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Anabela Mota Ribeiro

Rui Tavares

28.01.22

É um rapaz de Lisboa que é eurodeputado em Bruxelas. É um opinador que não tem muitas opiniões. Um historiador que espera reformar-se a ler e a traduzir Plutarco. Rui Tavares nasceu em 1972. A sua é a ínclita geração que cresceu em liberdade.

E se ele achasse interessante o fascismo? Ele que aprendeu, muito mais tarde, que “interessante” era uma palavra que não se usava, e que não era um critério válido como é, por exemplo, a utilidade. E se ele, filho de uma grande e heteróclita família de esquerda, virasse as costas e fosse à sua vida quando rebentou a guerra do Iraque? Porque é que é de esquerda?, porque é que se envolveu na política?

Soubemos de Rui Tavares pelo blogue Barnabé, pelo Pequeno Livro do Grande Terramoto, pela colaboração na imprensa (é cronista do Público há cinco anos). Depois de o entrevistar percebemos que, se não fosse por isto, saberíamos dele por outra via qualquer. 

Recentemente, muito se falou dele a propósito das bolsas que decidiu atribuir, retirando uma parte do seu rendimento mensal para apoiar projectos de investigação. Assunto que ficou excluído, pela simples razão de já quase tudo ter sido dito sobre ele – inclusive quem são os beneficiados. A intenção era outra.

Encontrámo-nos no Chiado. Entrevista num café barulhento. Uma hora e meia de gravação que pareceu muito mais do que uma hora e meia de gravação. Ele é um escritor que vive entre a destilação e a fermentação – saberão o que quer dizer com isso. O registo da entrevista? Talvez fermentação…  

 

As pessoas sabem o que pensa a partir das coisas que escreve. Sabem quem você é? Lê-lo e saber o que pensa é equivalente a conhecê-lo?

Não, não é. É engraçado dizer que as pessoas sabem o que penso através do que escrevo, porque muitas vezes também sei o que penso através do que escrevo. A escrita serve, ela própria, para mostrar o meu processo mental às outras pessoas.

 

É uma forma de se organizar, também?

Como forma, às vezes, de chegar a um argumento mas não a uma opinião. Tenho pouquíssimas opiniões antes da escrita, e tento que depois da escrita também não tenha muitas. Na escrita tenho uma concatenação de argumentos que vou experimentando, e que podem resultar numa coisa mais ou menos enfática, dependendo de onde os argumentos me levem. Acho uma completa ironia quando me chamam “opinador”, porque tenho pouquíssimas opiniões. Fico espantado com amigos meus que têm muitas opiniões, que sabem como é que devia ser reformado tudo e mais alguma coisa.

 

É retórico? Importa menos a defesa de um ponto de vista, e mais o processo que o conduz a um ponto de vista possível?

Tenho uma altíssima visão da retórica. Fico descoroçoado quando falam da retórica como uma coisa menor. É uma das coisas que me irritam no Presidente da República, Cavaco Silva. A retórica é a forma que temos de nos persuadirmos.

 

No sentido aristotélico, é isso.

Completamente. É a forma que temos de viver em conjunto. As pessoas que acham que a retórica não é importante é porque desconsideram a opinião dos outros. Aquilo que descrevi – o explanar um processo mental, pô-lo cá fora, e as pessoas acompanharem a minha forma de pensar – é retórica.

 

O que quero dizer é que há pessoas que usam a retórica como um instrumento que esgrimem com virtuosismo, e importa mais a vitória do seu argumento do que a troca de argumentos.

Há um efeito de depuração no facto de ter de se fazer [uma crónica] uma vez por semana, como comecei a fazer há cinco anos, ou agora duas vezes por semana. Em certa medida reforça algumas características fundamentais. Desse ponto de vista fiquei mais democrático ainda, se é possível. Não é só importante convencer os outros, ainda que a maioria não tenha sempre razão; colocar as nossas ideias sob teste é uma coisa que melhora as ideias.

 

Voltando àquilo que pensa e àquilo que é. Como é que se fez a pensar as coisas que os leitores vão conhecendo?

Isso tem um lado pessoal-familiar, e tem um lado exclusivamente mental. Não é que seja uma pessoa cerebral nas minhas relações pessoais, com amigos, com família – não sou. Mas quando estou distraído a pensar em qualquer coisa e as pessoas perguntam: “Em que é que estás a pensar agora?”, é muito possível que seja uma daquelas coisas que aparecem nas crónicas. Sou ao mesmo tempo uma pessoa que não tem medo nenhum de ser sentimental. Não sou nada blasé, não me chateia nada que digam: “Isto está um bocado piroso”. E se for? A crónica de hoje [20 de Dezembro] é acerca de refugiados; tentei ao máximo que fosse contida, mas há um momento em que não pode ser, em que é quase uma indignidade continuar frio por uma questão de estilo. A certa altura o estilo tem de ceder ao sentimento.

 

Qual é a sua história?

