A Vidadupla de Sérgio Godinho
Girar: andar à roda ou em giro. Andar sem rumo certo. Fazer circular.
Estas são algumas das acepções de um dos verbos mais usados por Sérgio Godinho em Vidadupla.
Podia recorrer a uma definição do autor, não usada para Girar, mas certeira: “A vida é viver a vida neste círculo”.
Estão prontos? Dou uma primeira volta na girândola, sem fogo se artifício, sem disparos. Sem anunciar propriamente o começo, o primeiro estalido, porque ele já foi, já teve um lugar e um acontecido, quando chamo a atenção para esse momento inaugural. Quer dizer, já estamos sentados no carrossel quando damos pelo carrossel e pela viagem, mais ou menos atónitos pelas luzes que nos acordam e nos dizem que estamos ali, desprevenidos ou seguros, com medo ou com vontade.
O movimento será circular. Avançaremos num passo errático, parecendo que vamos rumo ao futuro, como não pode deixar de ser, e sempre alimentados das esperanças do passado, como não pode deixar de ser.
Avançamos em direcção ao mais íntimos de nós mesmos, apontando para o coração da vida, e sempre falando da morte.
Reparem que não há um espaço, um abismo entre Vida e Dupla. A palavra é inteira. Como não pode deixar de ser. Querendo com isso dizer que contempla o que está para lá dela, nomeadamente os enredos que inventamos para nós mesmos, os começos de vida, as aproximações à morte, as perdas e as ilusões, o que nos faz parar e o que nos dá o ímpeto de avançar. Neste Vidadupla, escrito num movimento contínuo, circular, está a morte, a de letra grande, que é aquela em que podemos pensar por estarmos do lado da vida. Ou seja, não existe morte do lado da morte, simplesmente porque nesse outro lado não existe nada. Pelo menos, não temos notícia de nada.
Desde que li pela primeira vez estes contos – contos ou micro-narrativas ou divagações poéticas ou dissertações filosóficas –, encontro neles a Alice de Lewis Carrol a experimentar uma sensação de estranheza em relação à vida que vê. “Que é isto?”, pergunta ela. Em que lugar estamos? Também penso naquela personagem do filme Rosa Púrpura do Cairo de Woody Allen, que vai para o cinema para afogar a tristeza de uma vida pobre. Essa mulher, que é batida pelo marido e maltratada pelo chefe, alimenta-se de sonhos, e recebe, com naturalidade, uma intromissão da fantasia na sua vida concreta, o galã pelo qual suspira que sai da tela e a leva a jantar. A pergunta que sempre me faço quando vejo o filme e penso nele é: de que lado do ecrã é que estamos? E de que lado queremos estar. Não se trata de tola credulidade, de um romantismo bacoco. Trata-se de uma interrogação muito firme. De que lado da vida é que estamos? E o que é que acontece em nós quando conseguimos uma distância, uma distância que nos permite interrogar as coisas na sua essência, que nos permite perguntar pelo sentido?
Essa dobra, esse lugar que ocupamos ao fazer a pergunta, esse estar fora de órbita que possibilita ver a Terra como um planeta inteiro, é uma sensação rara e preciosa. Tive essa impressão em diferentes momentos deste livro. A de estar “no mapa do mundo”, “procurando o centro do mundo”, entre a “origem” e o “fim”, numa “terra do sempre”, em “rotação”. E, o que é mais espantoso, tive uma sensação de ubiquidade, de estar aí – na interrogação – e de estar naquilo que é interrogado. Numa linha, estive o tempo todo na vida e morte.
E estive com uma pessoa que não quer morrer, e que, por vezes, pareceu-me, diz com ferocidade que não quer morrer. Que quer continuar o movimento. Que quer estar disponível para o milagre do que vem do ecrã e se intromete no concreto das nossas vidas.
Portanto este é um livro em que a morte está por todo o lado. E estranhamente luminoso, mais do que a frase anterior faz supor. Talvez por isso a sua atitude nunca é de derrota ou desistência. Tem mais um tom: ainda não é desta que me apanhas, dirigido à tal senhora que anda com uma gadanha.
Portanto este é um livro de uma vida que contempla sempre o seu fim, a sua face dupla, mas que tem, além disso, os seus fins e os seus começos, as muitas vidas que cabem numa vida. E, em última instância, tem o relato de uma vida, gesto que a absolve, mais não seja, pelo facto de ser narrada. Uma palavra, uma narrativa, uma memória ficam, não passam, deixam uma cicatriz.
Outra imagem poderosa para Vidadupla é a de um espelho. O que é reflectido quando nos olhamos? E se for a vida, aquilo que mostramos, o que é que aparece exactamente? Vida vida. Vidadupla. Vida ao quadrado. Novamente a ubiquidade: o que é mostrado ao espelho, o que está reflectido nele. E depois, como se diz em “Osmose”, “Um espelho é reflectir e depois reflectir sobre isso”. Há ainda a reflexão sobre o que aparece reflectido. São movimentos diversos, dobras sucessivas.
E novamente estamos nós nos dois lugares disponíveis: o da plateia e o da arena. Estamos no centro da acção, executores desse movimento circular, e estamos a assistir a quem vamos sendo, espectadores contentes e descontentes, mais ou menos comprometidos. Dominamos a acção, somos levados na enxurrada. Desdobramo-nos em papéis, em vidas e sobrevidas. Enquanto isso, a vida roda e o tempo muda de lugar. “O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”, como escreve Chico em Roda Viva.
