A minha mãe infatigável (que nunca conheceu Maria Lamas)
Não guardo nem tenho vestígio da primeira palavra que disse. Por estranho que pareça, nunca me lembrei de o perguntar à minha mãe. No instante em que escrevo, surge-me a palavra “choro”. Mas claro que uma criança não começa por dizer choro. Uma criança chora. Eu chorava, e não sei por que chorava. A razão que encontro para não ter perguntado à minha mãe é prosaica: a minha mãe tinha mais que fazer que anotar num caderno ou álbum as palavras e as conquistas da sua segunda filha. A minha mãe trabalhava.
À minha mãe aplicava-se a palavra que Maria Lamas repete sobre as mulheres do seu país: fatigante. Embora ela não usasse palavras caras como fatigante. Trabalhava infatigavelmente, falava com orgulho do tanto que suportava, de uma força que me habituei a imaginar inesgotável, do cântaro empinado na cabeça, na areia tirada do rio. Também não usava palavras como “têmpera” ou “indomável”. As palavras que a minha mãe usava eram muito concretas. Para mim (como antes, a sua mãe para ela), empregava a palavra “génio”. Ter génio era ter uma índole arisca, acesa, férrea.
Antes da Revolução, a que devo uma vida nova, e, por isso, um léxico novo, as palavras que ouvia em casa, e que agora reencontro no texto e nas andanças de Lamas, revelam uma origem rural. Por exemplo, eira ou corte. Eu mesma, criança pequena, brincava no emparedado das eiras, onde às vezes se dançava, desfolhava e se dizia com uma alegria de ganhar a lotaria: “milho rei”! E sabia que debaixo da casa ficava a “loja” ou “corte”, onde dormiam e comiam os animais. Deparar-me com a palavra, sinalizada com aspas, como se se tratasse de um regionalismo, foi útil porque me sintonizou, de novo, com um substrato muito antigo: a minha primeira infância.
Só nos anos mais recentes me abeiro e deslizo para estes alçapões e encontro um estranho e evidente nexo causal entre os meus caminhos subterrâneos. Comecei a organizar a minha biografia e tempo histórico como algo que se insere e é sintomático de um movimento avassalador (e que agora celebramos), o do país da democracia. Espanta que uma pessoa instruída, citadina e privilegiada precise de tantos anos para se afastar um metro da fotografia e ver com nitidez aquilo que antes era apenas assim. Assim: repetido, não tematizado, herdado, contrariado. Apenas assim. Dantes era assim.
Que dizer? A Revolução propicia tudo, mas não anula o passado.
Dantes, duas, três gerações atrás, estávamos no campo, na pobreza, no analfabetismo. Estávamos nas camponesas de avental e lenço. Nunca vi a minha avó materna, a avó da aldeia, sem avental e lenço. Sabia que trabalhava no que aparecia, mas não tenho memória de, em relação a ela, se usar o termo camponesa. A minha avó da cidade não vestia avental nem lenço, usava o cabelo curto em vez do apanhado e preso com uma travessa da avó da aldeia. Tinha a prerrogativa de mandar trabalhar, em vez de trabalhar. Neste ponto, assemelha-se mais à Maria Lamas que vejo na pintura de Júlio Pomar: sofisticada, vestindo cores sóbrias, um lenço de seda rente ao pescoço. Ou à Maria Lamas que viaja até ao Japão em 1957. Em bom rigor, a minha avó da cidade não era cosmopolita nem politizada. Porém, nesse mesmo ano em que a jornalista portuguesa discursa em Tóquio, a minha mãe, filha da avó da aldeia, era nascida e já trabalhava — um destino comum a muitas mulheres pobres nascidas em Portugal nos anos 40 e 50: começar a trabalhar criança.
Olho as duas (a minha mãe e a autora de Mulheres do meu País) ainda incrédula. Maria Lamas nasceu em 1893. A minha avó materna em 1922. A minha mãe em 1949. Eu nasci em 1971. Quase cem anos que parecem uns meses, porque tudo foi ontem e há uma eternidade.
Vou ao Google ver quantos quilómetros havia entre a minha aldeia e a cidade de província para onde me mudei com seis anos. Cerca de 60 km. Uma distância estratosférica naquele meu tempo. Um tempo que me constitui e ocupa os meus dias, volvidos 50 anos.
Embora não tenha nunca trabalhado como camponesa, sinto culpa se não trabalho infatigavelmente, ou se o corpo me mostra os seus limites. Dá-me inclusive para teimar... quem pode mais, o génio ou o músculo? Sou ou não sou filha da minha mãe, neta da minha avó, que faziam um trabalho não raro desvalorizado, mal pago, invisível. Que uma mulher tenha olhado para estas mulheres com carinho e admiração, deixa-me em dívida e perplexa. Como é que ela olhou e todos nós demorámos tanto tempo a olhar?
Tinha pensando iniciar este texto operando uma mudança radical, transferindo o eu que é narrado para o lugar (e o protagonismo, e a possibilidade de escolher e elidir) daquele que narra. Isto é, folheando estes fascículos já não sou a criança ao colo de uma mulher cuja beleza começa a murchar aos 23 anos. Eu sou aquela que observa e identifica, que escreve e fotografa, que questiona e enquadra. Eu sou aquela que pôde ir à escola, que já leu a Condessa de Ségur (que Lamas traduziu), que teve um passaporte sem precisar de um marido. Que, mercê da democracia, teve a possibilidade de olhar à sua volta e reparar melhor nas outras mulheres. E em si mesma.
A luta é ancestral, de há instantes, não cessa. A jorna promete ser fatigante.
Texto originalmente publicado no Público, acompanhando a edição em fascículos d' As Mulheres do meu País.
Obrigada a João Pinto de Sousa, editor da colecção, pelo convite.