Vamos pôr isso em cima da mesa. A minha família é do Ribatejo, de camponeses que migraram para a cidade, a minha mãe no fim dos anos 40 e o meu pai no fim dos anos 50. São ambos da mesma aldeia. Tinham namorado antes de ela vir para Lisboa, depois afastaram-se. Ele casou, enviuvou, e depois casaram. Sou o último de cinco filhos.

 

A sua mãe esperou pelo seu pai ou teve outro casamento entretanto?

Não, a minha mãe não casou. Os meus dois irmãos mais velhos são do primeiro casamento do meu pai, e nós três do segundo casamento. Esta aldeia de onde vieram, Arrifana, ali na fronteira entre o distrito de Lisboa e o de Santarém, tinha raízes de esquerda republicana. A certa altura terão passado por aquele movimento de trabalhadores rurais, influenciados pelo anarco-sindicalismo, que fez uma grande greve em 1915/16. O padre da aldeia foi expulso. Os meus avós não eram casados pela igreja, não baptizaram os filhos. Só foi reintroduzido o catolicismo lá para os anos 60. Ao mesmo tempo houve uma coisa interessante e quase única no país: também foi introduzido o protestantismo baptista.

 

Nasceu em Lisboa.

Grande parte das minhas raízes está lá, apesar de ser muito lisboeta. É uma aldeia ferozmente independente, é quase uma ilha num planalto onde as estradas que chegavam lá, ficavam lá. Não se ia para lado nenhum, ia-se para chegar à Arrifana. As pessoas das aldeias à volta chamam-nos “os turcos”, nós chamamos às pessoas de fora “os gentios”, como os judeus se referem a toda a gente que não é judia. Muito comunista, muito pouco católica, e a certa altura muito baptista.

 

A sua família professava alguma religião?

Uma parte da família converteu-se ao baptismo. O baptismo foi introduzido por um tio-bisavô, ateu, quando a aldeia voltou a ter padre; para chatear o padre, conheceu um pastor e levou-o para lá. O pastor converteu grande parte da aldeia. São da Arrifana os meus pais, os meus avós, os meus bisavós, os meus trisavôs. Acho que há uma bisavó que nasceu por acaso em Alenquer. Os Tavares, segundo uma prima que faz árvore genealógica, são plebeus e camponeses. Estão naquela mesma aldeia desde o séc. XVII.

 

E há uma têmpera que passa quase como um código genético?

Há. Há três famílias diferentes das quais sou descendente. A minha mãe diz que os Tavares são sisudos, sérios e um bocado secos; como diriam os meus tios comunistas, ficam muito sérios em discussão. Os Marcelinos, outra família, são contadores de histórias e são sociáveis. É um lado meu que aparece nas crónicas, é o gostar de curiosidades. Os Pereiras, que são do lado do meu pai, são sentimentais, choram com facilidade. Não tenho uma mistura destes três elementos, o que tenho é uma intermitência entre os três elementos. A ponto de, quando começo a contar histórias, haver amigos que gozam comigo: “Cala-te Marcelino!” – sabem que é esse lado da família. Ou por exemplo, quando fico muito “choramingão”, chamarem-me pelo nome do meu pai, Armando, porque o meu pai é muito “choramingão”.

 

O que é que o faz chorar? Que coisas?

Na verdade estive durante dez anos sem chorar, entre os meus 17 e 27. Quando voltei a chorar foi por causa da ficção, do cinema. Posso chorar com música ou com coisas pessoais.

 

Resultou de uma decisão?

Não. Não quero contar mais. No Parlamento Europeu tenho a incumbência de algumas coisas que têm a ver com política de refugiados; o que significa que durante o ano passado fui muitas vezes a campos de refugiados. É muito fácil as pessoas começarem a chorar. Aí, curiosamente, não me acontece. Mantenho-me muito consciente do trabalho que tenho a fazer.

 

O trabalho é um escudo.

Não, não é isso. Se for para o campo de refugiados e me puser a chorar, e a dizer que lhes vou resolver o problema, não estou a fazer um bom trabalho. Prefiro dizer-lhes o que vou lá fazer: “Estou aqui para tentar melhorar a lei europeia de refugiados, preciso das vossas histórias. Estas coisas demoram tempo. Espero que já não vá a tempo de vos ajudar, espero que já tenham sido ajudados antes. Compreendam, mesmo assim, que é importante para ajudar outras pessoas que vão passar pela mesma situação”. Em geral compreendem e preferem isto. Os refugiados têm em geral uma atitude peculiar, são pessoas muito atentas, que têm tempo para pensar nestas coisas. Podem conhecer a Convenção de Genebra melhor do que você ou eu. E preferem que se seja franco e realista com eles.

Vêem-se as coisas mais brutais. Em reuniões com refugiados, podem trazer lenços de papel porque sabem que as pessoas vão chorar durante a sessão. Pessoas que foram vítimas de tortura, que sofreram perseguição sexual, que têm doenças que só podem ser curadas fora do campo de refugiados.

