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Anabela Mota Ribeiro

José e Ricardo Sá Fernandes

31.05.21

Há quem os deteste e pergunte: “Quem é que estes tipos pensam que são?”. Há quem os estime e aplauda a coragem de dois cidadãos sem medo. (Por acaso, num escritório que foi de Ricardo e depois de José havia uma procuração assinada por Humberto Delgado, o general sem medo, emoldurada, à entrada). Ricardo e José Sá Fernandes são irmãos e enfrentaram juntos uma muito comentada – e julgada – tentativa de corrupção. Antes desse episódio houve outros, do túnel do Marquês à defesa de Carlos Cruz no processo Casa Pia, que viveram em separado, e que fizeram deles figuras polémicas. Uma coisa é certa: ninguém lhes é indiferente. Eles gostam disso.

Cresceram num quinto andar da Avenida de Roma, numa família burguesa. Estudaram Direito. Era previsível que Ricardo, o mais velho, fosse advogado. Era menos previsível o que José, o Zé, faria com o seu destino. Um replicou a família de origem, o outro deu o salto para um quadro de vida diferente. Um notabilizou-se por ser o advogado de alguns dos processos mais mediáticos da justiça portuguesa, o outro pôs acções populares e acabou vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Os Sá Fernandes são os manos inseparáveis, sem fissuras na relação? Ou os manos Sá Fernandes são uns tipos irritantes cheios de pedras no caminho?

Num domingo à tarde, juntaram-se em casa de Ricardo para falar dos avós e dos pais, da vez em que o Zé esteve preso, da relação com a autoridade, do quanto se admiram, do quanto se gostam, das diferenças que os separam. Quando José chegou, Ricardo abriu-lhe a porta e deram um beijo na cara. Mas como é que dois irmãos se haviam de cumprimentar senão com um beijo na cara? Durante a entrevista sentaram-se em cadeiras diferentes, porque o Ricardo pediu para ficar na sua cadeira de sempre – uma cadeira individual. Há coisas que não sabem um do outro. Mas sabem o essencial. E sabem que contam um com o outro.      

 

 

Qual era o objecto da vossa disputa quando eram pequenos?

José – Era o jogo das moedas. Era um futebol de moedas. A minha equipa era o Estrela Nova, a dele era a Armada Invencível.

Ricardo – A bola era uma moeda de um centavo. Tínhamos moedas antigas e estrangeiras, que eram os jogadores. Tínhamos de meter golos um ao outro.

José – Ele nunca me deixava ganhar.

 

Era suposto que o deixasse ganhar?

J. – Era. Eu jogava melhor. Ele fazia batotice. Não me deixava ganhar porque era o mais velho.

R. – Abusava da situação de ser o mais velho, eventualmente.

 

Afinal quem é que jogava melhor?

R. – Ele tinha mais jeito. Isto passa-se quando eu tenho 12 anos e ele oito, quando eu tenho dez e ele seis. Eu tinha mais força. Quando a diferença de idades foi ficando esbatida (ou seja, quando a distância psicológica foi diminuindo à medida que fomos crescendo), a questão deixou de ser pôr. Esse jogo era um grande polo de atracção e de conflito. Adorávamos jogar esse jogo e discutíamos por causa desse jogo.

 

Jogavam só um com o outro?

R. – Não. Jogávamos em equipa. No prédio havia vizinhos que tinham também as suas equipas. O Manuel Pinho [ex-ministro da Economia] também tinha [equipa]. Mas jogava pouco, jogava mal. Isto foi uma coisa que aprendemos com um tio nosso, irmão mais novo da minha mãe, que tinha inventado este jogo com os colegas.

J. – Um dos colegas não era o Basílio? O Basílio Horta.

 

A versão pobre disso não é jogo das caricas? Jogavam isso com moedas, algumas estrangeiras. Diz qualquer coisa sobre o acesso que tinham a essas moedas, o vosso estatuto social.

R. – Sim. Algumas – ainda no outro dia as vi numa caixa – eram moedas das colónias. Angola tinha moedas, suponho que Moçambique também. E pesetas, francos, libras.

J. – Caricas era mais na praia. Fui mais de caricas do que o Ricardo.

R. – E fazíamos batalhas de soldadinhos. Atirávamos um berlinde sobre os soldados dos outros; quando caíam, quando viravam, morriam.

J. – Tínhamos um soldado, que era o nosso grande trunfo, um soldado deitado com uma espingarda. Era difícil deitá-lo abaixo... Ele já estava deitado. [riso]

 

A vossa resposta foi a de duas crianças. Homens adultos, quando olham para quem foram, o que é que acham que estava no centro da vossa disputa? A atenção de adultos? A rivalidade entre dois irmãos?

J. – Nunca senti isso. Não tivemos grande disputas no resto da vida.

R. – A circunstância de ele ser o irmão mais novo marcou-nos para a vida. Continuo a olhar para ele como um irmão mais novo.

 

De quem deve tomar conta?

R. – Há um sentimento de protecção, sim. Hoje há pessoas que acham que ele é mais velho do que eu...

J. – Quem é que acha isso? [gargalhada]

 

Sempre sentiu essa protecção do Ricardo?

J. – Sim. Havia também uma grande admiração por ele.

R. – Depois há o percurso das pessoas. Os nossos pais separaram-se quando éramos adolescentes. Isso teve repercussões económicas grandes na nossa vida. Estávamos habituados a ter uma vida burguesa. Nesses momentos, o mais velho tende a aumentar a dose de protecção sobre o mais novo.

 

A ser o homenzinho da casa?

R. – Sim. A separação apanha-me na faculdade, a nossa irmã a entrar na faculdade, e o Zé mais abaixo. Não imediatamente, mas a situação gerou uma necessidade de eu ir trabalhar, de a minha irmã ir trabalhar. E a possibilidade não se pôs em relação a ele. Estamos a saltar um elemento muito importante: a irmã que está no meio.

 

Vocês são “os irmãos Sá Fernandes”. A vossa irmã tem um percurso mais discreto. É possível compreender a vossa relação sem falar dela?      

J. – A minha irmã é o equilíbrio.

R. – É uma pessoa muito sensata, ponderada. É juíza, magistrada na Relação de Lisboa. É de um extraordinário bom senso – coisa que nós às vezes não temos.

