando escolhemos um dominador que nos diz para fazer exactamente o que gostaríamos de fazer.

 

Sem parecer que nos está a dominar…

Quando vai ao encontro do nosso desejo.

 

Quais são os fantasmas mais comuns? Rejeição, troca, desamor?

Correspondem aos que individualmente temos. A angústia do abandono, a angústia da separação.

 

Qual é a diferença?

O abandono é uma coisa mais arcaica. “Eu não sou suficientemente bom para ser gostado”. Na angústia da separação, o residual é isto, mas passa-se ao desamparo. “Eu não sou capaz de estar sozinho. Se perco esta pessoa, perco a capacidade de ser e de fazer”. Há pessoas que estão numa relação sempre com essa angústia.

 

“O que é que vai ser de mim se ele me deixar?”

Vivem no pressuposto: “Ele vai abandonar-me”. Muitas vezes, nessa angústia, inconscientemente, fazem tudo para ser abandonadas… É no grupo onde estão as mulheres agressivas, aquelas que em vez de dizerem: “Dá-me um beijinho”, dizem: “Mas o que é que tu queres dizer com isso?!”. Funcionam sempre ao contrário. Há outro quadro, mais neurotizado: o daquele que está sempre a invocar o outro. Você pergunta: “O que é que achas disso?”, e ele responde: “Eu acho que o meu marido até me disse que…”. 

 

As pessoas só existem no “nós” e têm dificuldade em existir individualmente.

E transmitem isso de todas as maneiras! O Stig Dagerman tem um livro chamado A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. Todos precisamos de consolo, e este consolo tem pouco de sexual. (Ainda que, na nossa língua, a palavra “consolado” tenha uma conotação sexual). Penso nela no sentido de conforto íntimo, de satisfação. Às vezes, como não conseguimos descobrir essas formas de consolação amplas, ficamos por formas pequeninas de consolação; entre elas a sexual. E isto não é desprezar o sexual!, que acho muito importante. Mas não acho que tenha a centralidade que noutras fases da vida lhe damos.

 

Há pessoas que têm pavor da infidelidade. Quando o fantasma é o da traição, o da terceira pessoa, aquilo de que têm medo é do abandono?

É. E persiste nelas a ideia de que foram trocadas porque não são suficientemente boas. Não é tanto o outro que está em causa; é a confirmação de que eles não prestam. Ficam numa angústia catastrófica em relação a isso.

 

O falhanço das relações não decorre, tantas vezes, de se olhar para o outro como ele é e não como estava projectado na nossa imaginação e desejo?

Qualquer pessoa pode enunciar isto. Agora, constatamos todos os dias que isto que se sabe, não se sente.

 

“Se me amares completamente és isto”. “Se me amasses realmente fazias aquilo”. As equações da incondicionalidade podem enunciar-se assim?

Mais subtil: isso pode não ser dito. Pode estar implícito. Pode estar no gesto, na culpabilização. “Mas que estranho, todas as pessoas gostam disso; porque é que tu não gostas?”. No fundo, reproduzimos coisas que dizem respeito a um tempo em que começámos a perceber que não somos únicos. E que, além de não sermos únicos, não somos centrais. Crescer é também isso. E dói. Integrar essa dor, ser capaz de lidar com ela, reestruturar coisas a partir disso é o que nos permite, enquanto adultos, viver bem as separações, os diferentes níveis de infidelidade, de autonomia.

 

Também vigora a ideia de que temos de ser felizes a todo o custo…

E é uma felicidade objectivável. Quais são os objectos que as pessoas usam para ilustrar as suas noções de felicidade? Passa sempre pelo que tenho ou pelo que parece que sou. Duvido que tenha mesmo que ver com o que sinto de modo predominante ou com a relação que tenho comigo. As pessoas tendem a falar de felicidade como contrário de infelicidade. E objectivável em coisas do quotidiano: sou feliz porque tenho um marido porreiro, uns filhos lindos, um grupo de amigos, porque tenho emprego.

 

Tudo bate certo. Mas depois, afinal, não. Porquê?