 

Três vertentes familiares, a migração da Arrifana para Lisboa. Por mais forte que seja a marca destas raízes, é um rapaz de Lisboa.

Vivi mais aqui do que lá, mas vivi lá em alguns períodos, quando tinha cinco, seis anos, e depois quando tinha oito, nove anos. Estudei lá, numa daquelas escolas primárias de província. Quando fomos para lá, já só estávamos com os meus pais o meu irmão mais velho do que eu e eu. A minha irmã já era casada e os outros dois estavam na faculdade, um aqui em Lisboa e outro na Checoslováquia.

 

Comunista? A ida para a Checoslováquia era patrocinada pelo PC?

Sim, o meu irmão era da JCP. Quando vivíamos na aldeia, ajudava muito os meus pais no campo. O meu pai era bancário e era pastor de vez em quando. Com ovelhas, é muito fácil: leva as ovelhas, prende só a mãe a uma árvore, e as outras ficam ali. O meu irmão estudava na vila, na escola secundária, que tinha uma biblioteca (ainda não havia a biblioteca itinerante da Gulbenkian). Trazia-me livros. Um dos meus grandes orgulhos é dizer que li o Mark Twain, o Tom Sawyer e o Hucleberry Finn, como deve ser lido: empoleirado numa árvore.

 

Via também os desenhos animados? Havia uma equivalência entre o mundo dos livros e aquilo que marca completamente a sua geração, a televisão?

Um bocadinho. Mas sou principalmente livresco, desde miúdo. Aprendi a ler cedo.

 

Com quem é que aprendeu?

A minha mãe estava em casa e ensinou-me a ler. As minhas primeiras memórias são de lhe perguntar sobre palavras complicadas que apareciam nos livros, duas. Lembro-me de “clarabóia”. E isso era certamente antes de ir para a primária. Nenhum dos meus pais tem muitos estudos, mas a minha mãe gosta muito de ler. (Vai fazer 80 anos em Fevereiro.) Outro dia, uma prima passou e deixou para o meu aniversário, como presente, um livro do Kapuscinski e um livro sobre a Opus Dei; antes de chegar, a minha mãe tinha lido os dois.

Começou pelo Kapuscinski e depois leu o livro da Opus Dei. Ela é uma ex-beata, e então gosta daquilo. É a única pessoa da família mais próxima que era católica. Quando chegou à minha altura, já era ex-beata. Não tive educação religiosa de nenhuma espécie.

 

Estava a contar que a sua mãe o ensinou a ler.

Sabia algumas palavras em francês, de ter ajudado os meus irmãos a fazer os trabalhos de casa, ou em italiano, de ter ouvido na televisão, e dizia-me: “Estás a ver, é tão fácil, é muito parecido com o português”. Cresci convencido de que todas estas coisas não envolviam nenhuma dificuldade especial. E isto como a matemática ou outra coisa qualquer.

 

Uma injecção de confiança. Não sendo esse o objectivo, acabou por resultar nisso.

Não havia nada de especial em pegar num livro grosso e despachá-lo num instante – “Estás a ver como é fácil?”. E ela estava ali ao lado e ia-me explicando as palavras difíceis.

 

Outra palavra “difícil”: melancólico. Essa aprendeu com quem?

Devo ter aprendido com amigos, tenho impressão que no ciclo preparatório. Um amigo meu, (alguém com quem dava para falar acerca de livros, fizemos o jornal da turma ou assim), era de classe alta e de direita monárquica. De vez em quando ainda nos encontramos. Manuel, o nome dele. Tocava piano, compunha coisas, e tinha uma composição chamada “melancólico” ou “melancolia”.

 

Nessa altura já tinha a consciência de que era de esquerda?

Numa discussão com esse amigo, tinha 11 ou 12 anos, percebi que não podia defender argumentos comunistas ou de esquerda só porque a minha família era comunista ou de esquerda. Seria mais ou menos equivalente àquilo que, em casa, a minha mãe achava muito mau: a hereditariedade. A hereditariedade dos títulos ou dos privilégios. Porque não a hereditariedade das ideias? Deveria ser comunista só porque a família era comunista? E então fiz uma coisa importantíssima para mim: fui para a Biblioteca Municipal da Penha de França ler todos os livros que pudesse encontrar de política.

Bibliotecas e bolsas de estudo são duas coisas que me tiram do sério, no bom sentido. Irrita-me muito quando dizem que as bibliotecas já passaram do seu tempo porque agora acedemos a tudo pela internet – disparate completo. Lisboa tem um baixo ratio de biblioteca por habitante e não temos uma boa biblioteca pública. Temos a nacional, só para investigadores, e agora está fechada, ou vai fechar. Não temos uma biblioteca pública daquelas onde vão milhares de pessoas todos os dias, que fazem fila para entrar porque estão reformadas ou desempregadas. O Marquês de Pombal quis fazer isto na Praça do Comércio; infelizmente o D. José morreu, o Marquês foi exonerado, o decreto estava passado mas não chegou a ser implementado.