 

Quando foi o caso Domingos Névoa, falaram com ela? O empresário do BragaParques foi julgado por tentativa de corrupção; em causa estava uma permuta de terrenos entre o Parque Mayer e a Feira Popular acordada com a CML. 

R. – Falámos com ela depois.

 

Não sei se podiam, por razões profissionais, envolvê-la antes. Falar com ela antes.

R. – Não falámos antes exactamente porque ela é juíza. Achámos que era uma coisa que a podia [beliscar]. Mas depois ela acompanhou toda esta história, deu-nos todo o apoio. No momento inicial, até isto ter rebentado, ela não sabia o que se estava a passar.

 

Sentiu-se excluída?

R. – Não. Mas [retomando o ponto]: não é possível compreender-nos sem compreender a posição da minha irmã no meio.

J. – Ela tinha de nos aturar aos dois. Eu com as coisas do traquina mais novo, e o meu irmão com as coisas do traquina mais velho.

R. – Foi sempre um elemento de agregação. Eu estou mais vezes com a minha irmã do que com o meu irmão. E o meu irmão está mais vezes com a minha irmã do que comigo. O meu irmão janta todas as semanas com a minha irmã. Não janta comigo. Eu não o via há várias semanas. É o reconhecimento que temos dessa ponderação que nos faz [estar perto dela].

 

Falam-se muito, os dois?

J. – Falamos.   

R. – Se tivéssemos, entre os três, de dizer: “Qual é o elemento mais forte desta família”?, é evidente que é ela, que não somos nós.

J. – É mais fácil [jantar com a minha irmã]. Tem uma vida equilibrada, estável, está sempre lá a horas [riso]. O Ricardo tem uns horários estrambólicos.

R. –Talvez isto tenha tido a ver, também, com a separação dos nossos pais, com a forma como crescemos. Foi uma separação um pouco conflituosa. Deu-nos uma robustez, uma coesão entre os três. Muito cedo formámos um bloco. Às vezes acontece, mas é raríssimo haver uma discussão entre nós.

 

Como é que era a vossa vida no período em que estavam os cinco em casa? São já crescidos, muitas coisas estão já estruturadas quando os vossos pais se separam e formam um bloco para enfrentar o cataclismo.

J. – Fomos todos surpreendidos com isso.

R. – Há aquelas separações que se anunciam, que se vão arrastando. Nós não notámos nada. Até ao momento da separação...

J. – Até ao próprio dia. Vivíamos uma vida normalíssima.

R. – Era uma família de classe média. A minha mãe era de Lisboa, tinha uma família grande. A família do meu pai era do Porto, grande. Vivíamos muito ancorados nas famílias, com muitos tios, tios-avós, primos. O que é que querem que eu diga? A minha infância, a minha adolescência, foi a de uma família burguesa, urbana. Até ao momento da separação, não sentimos problemas económicos. Eu frequentava um liceu, os meus irmãos frequentavam colégios particulares. A minha irmã o Sagrado Coração de Maria, o meu irmão o São João de Brito. Os nossos pais podiam propiciar isso. Não sou capaz de fazer um retrato impressivo de como era para trás. Diria que era normal, corrente, feliz.

J. – E presente. Almoçávamos e jantávamos todos os dias em casa. E durante muito tempo tomámos o pequeno-almoço juntos.

 

Essa constância não é sinónimo de intimidade. Ter a certeza de que o outro está ali a horas certas, e que a vida é previsível, não quer dizer que as pessoas não tivessem um mundo próprio, ou soubessem o que se passava no coração do outro.

R. – Os nossos pais não eram pais modernos, no sentido de terem muitas cumplicidades com os filhos. Cultivavam alguma austeridade nesse domínio. Claramente havia o mundo das crianças e o mundo deles. Não havia a cumplicidade que hoje tenho com os meus filhos – ou que tu tens com a tua filha.

 

Nunca foram passear por Lisboa, olhando a cidade e plantando árvores, como faz hoje com a sua filha?

J. – Não.

 

O que é que faziam juntos, além das refeições?

J. – As memórias mais fortes que tenho são das férias. Passávamos temporadas na praia.

R. – Chegava a Junho e íamos para casas alugadas. Na Ericeira, Praia das Maçãs, Estoril. Variava. Férias longas, dois ou três meses. Em Setembro eu ia para a família do meu pai, para o Minho, onde tinham uma quintarola. Havia muitos programas em grupo.

J. – E [festas de] anos.

 

Ninguém partilhava angústias? Se é que as tinham...

R. – Não.

J. – O meu pai levava-nos ao futebol, e mais tarde ao cinema. Lembro-me de os meus pais discutirem filmes à mesa. Depois, muito presentes, estavam os nossos avós, pais da minha mãe. O meu avô era uma figura por quem tínhamos grande admiração.

 

Como é que ele era?

J. – Era um homem grande, careca.

R. – Um militar. Tinha sido um tenente do 28 de Maio. Era um homem do Estado Novo, de grande carácter, de padrões morais elevados.

 

É a primeira vez que há uma menção ao Estado Novo. Não tinha aparecido uma referência à política. Tudo o que descreveram se passava antes da revolução. A política era uma coisa que se discutia em casa?

J. e R. – Não.

R. – Só já muito próximo do 25 de Abril.

J. – E quando vais para a faculdade.

R. – Digamos que éramos uma família da classe média integrada no Estado Novo. Com uma presença tutelar do meu avô, que era militar, e que era um homem do Estado Novo. De uma rectidão irrepreensível. Supostamente vivíamos num mundo bem organizado.

 

Como naqueles filmes em que a mesa do pequeno-almoço está sempre pronta, com o pão partido e fatias de bolo feito em casa?

R. – Exactamente. 

 

Apesar de ter tido vários casamentos, o Ricardo parece mais um bicho de família, tentando reconstituir a família de origem. O Zé teve um casamento, e parece mais o rebelde.

J. – Posso passar essa imagem, mas sou um impulsionador [dessa estabilidade da família].

R. – Mais como um desejo. Tens tido uma vida...

J. – Liberta. [riso]

R. – Eu, apesar de me ter casado várias vezes – vou no terceiro casamento – procurei sempre reconstituir uma família. Tive três famílias e procurei voltar sempre ao mesmo.

 

O que é que está na génese da sua rebeldia? É menos burguês segundo estes parâmetros, tem o epíteto de “rebelde” de forma mais ou menos constante, com uma conotação mais ou menos positiva.