Ouço tantas vezes isso, tantas, tantas. “Eu tenho tudo para ser feliz; porque é que não sou?”. Quando uma pessoa diz isso é porque acha que devia ser de uma maneira. É como se as pessoas não se permitissem conter as suas infelicidades e tristezas. Fazem este discurso que culturalmente vai sendo dominante.

 

Ser feliz é ser aquilo e é ter aquilo. Ou parecer ser aquilo e parecer ter aquilo.

E é sempre uma coisa que os outros têm.

 

Faz sentido aceitar a dor? Porque não procurar aquilo que sabemos que nos traz felicidade?

Faz parte da natureza humana (e já falo da condição humana) [lidar] com dores, físicas e psíquicas, com o sofrimento. Enquanto seres que se afastaram da natureza e construíram cultura, desenvolvemos a crença de que podemos superar a dor. É mais evidente nos casos de doença física: se posso tomar uma aspirina e não ter uma dor de cabeça, se posso ter uma epidural e ter um filho sem dor, porque diabo hei-de tê-la? Quem aguenta algum patamar de dor é considerado masoquista. Não vale a pena, e é triste, ajudarmos as pessoas a crescer em fuga das suas próprias dores. Não há maneira de escapar à dor. Mas há maneiras de gerir melhor as dores que se têm. Essa dimensão da dor não é intrinsecamente má. É uma circunstância da nossa existência. Temos de aprender estratégias para lidar com isso.

 

As pessoas divorciam-se com maior facilidade hoje em dia. Os tempos são outros, e mudou, sobretudo, o estatuto da mulher. Uma parte deste fracasso passa pela resistência à dor e à dificuldade? “Eu não tenho de aturar isto”.

Completamente de acordo. Aplica-se às relações e a tudo. Não queria que isto parecesse um discurso conservador – não é. E também não é um discurso anti-hedonista. Acho que em relação às crianças, por exemplo, desenvolvemos demasiadas estratégias de protecção. “Coitadinho, é pequenino, tem muito tempo para sofrer, a vida já é dura, temos de o poupar”. E vamos prolongando isto em idades em que deixa de fazer sentido.

 

Por isso somos tão tarde maduros?

Quando chegamos a ser maduros! Tem imensa gente que envelhece sem alguma vez ter crescido. É dramático. Conseguem ter os seus desempenhos sociais, às vezes até brilhantes, mas não ficaram maduras de um ponto de vista emocional. Há uma definição para isso de que gosto: “Ser adulto e ajudar os outros a ser adulto”. Somos, nessa altura, contentores dos limites dos outros. Há pessoas que não o conseguem. Precisam de espelhos, espelhos, espelhos que reproduzam imagens, que digam: “És bom, és óptimo, consegues”. Isto, que era uma coisa narcísica e ligada a classes privilegiadas, está disseminado. A classe média faz da educação dos filhos um lugar com poucos limites, com pouca tolerância à frustração. Claro que a vida dói. Mas onde é que está escrito que não doía?

 

Frequentemente pensam do que somos coisas que não correspondem ao que somos ou sentimos. E transmitimos coisas diferentes daquelas que gostaríamos de transmitir. Este equívoco é também inescapável? 

Esse é outro problema. Demasiadas vezes acabamos a parecer o oposto, e a criar nos outros uma imagem que é o oposto, daquilo que somos. O exemplo clássico disso: pessoas que se sentiram mal amadas. Não há nenhuma espectacularidade neste acontecimento, acontece no seio das famílias normais. Aqueles aparatos, de negligência e espancamento, não têm nada que ver com o que estou a dizer. O facto de uma pessoa se sentir mal amada ao longo dos anos, preterida, frequentemente determina uma busca activa no sentido de ser estimado, gostado. Normalmente isso faz-se de duas maneiras. Uma é desenvolver um comportamento hiper-afirmativo/agressivo…

 

“Vejam como sou boa, amem-me por causa disso”?

E isso faz com que as pessoas olhem para ela/ele como sendo muito auto-suficiente. “Ela é muito boa, não precisa de nada, deixa-me ir embora”. Nem se aproximam porque o outro (parece que) não dá espaço. “Ai que arrogante, que convencido”. Isto é uma angústia brutal para as pessoas, que estão sozinhas. Podem até suscitar admiração, mas não suscitam aquilo que querem: proximidade e afecto.