Na Biblioteca Municipal da Penha de França pedi tudo o que havia acerca de política.

 

Tudo mesmo?

Tudo. Incluindo fascismo, capitalismo, monarquia, social-democracia, comunismo, anarquismo. Tentei dar às várias ideologias as hipóteses justas que os miúdos dão quando fazem jogos de futebol com caricas. Está a jogar a Argentina, Portugal e o Brasil, quer ver quem é que vai ganhar o campeonato do mundo, e tenta não puxar pelas equipas de que gosta. Tentei dar a mesma hipótese ao fascismo e ao comunismo, cheio de medo e a pensar: “Se me acontecer gostar do fascismo, como é que chego a casa e digo isto?”.

 

Seria uma traição a tudo quanto estava para trás.

Ia arranjar um problema. Felizmente não gostei nada do fascismo. Mas descobri o anarquismo, que era uma coisa bastante desprezada pelos comunistas e por pessoas da minha família, mais tios do que pais. Os meus pais não eram comunistas militantes, nunca foram. A minha mãe era mais MDP/CDE. No anarquismo não há a possibilidade de haver ortodoxos e heterodoxos, é-se heterodoxo à partida. Os pensadores do anarquismo são todos eles muito contraditórios e diversos. O Tolstoi é muito diferente do Proudhon, que é muito diferente do William Godwin, que por sua vez era casado com a  Mary Wollstonecraft, a mãe do feminismo, e são os pais da Mary Shelley que escreveu o Frankenstein. O Oscar Wilde tem um texto anarquista muito interessante, o Orwell também. Tem desde individualistas anglo-saxónicos, a espiritualistas russos, a cristãos como o Tolstoi, ou federalistas franceses ou italianos. Achei fascinante.

 

Fascinou-o, também, estar fora das regras do comunismo? Fora daquelas balizas? Era uma forma de rebelião ao nível das ideias? Estava na adolescência quando isso aconteceu.

[Fascinava-me] ser mais uma constelação do que uma bíblia. Não havia uma bíblia como para os cristãos, não tinha nem o Marx nem O Capital. Tinha uma série de autores que convidavam a pensar nos fundamentos. Estava a ler uma série de doutrinas que diziam qual é o melhor governo, depois uns tipos, levando as coisas às últimas consequências ou não, diziam: “Esperem lá, se calhar ainda não pensámos bem na ideia de não haver governo nenhum…”. Isto convida a uma coisa: não tomes por adquirida a pergunta que te fazem, responde à pergunta com uma pergunta. É o que fazem alguns artistas com a arte.

 

Tendemos a esquecer que a sua formação de base é História de Arte.

Quando dava aulas de História da Arte levava os meus alunos a ver uma instalação numa sala que não tinha nada; a instalação era só o chão, tinham mudado o chão da sala. Estava ali uma obra de arte ou não? Muitos reagiam assim: “Isto não tem piada nenhuma, que tipo de arte é isto?”. Eu dizia-lhes: “Reparem que esta pessoa está a pensar os fundamentos”. Não é um exercício fútil. É um bocadinho o que o anarquismo faz com a política. Qual é o melhor Estado? Qual é o melhor governo? Mas quem é que disse que tinha mesmo de haver um?

 

Pôs o seu tripé num outro sítio, ideologicamente?

Percebi que a maneira certa de estar em termos de ideias é por conta própria. E isso significa ter confiança nos seus princípios. Tem de os ter submetido a uma crítica tão permanente que depois tem confiança neles. Mas vai sujeitá-los a revisão, sempre. Percebi que as pessoas que se mantêm inabaláveis, muito disciplinadoras, são em geral pessoas que têm pouca ou nenhuma cultura ideológica, filosófica e política. Ou têm falta de auto-confiança, têm medo de encontrar uma ideia nova que ponha tudo em causa, ou então são manipuladoras. Recuso-me ser qualquer uma destas coisas.

Alguns dos anarquistas dão uma importância fundamental à arte e à estética. Orwell, tem um texto muito bonito acerca de rãs numa revista de política: “Mas porque é que num momento em que há guerra e há campos de concentração estou a escrever acerca disto?” A resposta que dá é a seguinte: se não escrevermos sobre estas coisas alguma vez, perdemos a nossa humanidade. A estética não é um penduricalho. As coisas belas e sentimentais são fundamentais.

 

Esse caminho foi-o encontrando sozinho ou houve figuras fundamentais que o ampararam na descoberta? Pai, irmãos, professores.

O meu pai tem uma influência muito forte em mim. Sou cada vez mais parecido com o meu pai, com o andar do tempo. Já muito depois desta ida para a biblioteca da Penha de França, o meu pai, numa conversa de família, disse-me que tinha sido anarquista. Quando veio para Lisboa tinha tido uns colegas que ainda sobravam da primeira República, velhos anarquistas, que o tinham influenciado.

 

Curioso que não lhe tenha passado essa réstia de anarquismo.