J. – [breve silêncio]

R. – Ele dava-se com mais pessoas da rua do que eu. Era mais solto. Eu era mais organizado e estabilizado nas relações.

J. – Andei num colégio de padres durante sete anos. Gostei muito de ter andado lá. Estava no sexto ano quando vivi o 25 de Abril. Abriu-se um mundo, o da política. Lembro-me de estar, antes do 25 de Abril, em casa do António Garcia, cujo irmão estava exilado em Paris, e de ouvir pela primeira vez discos do Zeca Afonso e do Sérgio Godinho. Mostrou-mos secretamente. “Não sabia que isto existia...”. (O António era um amigo meu, o Ricardo era amigo do irmão dele.) Mas, de facto, eu andava com toda a gente. Desde os filhos da porteira aos filhos do médico do primeiro andar.

 

Era um mundo menos classista do que é hoje?

J. – Eu acho que não sou classista. E o mundo não era tão classista.

R. – Num certo sentido, sim, as coisas são hoje mais estratificadas. Tínhamos uma diversidade de relações maior do que o meu filho hoje tem. O Zé rapidamente se dava com todo o tipo de gente. [Esteve envolvido em situações] que tiveram uma repercussão concreta. O meu irmão esteve preso.

 

Quer contar a história?

J. – Três meses, quase quatro. Por uma lei inacreditável! Fui preso, mas fui absolvido.

R. – Todos os envolvidos foram absolvidos. Foi o meu primeiro julgamento, ainda como estagiário. Quem fez a defesa do meu irmão foi o Dr. Goucha Soares (ainda vive, fez agora 90 anos).

J. – Nós, [os meus amigos e eu], entrámos num carro que diziam que era roubado. Nessa altura a lei dizia que o crime era incaucionável.

 

Incaucionável quer dizer que a pessoa fica presa preventivamente sem direito a pagar uma caução e sair em liberdade. Tem de ficar presa até à sentença.

R. – Havia muito furtos de automóvel. Foi 1976, 1977. A polícia interceptou-os e prendeu-os a todos.

J. – Isto aconteceu no Verão, o julgamento aconteceu logo no princípio de Outubro e provou-se que o carro não era roubado.

R. – O que se provou foi que o carro vos tinha sido emprestado e que vocês não sabiam qual era a situação do carro.

J. – E não era roubado.

 

Como foram esses meses? Cá fora o país a pegar fogo.

J. – É um assunto de que não gosto de falar. Foi duro, duríssimo. Lembro-me de o juiz me perguntar: “O que é que você está aqui a fazer?” “Sr. Dr., isso gostava eu de saber. Estou aqui há três meses sem saber porquê.” Tenho presente a imagem dele, do juiz. Era um pequenino, não era?

R. – Era. O julgamento foi na sala do tribunal plenário, lembro-me perfeitamente. [vira-se para o irmão] Mas estavas numa cela sozinho? Nunca falámos muito sobre isto.

J. – Estava numa cela sozinho. No Linhó. Era um ambiente pesadíssimo. Ladrões, criminosos, e um miúdo queque metido ali. Tinha 18 anos. O que me ajudou a aguentar aquilo é que jogava muito bem matraquilhos. Mas mesmo muito bem. Ainda jogo.

R. – Hoje já vai gente mais fina para as prisões [riso], mas na altura...

J. – Eu era um copinho de leite. Portanto apanhei uma amostra de mundo. Vejo filmes [passados numa] prisão e digo: “É mais ou menos isto”. Depois estive numa cela sozinho. Dá-me ideia que eu tinha alguma vigilância dos guardas prisionais. Não quer dizer que não houvesse pessoas que foram depois absolvidas, mas a maior parte estavam presas por todo o tipo de crimes, e muitos delas não era a primeira vez que estavam presas.

 

Como é que os matraquilhos o ajudaram? Foram a forma de socializar, estar entre as relações de poder da cadeia?

J. – Tinha de se ter jeito para alguma coisa para a pessoa ser respeitada, ali no meio. Chamavam-me para jogar matraquilhos, eu ia. Eles jogavam a dinheiro entre eles, e era bom terem-me ali do lado.

 

Nunca mais foi preso?

J. – Não. Mas uma vez deram-me uma ordem de prisão – também fui absolvido – por desrespeito à autoridade. Quando entrei em Direito, percebi que o Direito é uma arma muito importante para não nos deixarmos ir abaixo e lutar pelos nossos direitos. Dessa vez não foste tu [quem me defendeu], foi o [Francisco] Teixeira da Mota. Eu tinha acabado de sair da tropa e estava com os meus soldados a beber umas cervejas na Avenida da Liberdade. É uma história de rapazolas. Não nos serviram a nós mas serviram outros. Protestei. Chamaram a polícia, que nos deu ordem de prisão. Lá fomos todos.

 

Achou que lhe podia aconteceu o mesmo que tinha acontecido aos 18 anos?

J. – Não, não. Era uma coisa completamente diferente. De lana-caprina.

 

O Ricardo esteve preso em 1971. Coisa de uma noite só, tanto quanto sei.

R. – Fui julgado e foi a minha estreia nos tribunais. Defendi-me a mim próprio. Foi uma discussão com um polícia. A certa altura recebo uma ordem de prisão, fui levado para a esquadra da Praça da Alegria. O polícia estava a mandar-me tirar o carro de um sítio onde eu o podia ter. Era uma embirração. Disse que não tirava o carro a não ser que me explicasse porque é que tinha de o tirar. Andava no primeiro ano de Direito, estava até divertido, porque via a agitação dos polícias à procura de uma coisa que me proibisse de estar estacionado naquele sítio; e não encontravam. Era uma espécie de vitória de um miúdo de 18 anos que estava a ganhar aos polícias.

 

Tinha uma atitude de desafio?