Há um momento no livro em que uma personagem diz entre parêntesis: “Queria falar da minha história de amor, mas está difícil”. Não sei se alguns dos que nos ouvem pensam: queria ouvir falar deste livro mas está difícil. Lamento o desapontamento, mas o que sublinho nele, antes de ir aos enredos, às histórias de amor, às pessoas como nós, é o movimento, o impulso em que a vida é vida. Porque isso nos faz – me faz – viver. O pendor filosófico de Vidadupla, que é tão forte quanto o poético, é um dos seus triunfos. É o pensamento a acontecer, a dúvida, o júbilo, o espanto.
Podia repetir estas palavras – dúvida júbilo espanto – sem vírgulas, sem pausas, num movimento osmótico. É verdade que não estão ligadas por um hífen, e existe um espaço entre elas, onde as escrevo. Mas estão ligadas sabe-se lá por que sortilégio. É um recurso usado por Sérgio Godinho em algumas das ficções deste livro. Por exemplo: soprando gritando estourando.
É um ritmo sincopado, suspirado, ligado entre si, ora acelerado ora lento. É uma coisa que vem da música, uma forma de refrão que atribuímos a um autor, a uma identidade, um modo de fazer que é próprio. Mas esta música é do ficcionista, é menos do escritor de canções. Está aqui.
Quem são estas pessoas em quem Sérgio Godinho se desdobra e nos implica? Eu diria que são pessoas à procura do seu equilíbrio, muitas vezes desfasadas do tempo e de si próprias. O caso mais eloquente é o de um homem falso culpado que tem um álibi de que não precisa e do qual fica refém. Um homem que tropeça nos ardis no dia, e é acusado de atropelar um rapaz. Um homem que tem um jovem amor que “desafinava a chorar”. Impressionou-me muito esta imagem de uma pessoa que desafina a chorar, que parece fora de tom, des-sintonizada da outra pessoa e da música do mundo e cujo lamento não tem lugar ali. Estão a ver? É uma sucessão de equívocos. Porque não se diz que ele não tem razão para chorar; o que se diz é que o choro não é dali ao dizer que chora e desafina ao mesmo tempo.
Esse homem que atropela, ou que pensa que atropela, pergunta-se quem estaria, simbolicamente, no lugar daquele que é atropelado. O que é que morria ali. O conto leva-nos a equacionar o que é a verdade e a mentira, onde começa a culpa, onde acaba a inocência. Mostra, sobretudo, que é muito fina a passagem de um lado a outro lado do biombo. Quase sempre é assim na nossa vida, por mais que julguemos espessas as paredes.
Outro personagem: o carrasco. É nessa ficção que se pode ler: “E por vezes, preparar-me para ouvir o som da alma”. Não quero dizer mais nada sobre este conto, fico-me pelo que o Sérgio faz nestas páginas: ouvir o som da alma. Uma hipótese para este movimento: deitar o ouvido, com cuidado, e procurar o silêncio. Começar por ouvir ruído, ruído, e depois ficar atento, concentrar, focar, para saber o que nesse ruído é essencial, nuclear, o mais íntimo do ser. Essa é a voz que o Sérgio procurou e seguiu.
Há nesta galeria um pré-catastrofista, que prevê a morte de um amigo, submerso no fundo das águas. Há duas operárias que giram as suas vidas, giram as rodas das suas bicicletas, giram o “antes” e o “depois”, o “prólogo” e o “epílogo”; uma delas escreve, contos; e o conto que escreve sobre a outra começa assim: “A injustiça, o tempo cortado, a bicicleta a apanhar ferrugem”. Acho particularmente feliz a associação da ideia de tempo interrompido com a ideia de ferrugem. Sabe-me a vida por viver, a roda que não roda e por isso não é viva.
No último conto há um homem que perde as coordenadas e vai dormir perto da mulher que morreu, que leva uma vida dupla na acepção mais comum da expressão. Tem uma casa e escolhe por casa um lugar inóspito, desabrigado do conforto e que assim dá abrigo ao seu afecto. Uma gare de comboios, lugar de partidas e chegadas. Fica ali encravado, sem conseguir encontrar um trilho, de novo, fica ali até encontrar, de novo, um trilho.
No primeiro, há uma actriz e um lençol puído. Querem ouvir um verso poético? “... sempre na esperança de sentir no meu amor rugoso a pele lisa dos inícios.” O livro está todo aqui: no rugoso e no liso, na turbulência do amor e na planura pós-cataclísmica que permite recomeçar. E recomeçar com esperança. Como disse, este é um livro com a morte a rondar, a rondar, mas de tonalidade mais luminosa que sombria. Há nele uma vontade de viver expressa de diferentes modos.
Deve ser por isso que, com grande liberdade interpretativa, leio no lençol deste primeiro conto uma membrana uterina. É certo que o lençol pode funcionar também como uma mortalha. Mas para mim, esta membrana já puída, que urge rasgar, é aquela que nos separa da vida que há para viver.
Aqui fica o meu primeiro gesto, o rasgo. Agora passo o manípulo da girândola ao autor.
Texto lido na apresentação do livro Vidadupla, na livraria Ler Devagar, a 16 de Outubro de 2014.