Ele nunca o faria, nunca me doutrinaria. E o meu pai tem ainda outra coisa: quando se reformou e voltou para a aldeia modificou-se completamente, passou a ser uma pessoa muito mais branda. Era, como naquele verso do Alberto Caeiro, ou sobre o Alberto Caeiro, “um camponês preso em liberdade na cidade”. A minha mãe, não, adorou Lisboa, e gosta quando lhe telefono de algum lugar e digo que estou a descer a rua tal. Há esses dois pólos. Depois há imensos amigos em várias fases, no ciclo preparatório, na escola secundária, na faculdade. Um amigo na faculdade, que escrevia poesia, coisa que nunca fiz, disse-me: “A coisa mais importante é a poesia, tudo o resto vem depois”. Eu não seria assim. Mas haver alguém que tinha essa atitude perante as coisas representava uma abertura grande.

 

Sempre foi de uma certa pulverização? Está na política, na história, na arte, na literatura. Estes são os seus campos constantes. É imenso. Nunca teve uma fase focada apenas num aspecto? Nem quando fez o doutoramento?

Ainda não terminei a tese. O doutoramento foi uma fase em que não ligava à política. Na faculdade até tive actividade associativa, na associação de estudantes da FCSH, na chamada guerra das propinas. Saí muito chateado com uma certa mesquinhez que se encontra na acção política quotidiana, golpes baixos, coisas desse género. Achei que era importante não pensar em política. Se se pensar só em política não se descansa. Não se lê filosofia, não se lê poesia. Entre 1993 e 2003, até à guerra do Iraque, a política era bastante secundária em relação à história e à literatura. Perguntava-me pelas influências: na faculdade fui aluno, depois colaborador, e depois orientando, do António Hespanha, meu professor de História. Tenho com ele aquela relação de pai académico, com tudo o que isso traz. Admiração, respeito, às vezes uma certa timidez, às vezes uma distância, às vezes aproximação. É uma fase de dedicação quase completa à História e aos livros e à literatura. Mas é verdade que me vejo mesmo como generalista. Há um valor democrático em ser generalista.

 

Como assim?

Não podemos só escrever acerca das coisas que conhecemos. Sucumbimos a uma espécie de mil monólogos tecnocratas. É importante que um tipo que tem um diploma em História da Arte escreva acerca da crise, que entre num debate económico. Senão, são só os economistas a discutir uma coisa que é muito importante para nós.

 

Porquê História? Porque é que é mais que tudo um historiador?

Disse que não tinha medo de coisas pirosas, e esta é a pirosa das pirosas. Tinha quatro anos e estava na praia com os meus pais; os meus pais estavam a brincar sobre as coisas que poderia vir a ser, e entre as várias disseram historiador. Porque a minha mãe gosta de História e porque o meu pai estava a provocá-la com isso. Perguntei o que é que era e disseram-me que era saber coisas do passado. Desde essa altura que, como ideia fixa, queria ser historiador. Mudei de agulha muito levemente à entrada da faculdade, escolhi História da Arte em vez de História.

 

O que é que os seus pais sonhavam para si? Já há vários irmãos na faculdade, em relação àquilo que é a formação dos seus pais, há um passo em frente.

Todos estudaram. Os meus pais queriam para nós, e aí principalmente a minha mãe, que estudássemos.

 

Como é que se verbalizava isso? Para ser alguém, para ter uma vida melhor, para saber?

Para saber. “Porque o saber não ocupa lugar”, que era a frase típica da minha mãe. Era uma família às vezes com pouquíssimo dinheiro, mas se dissesse que era para um livro, conseguia sempre que me dessem, mesmo que não fosse um livro essencial.

 

E que história é essa do seu irmão que estudou na Checoslováquia?

Fomos lá quando se casou. O pai da mulher do meu irmão era checo nascido na Áustria e a mãe era eslovaca de Bratislava. Era das pessoas que ficaram genuinamente tristes com a partição do país. Nunca tínhamos saído mais do que ir a Espanha. Demorámos cinco dias porque o meu pai não conduz a mais de 90, fomos numa carrinha. Só eu e o meu irmão é que falávamos línguas estrangeiras. Saímos pela fronteira de Santo António das Areias, em Marvão, numa estrada pobre, triste, escura. Fizemos Espanha, França, Suíça, Alemanha, Áustria e Checoslováquia. Quando entrámos na fronteira encontrámos exactamente a mesma estrada triste, escura, esburacada, igual à portuguesa, depois das auto-estradas e túneis suíços. Os meus pais conheceram os sogros do meu irmão, que falavam espanhol porque tinham estado em Cuba.

 

Falou-se de política, portanto, e de diferentes encontros com o comunismo.