R. – De desafio. Aquilo devia estar a enervá-los. Eu estava no átrio da esquadra. Ando sempre muito de um lado para o outro – devia estar a andar de um lado para o outro. O polícia chegou-se ao pé de mim: “O senhor faz favor de se sentar. Sente-se!” Sentei-me. E depois, sentado, pensei: “Mas eu não tenho de estar sentado. Estou detido. Mas sou livre de estar sentado ou de pé”. Tornei a levantar-me. “Ai és desses? Sr. subchefe, traga as algemas que este senhor é perigoso e pode querer fugir”. Algemaram-me a uma porta, durante horas. Mas eu estava tranquilo, sabia que só podia acabar bem. Só às cinco da manhã percebi que as coisas podiam ser exactamente ao contrário [do que eu tinha previsto]. Que corria riscos. Apareceu na esquadra um militar que superintendia na polícia e começo a ouvir o guarda, chefe da esquadra, a inventar uma história. A inventar! “Este rapaz disse que os polícias eram todos uns palhaços! E quis fugir.” Naquele momento fez-se um clique. Percebi que ainda acabava condenado com aquela história. E comecei aos berros. Eram paredes de tabique. Comecei a chorar. Tive uma crise de choro, de berros. O militar (suponho que era um coronel) assustou-se e foi falar comigo. “Que é que se passa?” “O que esse senhor está a contar é completamente mentira.” Tive a sorte de o tipo, que era um homem mais velho, dizer: “Está bem, rapaz”. Passados dez minutos tiraram-me as algemas e mandaram-me julgar no dia seguinte em processo sumário, com uma acusação que correspondia exactamente ao que tinha acontecido. Fui absolvido.

 

Foi o primeiro momento de descrédito em relação à justiça?

R. – Eu tinha razão, estava seguro disso. Se não tem sido o bom senso daquele senhor, que percebeu – percebeu [pelo modo] como eu estava a reagir – que aquilo não batia certo, no dia seguinte tinha sido julgado, com uns polícias a confirmar o que estava no auto de denúncia inicial, e sido condenado. E teria começado a faculdade, aos 18 anos, com uma condenação por crime de desobediência. Não era simpático. Mas percebi que quando exercemos os nossos direitos temos que ter muita cautela. Para não sermos surpreendidos por aquilo que não podemos demonstrar.

 

Ainda voltamos a estes episódios. Mas gostava, para já, de ligar isto à profissão que ambos escolheram, a advocacia. Em relação à tentativa de corrupção, ocorreu-vos que a situação podia inverter-se?, que podia colocar-vos numa situação que não controlavam? Lembraram-se desses episódios quando discutiram o assunto BragaParques?

J. – Isto foi acompanhado pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução. Nunca me ocorreu que houvesse [essa inversão].

R. – A mim ocorreu-me que isto tinha perigos. Daí as cautelas que tive. Mas nunca me passou pela cabeça que os perigos atingissem a dimensão que atingiram. Isso nunca.

 

Que perigos imaginava que podiam ocorrer? E quais foram aqueles que o surpreenderam?

R. – O perigo que imaginava que me podia acontecer era o senhor negar a conversa.

J. – E contar uma história qualquer.

R. – Inventar uma história, inverter a história. Daí, quando tenho o primeiro encontro com ele, ter feito a gravação.

 

Já no primeiro encontro levou gravador.

R. – Exactamente.

 

O Ministério Público entra no processo (vamos dizer assim) no segundo e terceiro encontros.

R. – Exactamente. Nesses estou mais descansado. Nesses o meu único receio era que a gravação não ficasse bem. A primeira gravação é um instrumento de defesa fundamental. Se a não tivesse feito, teria sido possível construírem uma história... Como aliás tentaram, como aliás tentaram. Mas, não só a primeira gravação como a sequência das gravações, desmente a versão dele [Domingos Névoa]. O que nunca imaginei foi que este acto de denúncia tivesse gerado tantas hostilidades. A lata da criatura excedeu aquilo que eu esperaria. Mas o acolhimento que aquela estratégia teve junto de algumas pessoas, com responsabilidades, é [surpreendente].

J. – É uma coisa absolutamente inacreditável. É que aquelas gravações são tão peremptórias, e a luta [contra a corrupção] é tão importante... Como é que é possível que pessoas com responsabilidade tenham alinhado na conversa daquele senhor.

R. – Como é possível que tenha havido advogados, jurisconsultos, magistrados a cobrirem aquela criatura... Como é possível?

 

Qual é a explicação que dão?

J. – [prontamente] Falta de carácter.

R. – Há várias explicações. Há vários factores que concorrem para isso. Para já, a sociedade portuguesa é complacente com a corrupção.

 

É complacente porque somos muito poucos, e todos são primos e amigos, e amigos dos primos?

R. – Estamos todos agarrados uns aos outros por qualquer coisa. Portanto não há casos de corrupção em  Portugal... Grande corrupção, não há. Não há nenhum caso julgado. De média corrupção, há este. E há pequena corrupção [julgada]. Outra coisa que teve aqui um papel importante: quem denuncia. Quem denuncia são pessoas que têm vida própria, com uma projecção pública; há quem goste e quem não goste. Quem não gosta, aproveitou isto para fazer ajustes de contas. Algumas das ramificações deste processo são um desejo de acertar contas comigo.

 

Alguns dos seus processos mais mediáticos: a defesa dos familiares das vítimas de Camarate (e o livro no qual considera que se tratou de um atentado) ou o processo Casa Pia, que estava a rolar. No caso de José, tinha posto acções populares, tinha já rebentado a polémica do túnel do Marquês.

R. – Foi um momento de acertar contas com esta parelha, com estes manos. “Quem é que estes tipos se julgam?”

 

E uma animosidade das pessoas em geral, sentiram-na?

J. – Acho que não.

R. – Nesta história da corrupção, não. Ao contrário.

J. – Lembro-me de estar em Braga e de as pessoas virem ter comigo e terem dito: “Até que enfim alguém afronta estes tipos”.

R. – Há um terceiro elemento que desvalorizei, e de que não tinha noção: o poder do dinheiro. Ou seja, quando quem está do outro lado tem muito dinheiro para alugar a consciência das pessoas, as pessoas, de facto, vendem a sua consciência.

 

Está a falar de pareceres?

R. – Pareceres, outro tipo de intervenções profissionais – que se explicam porque as pessoas quiseram ganhar aquele dinheiro. Como não me imaginaria a aceitar dinheiro em coisas dessas, fez-me uma enorme confusão que se tenham “vendido”. Ainda por cima, a maior parte destes intervenientes forenses eram pessoas que conhecia.

 

Um parêntesis: o brasileiro Nelson Rodrigues escreveu que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro.

