A Flor Amarela (p/ Mª João Mayer Branco)
O livro A flor amarela teve uma primeira vida com a forma de tese de mestrado sobre as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. É um texto particular, que a autora designa como uma “estrutura movediça”, e no qual a própria escrita se torna assunto de reflexão.
Nesta segunda vida, o texto conhece dois acrescentos — o prefácio de Abel Barros Baptista e os Agradecimentos nas páginas finais do volume —, que sugerem novas pistas de compreensão acerca do que ali se trata. O prefácio identifica as perguntas que vão sendo enunciadas ao longo deste ensaio (e.g., “O que é que está em causa no fim da vida?”, ou “Esta é uma vida que merece ser contada?”) e destaca, entre todas, a pergunta porventura mais decisiva: “Quando é que Brás Cubas começou a morrer?” Como nota o prefaciador, esta pergunta, formulada por Anabela Mota Ribeiro, é precisamente aquela a que o livro de Machado de Assis procura responder, assinalando “o paradoxo fascinante da autobiografia, afinal narrando a vida com o propósito sublime de delimitar o começo da morte.” E Abel Barros Baptista conclui sugerindo que “A flor amarela pode muito bem ser a figura decisiva desse paradoxo.” (p. 11)
Quando é que começamos a morrer?
É certamente verdade que começamos a morrer quando nascemos, que o nascimento é o princípio do fim, que, para o dizer com as palavras do poeta, in my beginning is my end. E no entanto, como o mesmo poeta indica no mesmo famoso poema, não é menos verdade que in my end is my beginning. E esta versão das coisas parece oferecer outro ângulo para a leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas e do paradoxo acima assinalado. Ela oferece, nomeadamente, a perspectiva segundo a qual qualquer autobiografia narra igualmente a morte, delimitando o ponto onde uma vida começa. A vida é, neste caso, uma vida “póstuma”, ou a vida daqueles que, segundo Nietzsche (autor também convocado por Anabela Mota Ribeiro), “nascem póstumos”. Acontece precisamente que, escrevendo as suas memórias póstumas, Brás Cubas dá vida a si mesmo fazendo viver um morto, o qual, por sua vez, anima a escrita agora publicada em livro.
Escrever é, provável e desejavelmente, dar uma vida ao que vai morrer e calar, e dar uma vida ao que ainda não nasceu. Talvez não haja escrita que não seja, num sentido rigorosamente impessoal, autobiográfica. Brás Cubas escreve uma “obra de defunto” (cf. Prólogo ao leitor), hesitando sobre se deve começar as suas memórias pelo seu nascimento ou pela sua morte, e decidindo-se pela narração da hora da sua morte. É nesse momento que ele começa, propriamente, a ser, ou seja, essa é a hora do nascimento deste autor, que se torna a sua própria personagem, “a sombra de uma sombra”, para lembrar a expressão inspirada em Sófocles que, num outro memorial, Machado de Assis invoca através da pena do diarista Conselheiro Aires.
Porque é que se escreve? Porque é que se escreve se a vida acaba, se vamos morrer e o sentido de viver nos é tão opaco? Este ensaio procura dar voz a esta pergunta. Pois ele consiste num exercício de auto-interrogação, quer dizer, menos numa explicação, do que numa pergunta, a “pergunta pela memória que legamos”, como é dito na Nota final (p. 156). E esta pergunta conduz-nos à segunda passagem inicialmente mencionada, constante nos Agradecimentos, onde Anabela Mota Ribeiro indica que na origem da sua “inclinação para os temas deste romance” esteve a morte da avó materna (p. 160). As suas palavras sugerem que, também para a autora deste ensaio, a morte foi um princípio. A morte de uma avó (de uma mulher, de uma mulher que foi mãe, e que foi a mãe da sua mãe), e a morte “da pessoa amada”, cujo nome próprio, Aurora, é a imagem mais exacta da ideia de começo.
Como o ensaio esclarece, na esteira de Freud (e para retomar o termo de Sófocles), a morte da pessoa amada lança uma sombra. E não é senão à sombra dessa morte (ou, muito simplesmente, da morte) que se escreve. Mas o pessimismo desta afirmação deve ser devidamente entendido, e é disso que este livro se encarrega, defendendo que se é certo que não podemos vencer a morte, não é menos certo que podemos viver o luto celebrando a vida.
A escrita é sempre uma convocação da vida, mesmo quando resulta do encontro com a morte. E talvez também por isso toda a escrita seja sempre já uma escrita póstuma, ou a escrita de um póstumo. A flor amarela pode ser um nome para o enigma desta convocação, que nos obriga a pensar na possibilidade de um impossível, como faz Brás Cubas. Por exemplo, logo no primeiro capítulo, quando se transforma numa testemunha do seu próprio funeral. Trata-se de uma coisa impossível, algo cómica (e, portanto, sublime, para voltar aos termos de Abel Barros Baptista), eventualmente só comparável ao caso análogo, narrado por Mark Twain no seu Tom Sawyer, em que as crianças fingem morrer e acabam — assombradas — a assistir, também elas, ao seu próprio funeral.
Parece-me óbvio que esta possibilidade literária não tem nada de fúnebre. Pelo contrário, ela atesta aquilo a que Anabela Mota Ribeiro chama “o resvalamento da situação de enlutado para a de melancólico” (p. 33), e justifica a refutação que faz das interpretações estritamente schopenhauerianas de Machado de Assis que lhe atribuem um irredutível “ódio à vida”. Pois, para quem escreve, a vida não é odiosa, mas digna de ser dita e digna de ser lembrada. E só a compreensão disto mesmo permite enquadrar a melancolia de Brás Cubas numa improvável genealogia de origem dinamarquesa, fundada pelo mais famoso dos melancólicos, igualmente paralisado e igualmente enlutado, que antes de morrer impede Horácio de o acompanhar para que conte a sua história.
Não é claro se podemos considerar que Brás Cubas corresponde a um Hamlet carioca (o que quer que tal queira dizer). Mas deste ensaio resulta evidente que em Machado de Assis há vida para além de Schopenhauer. Vida, no mesmíssimo sentido em que ela aparece na frase desse extraordinário capítulo VII das Memórias, “O delírio”, onde o protagonista se descobre afirmando: “Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espectáculo.”
Maria João Mayer Branco
Publicado originalmente no Jornal de Letras, no Verão de 2017; o texto é uma adaptação de uma intervenção feita pela prof. de Filosofia na Embaixada do Brasil em Portugal, em Maio.