Falaram dos diferentes regimes políticos. Os meus pais saíram críticos da Checoslováquia. Eu já era (isto foi depois da biblioteca). Quem era de passado comunista, caso da minha família, tinha duas reacções perante o embate com a realidade do leste: ou virava crítico, ou virava dogmático. Isto deve ter sido em 86 ou 87. O Natal de 89, com a família toda, tios, primos, é o Natal em que há a revolta na Roménia e em que executam o Ceauşescu: foi um Natal dos diabos! Foi uma discussão política permanente, com os meus pais a perguntarem aos meus tios como é que era possível eles defenderem aquilo. Não é possível defender aquilo, não há justificação nenhuma para se defender a falta de liberdade.

 

Os seus pais tinham engolido a ocupação de Praga? Não foi nessa altura que se tornaram críticos.

Em 1969 Portugal era um país completamente diferente. As coisas que se diziam dos comunistas eram tão exageradas que a minha mãe diz que quando viu soviéticos pela primeira vez na televisão, nos Jogos Olímpicos, ficou admirada por terem um aspecto humano, mais ou menos parecido com o das outras pessoas. O que ela tinha ouvido dizer em Lisboa, aos patrões dela, que eram anti-comunistas…

 

…era que os comunistas comiam criancinhas ao pequeno-almoço?

Isso. O meu tio, que era sindicalista e que depois veio a entrar no Partido Comunista, foi preso várias vezes pela PIDE. A minha mãe ia à [Rua] António Maria Cardoso, diziam-lhe que ele não estava lá, mas estava. Com 15 dias os meus pais levaram-me à cadeia de Peniche onde estava o meu tio preso. Aí é diferente, eram resistentes à ditadura.

 

E a forma de ser resistente e de ser do contra era ser comunista.

Era. Eram heróis.

 

O que é que representou para os seus pais e para si o desmoronamento do mundo soviético a seguir à queda do muro em 1989? Foi só a consumação disso que já se vinha avolumando?

Não foi nada de dramático. Deu esta discussão familiar, mas não era nada que na Arrifana não fosse comum. Contam-nos que no funeral da avó dos meus irmãos, que tinha vivido bastante connosco, (aliás os meus irmãos tratam a minha mãe por mãe e nós também tratamos a mãe deles por mãe), a avó Dionísia, durante todo o velório só se discutiu política. Discussões acerca de política ou de religião eram muito comuns. Não tenho nenhuma espécie de relação sentimental com as coisas soviéticas e de leste, nem os meus pais têm, nem os meus irmãos têm, inclusive o que viveu na Checoslováquia, que também veio crítico de lá.

 

Era preciso encontrar um espaço político ou um partido no qual se revisse, mas não havia dúvida nenhuma de que aquele era o seu lado da barricada.

Nenhuma. Como aquelas divisões do reino animal, as grandes famílias, os mamíferos… A família é a esquerda, o que quer dizer que quem é de esquerda é meu primo de uma maneira ou de outra. Isto foi muito mal entendido quando disse que é a mesma família do Sócrates. Eu sou de esquerda e ele é de centro-esquerda. Não tenho de gostar dos meus primos todos, há primos que fazem coisas muito erradas, há primos que defendem a Coreia do Norte. Não pago dívidas pelas dívidas dos meus primos, os erros dos meus primos são erros dos meus primos. Mas são pessoas que se reclamam da esquerda. Não posso dizer que só é da esquerda quem é como eu sou. As espécies: sociais-democratas, republicanos clássicos, mutualistas, libertários de esquerda, marxistas, não marxistas. E podem coexistir muitos bichos.

 

Foi eleito deputado europeu como independente pelo Bloco de Esquerda. Poderia estar mais ligado a um outro partido de esquerda, e ser eleito também enquanto independente pelo PS, nomeadamente?

Não teria entrado para a política a não ser por duas coisas que me interessavam, a Europa e Lisboa. Na Europa não iria pelo PS depois de ter sido negado o referendo ao Tratado de Lisboa. Não se pode ser complacente com os poderes da Europa, com a comissão, com o conselho, e há um excesso de complacência no PS. No Bloco co-existem muitos bichos, muitas espécies, algumas das quais são muito próximas de mim, embora seja verdade que no PS há muitas espécies que também são muito próximas de mim.

 

Essa aproximação ao Bloco também tem que ver com o núcleo duro do Barnabée com as pessoas com quem se dava, nomeadamente o Daniel Oliveira? Considera o blogue como um momento essencial da sua carreira de “opinador”?

Em 2003, quando fundámos o Barnabé, estava no ensino superior, a dar aulas mas sub-empregado, e logo a seguir desempregado, porque a universidade, quando chegávamos ao fim de dois anos a recibos verdes, mandava-nos dar uma volta. E havia a guerra do Iraque. Era um daqueles momentos em que temos o dever de prestar atenção à política. Se não o fizermos, se uma coisa destas está a acontecer e vamos à nossa vida, não estamos à altura da importância moral que determinado momento tem. Comecei a escrever sobre política no Barnabé. Escrevia o que achava, não estava a fazer carreira política nem carreira de opinador. A coisa só corre bem quando não estamos a fazer carreira.

 

Explique lá isso.