R. – Não conhecia essa frase, mas é mesmo assim.

J. – Foi uma desilusão na justiça... Deixe-me dizer uma coisa. Há um filme, que tu também viste – quem nos mostra esse filme é o [tio] Zé Manel – que se chama 12 Homens em Fúria, passado numa sala de jurados. Foi muito inspirador para o curso que tirei e [para os processos em que] se defende aquilo em que se acredita.

 

O filme (de 1957, dirigido por Sidney Lumet) é uma discussão entre jurados. O personagem interpretado por Henry Fonda começa por discordar e inviabilizar o consenso que era indispensável para se chegar ao veredicto.

J. – Ele tinha dúvidas. E vai perguntar [a cada um dos outros jurados sobre as suas certezas].

R. – E no fim, todos têm dúvidas.

 

Porque é que esse filme foi importante? Trata da dúvida. No Direito procuramos certezas.

J. – O que tirei do filme é que não podemos condenar as pessoas pelas primeiras impressões. Ia-se cometer uma injustiça.

R. – O que é certo nesse filme é a existência da dúvida, o reconhecimento da dúvida. E Não se pode condenar com uma dúvida. Ainda por cima era um caso de pena de morte, naquele tempo, naquele estado, nos EUA.

 

Voltemos à prisão do José. Como é que viveu a circunstância de o seu irmão mais novo estar preso?

R. – Há dois momentos da vida dos meus irmãos que foram extremamente violentos para mim. Este e, uns anos antes...

J. – A peritonite.

R. – A peritonite da minha irmã, que esteve à beira de morrer. Se as coisas têm corrido mal para o meu irmão, para nós era o desabar das nossas vidas. Não só a prisão como a humilhação social.

J. – A minha família foi extraordinária. O nosso avô, o tal homem austero, foi-me lá ver.

R. – E a avó do Porto veio cá ver-te. Mas é um momento em que pensamos que a forma como gostamos que os outros nos vejam pode ser posta em causa. Todos precisamos de reconhecimento. Por mais que as pessoas digam que não lhes interessa a opinião dos outros, a opinião de alguns interessa.

 

Quem eram essas pessoas que não queriam desiludir, importantes nas vossas vidas?

J. – Família. Tive alguns amigos – perdoei-lhes isso – que não ligaram nenhuma. Exactamente porque houve este estigma social. Nem sequer perguntaram porque é que aquilo tinha acontecido, que era o mínimo. Tive amigos que durante anos não me deram cavaco. Foi duro, também.

R. – Disso não sabia.

 

Porque é que nunca falaram disso em família?

J. – Porque é um assunto de que não gosto de falar. Porque eu estive lá preso três meses.

R. – É preciso perceber a família em que é. O que se cultivou sempre foi a verdade, o respeito pelas regras, a sociedade, a boa educação. O meu pai era uma pessoa obsessiva na boa educação. Isto para nós era...

J. – Uma bomba.

 

Falemos do vosso pai, que era engenheiro, numa família de juristas, magistrados, advogados. Parece uma peça fora do baralho. Ainda mais porque a seguir prosseguem a tradição da família.

J. – O meu pai era uma pessoa encantadora.

R. – Era de uma delicadeza...

J. – Diziam que eu era fisicamente parecido com ele.

 

E quanto ao temperamento?

R. – Somos uma mistura dos nossos pais. A minha mãe, a nossa mãe, é uma pessoa com uma grande força moral. Não faz fretes. Tem 80 e tal anos, mas diz-nos o que pensa sem rodeios. Às vezes é até um bocadinho bruta. O meu pai era o contrário disto. Era incapaz de dizer qualquer coisa que magoasse o outro.

 

Umas vezes saem mais ao pai, outras saem mais à mãe?

J. – Nisso somos parecidos. [Concordo] que somos uma mistura dos nossos pais.

R. – Faz-me muita impressão a falta de educação. Mantenho muito vivos os princípios da boa educação do meu pai. Mas acho que tenho, que temos a força da minha mãe, que o meu pai não tinha. Era uma pessoa mais frágil. Talvez por isso é que tenha sido possível que a gente não se tenha apercebido que eles se iam separar.

J. – Nunca demonstrou nada.

R. – Nada, nada, nada. Mas nada. [Quando nos disseram, pensámos:] “Deve ser engano”.

 

O vosso pai já morreu?

J. e R. – Já.

J. – Em 1990

R. – Em 1991, 92. Um cancro no pulmão. Não era engenheiro-engenheiro, era engenheiro técnico. Fazia questão de dizer isso. Tinha feito o curso no instituto industrial. O meu pai... [lapso], o meu avô paterno era magistrado. Os nossos avôs são, os dois, presenças muito fortes. Do lado da minha mãe é o tal militar. Do lado do meu pai era magistrado, e foi director geral dos impostos nos anos 30.

 

Era salazarista?

R. – Não. Curiosamente, a família do meu pai, do Porto, com raízes transmontanas, era republicana. O meu avô é seduzido pela ideia de trabalhar para o bem público. Conta-se na família que Salazar lhe terá dito: “Venha”. O nosso avô faz um grande trabalho como director-geral. Quando fui secretário de Estado [das Finanças, 2000/2001] havia antigos funcionários que se lembravam dele. Acho que o meu pai não gostava de Direito. Se calhar sentia-se sufocado por aquela tradição. Não era um bom aluno. Foi para o instituto um pouco porque tinha de fazer qualquer coisa. [A engenharia] não era uma paixão. As fotografias, as roupas que herdei dele deixam perceber que era um bon vivant

 

Como eram as roupas do seu pai?

R. – Posso mostrar algumas.

J. – Herdei um lenço que era dele. Ainda ando com esse lenço. Um lenço com cornucópias. É muito giro.

R. – Herdei uma colecção de laços.

 

Quando compõe o que parece ser o personagem “senhor antigo”, com o chapéu, o laço, está a aproximar-se do seu pai?

R. – Sim, sim. O meu pai era um dandy. Do que gostava, era de uma certa vida social. Era um fotógrafo excepcional. Era um dançarino.

J. – Um Fred Astaire.

R. – Aliás, era parecido. A certa altura usava o cabelo como o Fred Astaire.

 

O que é que descobriram do vosso pai depois da morte dele olhando para os objectos dele?