 

Esse é outro equívoco: o que é admiração e o que é amor.

É. A outra situação é a pessoa pintar-se como o desgraçadinho. “Amem-me por favor”. Desenvolvem uma estratégia pitiática, têm sempre uma queixinha a acrescentar, que desencadeia a compaixão dos outros.

 

Mas não o amor.

Pois. Estas são as estratégias mais vulgares que as pessoas desenvolvem como mecanismo compensatório dessa sensação de não ser bem amado.

 

Lemos livros e ouvimos psicólogos que repetem à exaustão que a gratificação tem de vir de dentro. Mas como chegar a sentir isso que tão bem sabemos?

Acho que só há duas maneiras. Uma é mesmo a psicoterapia. Porque é o retorno a nós próprios, a uma consciência apurada de quem somos, como somos, porque somos. É como na crise adolescente: quem sou, donde venho e para onde vou. A outra é encontrar uma relação em que tenhamos espaço de existência e de construção de uma identidade, que nos permita essa gratificação. Quer um, quer outro não são acessíveis a toda a gente. Há uma arbitrariedade horrível. Não é uma das coisas em que vou para casa e faço o treino…

 

Quer a psicoterapia, quer a relação construída com outro, são espaços de intimidade. Vivemos entre esses dois espaços: o íntimo, onde nos auscultamos e sabemos quem somos, e o público, onde cabe a conversa sobre o sexo, sobre o parecer ser, a dissimulação.

É incontornável que sejam espaços de intimidade. Atingimos a singularidade na maneira como combinamos os nossos elementos, e construímos essa individualidade, apesar de tudo o que nos aconteceu – e sublinho o “apesar de”. Aquilo que nos diferencia é essa construção autónoma. Aquela psicologia barata: “Percebe-se perfeitamente porque é que aquela pessoa é assim. Porque lhe aconteceu isto e isto e isto; só podia dar naquilo!”. Não é verdade!

 

Porquê?

Há características pessoais e há circunstâncias felizes que nos possibilitam, apesar de tudo, transformar formas de ser. A história passa a ser: “Sou assim, não por causa do que me aconteceu, mas apesar do que me aconteceu”. Tem muitas pessoas a quem aconteceu o pior possível e que são muito estruturadas. Não temos só a condenação ao Inferno ou ao Purgatório. Temos uma enorme capacidade de resistência, resiliência, reformulação. É possível criar os espaços de liberdade, de recuo em nós próprios.

 

Do que é que as pessoas falam no consultório? De sexo, do desencontro, da equivocidade permanente?

Não há uma resposta única. Diferentes pessoas preocupam-se com diferentes coisas. Todos temos uma história e todos precisamos de significar a nossa história de uma certa maneira. Precisamos de ter um sentido, um norte; sem ele, desorganizamo-nos. Muitos dos sentidos que atribuímos às coisas, não nos servem. Portanto, é preciso diminuir o hiato entre o que sentimos e pensamos.

 

Diz-se muito: “Se eu conseguisse sentir aquilo que penso, aquilo que eu sei...” Mas também: “Se eu conseguisse saber/entender o que sinto”.

Não é um jogo de palavras. Isto é dito em discurso directo, tem personagens, tem acontecimentos. Dito de outra maneira: são sempre tentativas de crescimento. Perguntaram um dia à Maria Velho da Costa porque é que ela tinha feito psicoterapia: “Para ser mais, para ser melhor”. O que todos nós queremos é ser mais e é ser melhor. Mesmo que tenhamos a ideia que queremos fogões e frigoríficos e computadores e telemóveis. As pessoas que tiveram a sorte de ter tido relações básicas de extrema confiança, em que o abraço sempre lá esteve, provavelmente são as pessoas para quem isto é mais leve.  

 

E esse vínculo é o que facilita a relação com o mundo e os outros?

Sim. Não é ingenuidade. É confiança básica. Infelizmente, a maior parte das pessoas não tem isso. No nosso desenvolvimento vamos sempre tentando esse reforço. E nunca nos chega. E isso já endossa para uma zona de inquietação que é constitutiva do ser humano. Para uns é sofrimento e para outros é zona de crescimento.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2010