Costumava dizer isso quando dava aulas. Muitas vezes os meus alunos estavam preocupados com o aspecto profissional, carreirista, o “quando sairmos daqui”, o diploma, a nota. O que lhes dizia era: “Aqui têm de se preocupar com a coisa para que a universidade foi feita: as ideias. Têm de comer, beber e respirar arte do Renascimento, filosofia da linguagem ou história do design. Se levarem isso como uma espécie de obsessão, tudo o resto vai correr bem, vão arranjar sempre emprego”.

 

Dizia isso sub-empregado?

Sim.

 

É extraordinário que não se tenha deixado impressionar pela incerteza do futuro, numa situação instável e sem uma retaguarda que assegurasse o indispensável.

Funcionou comigo. História era o curso [em ralação ao qual] as pessoas diziam: “Não vás para isso”. Se estiver verdadeiramente entusiasmado com o que estou a fazer, esse entusiasmo é contagioso. Lembro-me de uma conversa quando íamos, vários amigos da faculdade, para o Algarve passar o fim-de-semana. Toda a gente muito preocupada com o seu futuro profissional. Eu dizia: “Vai correr bem, estou optimista”. E algumas das pessoas que estavam nesse carro são as fundadoras da Tinta-da-China, a editora que publica os meus livros. Ninguém lhes arranjou coisas para fazer, elas inventaram uma coisa fantástica para fazer.

 

Então é inventar o que fazer? Inventar uma vida, inventar um propósito.

Mais ainda do que estava a pensar. Sempre pensei que queria ser escritor nos tempos livres, dar aulas e escrever umas coisas. Quando fiquei desempregado, estas amigas estavam a fundar a Tinta-da-China e eu tinha ideias para um livro sobre o terramoto. Foi escrito, hoje posso dizer isto, em 62 dias, e foi o primeiro livro da editora. Passado um tempo estava a escrever no Público e de repente era aquilo que nem tinha tido coragem de sonhar: um escritor profissional. Podia ter continuado a ser isso. Era uma belíssima vida se não viesse o Parlamento Europeu.

 

Nunca quis ser romancista? Esse escritor dos tempos livres era sempre pela via do ensaio, do pensamento sobre a história?

A escrita é um bocado como ser carpinteiro. O carpinteiro é o tipo que trabalha com a madeira, e depois há tanoeiros, marceneiros. Dentro da não-ficção pode-se ser ensaísta, filósofo, historiador. Mas também escrevi ficção, uma peça de teatro, e tenho sempre ideias para romances e para contos. O que mais gosto de fazer é tradução.

 

Porquê?
Porque é um trabalho muito agradável. Como é que acabo este capítulo, como é que faço a ligação, agora estou bloqueado e não avanço, há dois meses que não escrevo uma linha. Já houve outro que sofreu por nós. Se se traduzem coisas boas, é um privilégio estar a aprender com os melhores. Ao traduzir aprendem-se as manhas.

 

Aprende-se o ofício da carpintaria.

Exactamente. Como é que Molière introduz uma pista no primeiro acto que depois vai estar no desenlace no quinto acto, ou que vai ser uma piada hilariante no terceiro acto.

 

Porquê o Iluminismo? Porquê a tese do doutoramento sobre os censores e a Real Mesa Censória?

A época moderna, séculos XVI, XVII e XVII foi por causa do António Hespanha. Depois descobri que havia uma série de coisas no Iluminismo que tinham muito a ver comigo, e daí o gosto pelo Voltaire, pelo Diderot, por outros.

 

Novo parêntesis numa conversa com um sentimental: sabe das cartas do Diderot para a namorada, Sophie Volland?

Ah, sabia da namorada do Voltaire, a Madame du Châtelet. Quando morreu, de parto, Voltaire chorava nas escadas de mármore do palacete, e dizia ao outro, de quem ela estava grávida: “Como é que a pudeste engravidar, como é que pudeste deixar esta mulher morrer?”.

Os meus interesses em História eram Grécia, Roma. Quando foi a eleição para o Parlamento Europeu, tinha-me inscrito de novo na faculdade para estudar latim e grego. Tenho esta ideia de que uma boa vidinha para mim, daqui a uns anos era ir para a reforma, traduzir e ler Plutarco. Os meus amigos gozam. Os historiadores da antiguidade são os meus ídolos. Ainda tenho de comer muito pão até chegar lá, mas gostava.

 

Porquê a Real Mesa Censória, é o fascínio pelo Marquês de Pombal?

Não tenho nenhum fascínio particular pelo Marquês de Pombal. Convidaram-me para defender o Marquês de Pombal no programa “Grandes Portugueses”, e disse que não. Estudo o Marquês de Pombal, não o defendo. Nem ataco. A minha ideia de trabalho historiográfico é garantir um certo tipo de compreensão profunda, tanto quanto possível, daquelas pessoas do passado. É um trabalho que tem uma certa ética, que me foi muito passada pelo António Hespanha: “Se quiserem que me escandalize com a Inquisição, vamos ali beber um café e escandalizo-me com a Inquisição. Mas agora estamos na sala de aula, o nosso papel aqui é compreender a Inquisição”. Há uma certa obrigação de não trazer para as nossas brigas do presente as questões do passado. No debate historiográfico e político em Portugal as pessoas vão buscar o fim da monarquia para defender as suas posições acerca do marcelismo ou da AD.