J. – O nosso pai era fácil de compreender.

R. – Eu não acho.

J. – Não achas? É a imagem que tenho dele. As fotografias, já as conhecíamos da vida dele. A cigarreira, é a que uso. As angústias, não as conheço.

R. – Acho que devia ser uma pessoa muito angustiada. E escondia isso. Uma coisa a que este [aponta para o irmão] sai: fumava desalmadamente. Acho que o compreendi melhor depois da morte dele. Acho que manteve a relação com a minha mãe, bem ou mal, até ao limite do que pôde. E escondeu sempre tudo. É uma coisa boa na medida em que quis poupar sofrimento. É uma coisa má na medida em que representa alguma falta de coragem. Não sei medir isto. Tu dizes: “O nosso pai era fácil de compreender.” Eu não acho porque não tenho resposta para isto.

 

Como é que lidou com a vossa decisão de ir para Direito? Foram os três filhos a escolher esse caminho.

R. – Com muita satisfação. Era um pai muito babado connosco.

J. – Era, era.

 

Ele esperava que tivessem protagonismo social? Que fossem advogados distintos, políticos?

R. – Acho que sim. Gostava de ver os nossos sucessos. Via-me a mim com uma vida estabilizada. E sempre viu o Zé como um rebelde. Não desgostava disso...   

J. – Não só não desgostava como se identificava.

 

No seu caso, havia a coragem de exprimir uma rebeldia que ele calou durante muito tempo. 

J. – Provavelmente.

R. – O meu pai era extremamente reservado. Não era capaz de manifestações de grande rebeldia. Por isso achava graça à rebeldia do Zé. 

 

O José foi um aluno mediano. Esperava-se menos de si porque os seus resultados escolares ficavam aquém dos do Ricardo?

J. – Não era nada mau aluno! O Ricardo era um aluno excepcional. Não, não era um peso. Era um grande orgulho. Grande admiração. A minha alcunha era o rato sábio. [riso] Era muito activo, rebelde.

R. – Sempre à procura. Que é que ele ia fazer a seguir? Eu era: vou ser advogado, vou ser advogado, vou ser advogado, fui advogado, fui advogado, fui advogado. Ele idealizou várias coisas, vários sonhos. A quantidade de projectos que teve, de empresas que quis formar... Havia um fervilhar, uma irrequietude nele que nunca existiu em mim.

J. – Eu era também o que tinha piada na família. As pessoas achavam-me piada. Já na escola também tinha piada.

 

Era espirituoso, é isso?

J. – Sim. Fazia umas palhaçadas, também.

 

Como é que se fez tão desprendido? Como é que deu o salto da vida burguesa para ser aquele que precisa de pouco para viver, que tira a carta de marinheiro, que decide fazer a pé a costa algarvia, que planta árvores. Aparentemente não tem uma grande angústia com o dia de amanhã nem se preocupa especialmente com a renda da casa. Isto dá o personagem “o último dos românticos”, como o descreveu o seu irmão há uns anos.

J. – Foram as circunstâncias. De facto, não é preciso muito para viver. É evidente que gosto de comer bem, etc.; não posso [comer fora] todos os dias. Até acho que há uma racionalidade nisso.

 

Antes de começarmos a gravar, e a pretexto da crise, disse-me que leva comida de casa para o trabalho.

J. – Eu e milhões de pessoas. Ganho menos, tenho de me desenrascar. Mas acho, de qualquer maneira, que devemos jantar fora uma ou duas vezes por mês, para dar negócio aos restaurantes.

R. – É interessante nele essa capacidade. Todos temos às vezes vontade desse desprendimento. Todas as pessoas têm momentos em que apetece dizer: “Que se lixe”, sem se preocuparem com o padrão burguês em que estão inseridas.

 

Porque é que conseguiu menos dar o salto?

R. – Eu não dei o salto. Uma coisa é não fazer as minhas opções pelo dinheiro. Nunca precisei de fazer. Mas sempre vivi razoavelmente.

 

E percebe que tem de ser advogado do Paulo Penedos, arguido no processo Face Oculta, para poder ser advogado do Carlos Cruz no processo Casa Pia (disse publicamente que não lhe levava nada porque ele não podia pagar)?

R. – Não me referindo aos exemplos, há casos em que não cobro e há casos em que cobro bem. Não sou rico, mas tenho um rendimento que se encaixa seguramente no escalão dos que vão levar a tal sobretaxa...

 

Que chão é que perdia se ficasse sem determinadas coisas?

R. – Acho que só se é verdadeiramente independente se, do ponto de vista económico, não se depende de ninguém. A não ser que consigamos dar o salto e estarmo-nos nas tintas para o mínimo de conforto. Que é o que admiro no Zé. Há uma altura da vida em que é capaz de viver com muito pouco. De andar num carro que tem 40 anos e que está podre.

J. – Tem 17 anos. [riso]

R. – E de não comprar roupa. Eu sou independente e tenho independência económica para o ser. É evidente que há vários graus nesse corte que ele foi capaz de fazer, e que ele beneficia de uma coisa: tem dois irmãos que o protegem.

 

Contou sempre com isso? Soube sempre que se de repente tivesse uma aflição tinha dois irmãos para o ajudar?

J. – Conto sempre com eles, não tenho dúvida nenhuma.

R. – O salto dele é louvável, porque poucos o dão; mas há pessoas que não têm sequer essa rede de apoio. Ele sabe que se ficasse sem nenhum tipo de rendimento que a minha irmã e eu o ajudaríamos. É um conforto. Não retira que ele tenha dado o salto para poder viver com pouco.

 

É notório que admira muito esse lado do seu irmão. Se calhar porque ele foi capaz de fazer uma coisa que você não foi capaz de fazer.

R. – A questão é que não me estou a ver a dar esse salto. A questão nunca se me pôs. Na vida dele há um momento em que tem de fazer essa opção. E dá o salto para o lado bom, não dá o salto para o outro lado.

 

O “outro lado” é o lado compromissório?

R. – Claro. Eu tive uma vida mais organizada, mais estável. Criei compromissos. Tenho várias pessoas que dependem economicamente de mim. Empregados. Não são muitos, mas tenho várias pessoas que trabalham para mim. Fiquei com a nossa casa de família em Trás-os-Montes.

 

Já vamos à Oura. Politicamente, houve um momento em que os vossos caminhos se bifurcaram? O Ricardo pareceu sempre próximo do PS. O José apareceu ligado ao Bloco de Esquerda na candidatura à Câmara de Lisboa. Tiveram discussões, divergências?

R. – Eu estive sempre mais identificado com o PS, o Zé, numa determinada altura da vida, identifica-se mais com o PSD.

 

Que momento foi esse?

J. – É a altura do Sá Carneiro. O fascínio por ele é o fascínio pela social-democracia, inspirada na social-democracia nórdica, do Olof Palme. Sá Carneiro era um homem agradável de se ver, de se ouvir, de...

R. – De se acreditar nele.

 

Acreditou nele, também?

R. – Sempre me considerei socialista. Ainda que tenha um grande respeito pela figura de Sá Carneiro (quando me envolvi no processo de Camarate isso ainda [se intensificou]); mas as minhas fidelidades políticas eram à esquerda.

 

Coincidiu com o Paulo Portas e o António Pires de Lima no colégio São João de Brito?

J. – O Paulo Portas é mais novo. Quem andou no meu ano foi o Miguel [Portas], mas noutra turma. Atenção: eu não fui para o Bloco de Esquerda [BE]. Houve uma interferência directa de três pessoas: o Ricardo, o António Barreto [padrasto da mulher de Ricardo, Sofia Pinto Coelho] e o Gonçalo Ribeiro Telles. Os três disseram: “Tem que ser. Lisboa tem que ter o corredor verde”.

 

Era uma candidatura de um independente com o apoio de um partido. Nunca se viu, ideologicamente, próximo do BE?

J. – Procurei gostar deles. E eles procuraram não gostar de mim.

 

E depois houve um divórcio público.

J. – O programa foi pensado por mim, pelo Gonçalo Ribeiro Telles, com coisas do BE – é certo –, mas a pensar em Lisboa. Lisboa, Lisboa, Lisboa.

R. – O grande equívoco desse casamento é que ele tinha uma preocupação com Lisboa. O Bloco é um partido que tem preocupações que passam para além de Lisboa. Há um determinado momento em que o que é importante é fazer uma ruptura com o PS. Para o Zé e para aqueles que o apoiaram o importante era fazer aproximações com o PS, porque naquela conjuntura era com o PS que se defendia Lisboa. Houve uma des-sintonia resultante de os interesses [que o Zé defendia para Lisboa] não serem compagináveis com os que, à escala nacional, o BE tinha.

 

Quando é que quis ser político?

J. – Acho que só quis ser político quando me convidaram para ser candidato pelo Bloco de Esquerda. Fiquei aflito.

R. – Ele estava convencido de que ia passar o resto da vida a pôr acções populares. Foste um bocado surpreendido com aquele convite.

J. – Fui, fui. O colocar acções populares, para além do poder exercer Direito, era fascinante.

R. – Temos de reconhecer que o Bloco teve um golpe de asa. Acho que o Zé deve ao Bloco que o Bloco tenha olhado para ele.

 

Fala o advogado. O Ricardo está sempre a fazer de advogado do irmão.

J. – O Bloco portou-se mal comigo.

R. – Está bem. Mas inicialmente portou-se bem. Se não te tivessem convidado, não podias ter feito as coisas que fizeste. Sou menos severo com o Bloco do que ele. Talvez porque os confrontos não foram comigo.  

J. – Eu era, e acho que sou, muito bem informado sobre Lisboa e sobre Direito do Ambiente. Estava em muitas lutas em Lisboa com o Ribeiro Telles. Perguntei-lhe a opinião; sabia da divergência política dele com o BE.

R. – É extraordinário ter um candidato, com cartazes do BE, com o António Barreto e o Ribeiro Telles... Não percebo como é que o Bloco não percebeu o caminho que se lhe abria. É de uma tacanhez política que me custa a compreender.

J. – Nessa altura estava com uma grande actividade na advocacia, e com boas vitórias. Ganhei uma acção para não destruírem uma ponte romana para os lados de Ponte de Lima. Estava a desbravar um caminho imenso, porque não era usual em Portugal pôr esse tipo de acções. Não se ganhava dinheiro, mas era um grande estímulo para defender as duas coisas em que ainda hoje acredito: património e ambiente. Almocei com o Ribeiro Telles no antigo Paris (é um restaurante indiano, mas chama-se Paris), e ele disse-me: “Tem que ser!”. Formou-se a associação Lisboa é Gente para essa aventura. O que é certo é que vamos inaugurar o corredor verde de Monsanto no dia 14 de Dezembro. É um sonho antigo. O Gonçalo tem 91 anos e vai ser uma festa. É uma grande coisa, acho eu.

 

O que é que houve nesse processo de vaidade pessoal? Quando começou a aparecer nos jornais, várias pessoas, entre elas João Soares, falavam de sede de protagonismo. O que é que houve em si de deslumbramento com esse actor social em que se transformou?

J. – Consegui defender direitos. É preciso dizer que não estive sozinho em nenhuma destas coisas.

 

Era a face visível.

J.- Está bem. Porque era o advogado, e muitas vezes em acusa própria.

R. – Esses comentários, do João Soares e de outros, são coisas da mais baixa política. É a forma mais rasca de criticar o trabalho dos outros. Se há um tipo que aparece sozinho, é porque é oportunista.

 

Também tem acusações de carência de protagonismo social por causa dos seus processos mediáticos. Como é que lida com isso?

R. – Os processos é que são mediáticos. Sou o advogado dos processos e transporto para mim algum mediatismo que os processos têm. O que é que se pretende? Que não defenda processos mediáticos? É mau defender processos mediáticos? No caso do meu irmão, ele não devia pôr as acções populares? Vivemos num país em que quando alguém aparece um bocadinho mais alto tem que se lhe cortar um bocado das pernas ou a cabeça. É uma sociedade extremamente cinzenta que não tolera que alguém saia do que está estabelecido.

 

É um resquício do salazarismo?

R. – Diria que vem de trás. De uma sociedade clerical, da Inquisição. De uma sociedade pouco livre. Em Portugal quem sai fora do que é canónico ou é oportunista ou é vaidoso ou quer dar nas vistas. Então as coisas não têm de ser avaliadas por elas próprias? O que tem de ser avaliado no trabalho dele é o que ele faz. O que tem de ser avaliado na minha intervenção em processos mediáticos é o que eu faço. Quando isto se inverte, estamos a desvirtuar tudo. E estamos a traduzir esta ideia: o melhor é não fazer ondas.     