 

Ainda não explicou porquê os censores, num período tão rico.

É uma fonte fascinante. Censurava-se por razões estéticas. Em 1768, 100 anos depois de o Tartufo ter sido estreado na corte do Rei Luís XIV, e de ter sido durante esse tempo Molière um autor proscrito, por ser contrário às máximas do Evangelho, o Marquês de Pombal abriu as portas ao Molière. Mas para isso proibiu o teatro espanhol. Vê porque é que não o posso defender? Representaram o Tartufo com ele vestido de jesuíta, para a mensagem ficar bem clara. As pessoas tinham que ver os pecadores serem descobertos e sofrerem reprovação social como no teatro francês. É um mundo em que as leituras estética, política e moral do teatro estão todas encalacradas umas nas outras. Isso é tão igual para os nossos censores como para alguns dos autores que eles proibiam, como o Rousseau e o Voltaire.

 

Como eram os relatórios de censura?

Temos quase 1500 relatórios, não são nada como a censura que se encontra no séc. XX. A censura do António Pereira de Figueiredo sobre Voltaire: são 70 páginas de análise densa. São ensaios, com notas de rodapé. Um historiador é um fascinado por estas diferenças. As palavras são as mesmas, mas referem-se a realidades muito diferentes. Por exemplo, não utilizavam nunca a palavra “interessante”. Não há nenhum livro que passe porque é interessante.

 

Qual era o critério?

Só passa porque é útil. E se não for útil, pelo menos que seja curioso. Se não for nem útil nem curioso, não há razão nenhuma para ter esse livro cá fora. O livro pode não ter nada contra a moral e os bons costumes, não ter nada contra o reino, nada contra a religião, mas é um livro inútil. “Porque é que alguém, depois de ter perdido tempo a escrevê-lo”, e estou a citar textualmente um censor, “há-de fazer perder tempo às pessoas que o podem ler? Não é para isto que um livro serve. Um livro serve para uma conquista útil de conhecimento”.

 

Na sua página na internet aponta como sendo uma das principais obsessões o passar do tempo de um modo geral. Fala também do futuro, das cidades, da cultura e da filosofia.

Fui muito mais formado pela ficção científica do que pelo romance histórico. O historiador não é alguém só interessado no passado, é alguém interessado pela mudança.

 

Alguma vez tomou para si o verso “não sou nada, nunca serei nada, à parte disso tenho em mim todos os sonhos do mundo”?

Esse verso é escrito para toda a gente. Toda a Tabacaria é escrita para toda a gente. É uma viagem mental que toca alguns dos conhecimentos que todos já tivemos alguma vez.

 

O que interessa é saber se você, Rui Tavares, teve todos os sonhos do mundo e achou que nunca seria nada. Toda a conversa para trás é a de uma pessoa que inventa a sua vida, a sua própria narrativa, e que não duvida de que todos os sonhos estão ao seu alcance.

Passamos por fases de fermentação e de destilação. O séc. XVIII é isso: porque é que não queriam livros inúteis?, porque queriam chegar à destilação, à concentração numa ideia. O romantismo do séc. XIX é um século de fermentação. Coisas inúteis, ruínas, sentimentalismo. A seguir vem o Positivismo, o Darwinismo, o Marxismo, que são destilação outra vez. A Tabacaria é um poema de fermentação. Ricardo Reis: “Para ser grande sê inteiro, nada teu exagera ou exclui, põe quanto és no mínimo que fazes”, é um poema da destilação. Na minha peça de teatro, O Arquitecto, as duas personagens são assim. A da destilação é uma pessoa que escolheu fazer pouco, não quis ser famoso, não quis carreira, que pôs quanto era no mínimo que fazia.

 

Você é esses dois personagens. Ciclicamente, talvez.

Gostaria de ser principalmente o segundo, o da destilação. A minha tendência natural é para ser o primeiro, o da fermentação. Está-se melhor na destilação. É uma coisa mais solitária, mais pacífica. A minha luta para não me deixar distrair e ser um bom historiador, digno desses bons professores [Hespanha e Mattoso], é dar tempo ao tempo, dedicação. Isso vai acontecer um dia, daqui a uns anos.

 

Tem um plano?

Pus um prazo a mim mesmo para andar nestas coisas em que ando, principalmente a política. Termina quando o 25 de Abril fizer 48 anos. Quando tivermos tanto tempo de democracia quanto tivemos de ditadura. A ditadura estava errada. Mas a suprema vingança sobre a ditadura é a seguinte: em 48 anos de democracia fizemos um país muito melhor, mas muito melhor!, do que em 48 anos de ditadura. A partir daí, há outros que pegam nisto.

 

 

Publicado originalmente no Público, em 2010