 

Vou pegar numa frase que alguém usou a vosso propósito, e que trouxe para aqui: quem é que estes tipos pensam que são? Sentiram isso várias vezes ao longo do vossos percurso?

R. – No caso do BragaParques, senti.

J. – E depois há o caso do túnel [do Marquês]. Eu perco esse caso na comunicação social. Há pessoas que, eu passo na rua, e me rosnam. Mas ganhei-o muito bem no tribunal.

 

Rosnam porque a derrapagem na obra foi de 40%? Além do transtorno.

J. – As pessoas confundem tudo. Não sabem que a acção foi muito bem posta. Foram três juízes que decidiram que a obra tinha que parar. No julgamento percebeu-se que o projecto não tinha pés nem cabeça. Os próprios engenheiros da empresa que estava a construir o túnel disseram ao juiz que o projecto ainda não estava todo feito, que o problema da ventilação tinha de ser estudado, etc. Os juízes não tinham outra maneira senão parar aquilo. Não fui eu que mandei parar o túnel. Eu tinha posto uma acção dois anos antes por causa de um túnel no Terreiro do Paço. Infelizmente não fui a tempo de parar aquela obra, porque aconteceu o que aconteceu no Terreiro do Paço. A água entrou pelo túnel adentro. Aconteceu uma catástrofe que podia ter sido ainda maior. Fui ver o processo do túnel [do Marquês] por descargo de consciência. Quando percebi que o processo era incompleto, que não tinha havido os estudos suficientes, disse: “Isto não pode ser assim. Não vai acontecer a mesma coisa que aconteceu no Terreiro do Paço”. Durante o ano em que a obra esteve parada os estudos foram feitos. Estamos a falar de estudos de estruturas, ventilação, do problema do metro. Ainda bem que a obra esteve parada. Fizeram-se os estudos e completou-me a obra em segurança. Mas puseram-se outdoors contra mim. Foi uma avalanche de informação a dizer que eu tinha sido um malandro e que a obra custava muito mais caro por minha causa.

 

Bastava andar de táxi nessa altura para ouvir isso.

J. – Exactamente.

R. – Isto é próprio de uma sociedade que nunca estuda. Um dos grandes problemas em Portugal é que tudo é superficial. São bocas. Somos um país de bocas. Ninguém estuda, e tudo emite opinião com base nas bocas. Às vezes com consequências terríveis. O processo Casa Pia é um desses. As pessoas recusam-se a olhar para as coisas. Se olharem, percebem que não é assim.

 

Sentem que são odiados por causa de determinados processos, determinadas acções?

J. – Sinto que há pessoas que não me suportam e que isso tem muito a ver com o túnel. Há pessoas que ainda me dizem que, por minha causa, Lisboa perdeu 20 milhões de euros. Inacreditável. Não vale a pena. Vale!, vale a pena. Quando explico às pessoas, acho que percebem.

R. – Não há nada mais difícil de combater do que uma ideia feita.

 

Sente isso sobretudo em relação ao processo Casa Pia? A sua imagem enquanto advogado foi beliscada por ter defendido Carlos Cruz, nomeadamente, e ter vindo a público dizer que punha as suas mãos no fogo por ele?

R. – Há um pouco de tudo. Há pessoas que passaram a não gostar de mim por causa disso, e outras que passaram a gostar por causa disso. Sinto que apesar de tudo, maioritariamente, as pessoas respeitam a minha posição. Nunca fui insultado na rua. [Fui] uma vez, num táxi, tenho impressão... Também há pessoas que me dizem que acreditam na inocência do Carlos Cruz porque me vêem na intervenção do processo. Já falámos de reconhecimento; para mim também é importante o reconhecimento. Mas quando estou muito seguro do que faço – e o Casa Pia é um caso desses – as minhas opções não vacilam perante a opinião dos outros. Prefiro que me reconheçam do que não gostem de mim.

J. – [Comigo] é a mesma coisa.

R. – Se vir que determinada intervenção minha tem reconhecimento, fico satisfeito. Se vir que não tenho, fico incomodado e triste. Não vamos ser hipócritas... Agora, se eu acho que “este” é o caminho, travo-o até ao fim, não mudo em função de ter ou não ter reconhecimento. Como sou um optimista, acho que no fim terei esse reconhecimento. [riso]

 

Tem um vinho chamado Vicência? O nome de uma avó?

R. – É o nome da nossa tetra-avó.

 

A ligação à Oura, em Trás-os-Montes, é uma memória fictícia. Não foi a casa da vossa infância. 

J. – É fictícia. Mas sente-se lá qualquer coisa. Gosto imenso de ir a Trás-os-Montes. Tive um sonho..., tínhamos outra propriedade em Sabrosa. Mas tinha de me sair a lotaria! [riso] Até esses sonhos, já os tirei da cabeça.

R. – Temos uma relação com Trás-os-Montes que é adquirida. Os nossos avós e bisavós eram dali, mas nós não somos uns rapazes que vieram de Trás-os-Montes para Lisboa. É o percurso inverso. Crescemos em Lisboa, fomos à procura das nossas raízes, elas estavam lá. Fomos seduzidos e envolvidos naquilo. Eu mais do que ele.

 

Porque tinha mais dinheiro para recuperar a casa.

R. – Porque tinha capacidade económica para o fazer. Acabei por ficar com a casa, onde ele e a minha irmã vão muitas vezes. Onde vai, aliás, toda a família, muitas vezes. Estamos a fazer uma experiência com um vinho. Um dos nomes com que sonhei foi o da nossa tetra-avó. Foi a última morgada, era uma figura camiliana, que atravessa quase todo o século XIX, e que marca a família.

 

O Ricardo fala muito mais. Sempre foi assim? Fala para o defender, porque ocupa o espaço, porque é o mais velho?

J. – Acho que é isso tudo. [riso]

 

Admira-o mais ele do que ele a si?

J. – Eu acho que o admiro mais. E acho que o Ricardo tem mais coisas para admirar do que eu.

R. – Não sei se tenho mais. Mas acho que ele tem mais importantes. O tal desprendimento. O trabalho por Lisboa, e não só, as acções populares que fez por todo o país, são uma coisa mais perene, mais importante do que aquilo que eu faço.  

 

 

Publicado originalmente no Público 2011