Albano Silva Pereira
Albano, o excêntrico, é o coração dos Encontros de Fotografia de Coimbra. É o director do CAV, Centro de Artes Visuais, instalado no renovado Pátio da Inquisição em Coimbra. É fotógrafo e viajante apaixonado. Planta orquídeas, conhece todos os bons vinhos, fascina-se com o vagar da existência Dogon (uma tribo do Mali que visita amiúde). Vive numa casa onde se chega por caminhos de cabras em Vale de Colmeias. A casa respira entre obras de arte africanas, cadeiras de Charles Eames, fotografias dos maiores vultos da cena mundial. Guia com perícia extrema entre Lisboa e Coimbra.
A sua proveniência é o cinema, onde foi assistente de Manoel de Oliveira. António Pedro Vasconcelos apresentou-lhe, entre outras coisas, o Gambrinus, onde é tratado como uma pessoa da casa. É razoavelmente louco e tem um tom desconcertante. É um agente cultural como poucos num país pouco dado ao fazer. A entrevista que se segue conta algumas das suas histórias e aposta numa decifração do universo da arte contemporânea. É pai do Sebastião.
Tem ali ao canto uma fotografia que o Robert Frank lhe dedicou na qual aparece o Jack Kerouac enroscado num cobertor, a dormir. Como é que conheceu o Robert Frank?
Se há um mito na fotografia contemporânea, esse mito chama-se Robert Frank. Não só pela grande importância que tem na história moderna da fotografia – é um homem de ruptura, de coragem, com um olhar tremendo –, mas sobretudo pelo seu desaparecimento. É muito reservado, avesso à ribalta, relativamente ácido, mas terno e generoso. Robert Frank teve uma ligação fortíssima ao vídeo e ao cinema. Há uma fase, no fim dos anos 70/80 de alguma distância e ruptura com a fotografia. Ele dizia-me, (venho a conhecê-lo em 86), que a fotografia era o passado. Retomou a colagem, com os fotogramas do vídeo, construindo outros objectos que não a fotografia avulsa.
O que é que o fez afastar-se das multidões e tornar-se um eremita? Quando o vejo na série «Waiting for mushroom», aparece num casebre...
Um eremita, ele não é. De há vinte anos para cá surgiram tragédias na vida do Frank. A morte dos filhos... A fotografia de que me fala é da série «On the road», quando atravessa a América com o Jack [Kerouac] a dormir atrás, e um conjunto de amigos ligados às artes e à escrita. É uma geração pioneira, beat. Embora não tão envolvido com as drogas e com o álcool, como o Jack, passou por lá... Conheço-o quando assumi a direcção dos Encontros [de Fotografia de Coimbra].
Mas como é que chega ao Frank?
Não é fácil encontrá-lo. Ele vive isolado entre Bleecker Street (Nova Iorque) e Mabou, uma enseada de pescadores numa ilha da Nova Escócia onde neva sete meses por ano. Mesmo as pessoas do meio, em Paris, Nova Iorque ou Roma, não têm acesso ao Frank. Uma história engraçadíssima: contou-me o Julião Sarmento que na inauguração da sua exposição em Nova Iorque, onde estava a Cindy Sherman, entrou o Frank, que conheceu o Julião através de mim. Imagine uma galeria da moda, o mundo da arte contemporânea, a ver entrar esta figura simplória... A Cindy Sherman ficou maravilhada, queria conhecê-lo. E todos pensavam que ele já tinha morrido. Realmente não está interessado em publicidade, não está interessado em dinheiro.
O que é que pensa que o faz correr?
É a sua própria natureza, a sua relação com a morte. O prazer do criador é fazer coisas. Ele trabalha muito pouco. Mas aquilo que faz tem uma uma força tremenda. É um indivíduo que mastiga, sofre, e depois, com uma atitude de grande esforço e coragem, consegue.
Nas fotografias de Robert Frank há uma quietude, uma depuração que fazem que as coisas pareçam absolutas. Ele nunca é aproximativo, é final. É nisto que podemos reconhecê-lo como um artista excepcional?
Ele tem um olhar sobre a vida depurado, com uma densidade tremenda. As fotografias dele não são nem bonitas, nem feias. São autênticas. Não é a autenticidade da reprodução da realidade; é a construção de uma outra realidade, a partir da sua própria vida. Todo o trabalho dele tem uma forte componente de identidade, de relação com o mundo e com as coisas.
Tem incontáveis cartas do Frank, coisas que lhe são dedicadas. Como é que se conquista a atenção e a estima de um artista como o Robert Frank?
Com muito sossego, calma, e sobretudo não falseando a realidade. O Frank gosta de pessoas simples que tenham cuidado com ele, que gostem dele. A relação comigo e com o Vicente [Todolí] – conheceram-se em 83 – é semelhante. Independentemente da relação estética, há uma nova família que ele cria, depois da morte dos filhos. As cartas, as pequeninas peças únicas do tamanho de cartas que nos envia, a mim e ao Vicente, são de uma extrema generosidade.
Ora os artistas têm fama justamente de não ser muito generosos...
Os Encontros de Fotografia fizeram grande parte da sua produção devido à generosidade dos fotógrafos e artistas. Não tenho nada de que me queixar, pelo contrário. Mas queria dizer o seguinte: um homem com a carreira do Vicente Todolí (que criou a dimensão internacional desse grande projecto que é a Fundação de Serralves, director da Tate Modern, que é uma “multinacional da arte contemporânea” em Londres), é significativo que a primeira exposição do programa como director da Tate seja exactamente do Robert Frank. A componente afectiva no mundo do Robert Frank, como no de outros artistas, é imprescindível e inseparável da estética.
São afinidades electivas.
Eu não sou amigo de um conjunto de personagens, seja o Rui Chafes, seja o Vicente Todolí, seja o Pedro Cabrita Reis só por questões estéticas. São questões éticas, antes de tudo, de simpatia, de sensibilidade, de cortesia, de cuidado.
Há 20 anos, Portugal tinha uma democracia em consolidação, resquícios de um período em que fora «orgulhosamente só», e não constava do mapa da arte contemporânea. Quando então assume a direcção dos Encontros, percebeu que o festival não podia estar desinserido da cena internacional. O seu propósito assentava em dois vectores: divulgação e internacionalização.
Era importante fazer a divulgação da fotografia portuguesa. Peguei na obra nuclear do Manuel Alvarez Bravo, romântica, poética. E na modernidade, transgressão e interdisciplinariedade (com o vídeo) do Frankie. Em arte, em particular na arte contemporânea, o elemento essencial para a afirmação de uma identidade (é isso que fabricam as instituições: o seu património e a sua identidade), é a comunicação internacional. Tem que se ser muito criterioso nos passos que se dão. Não se pode falhar, senão entra-se pela porta grande e sai-se pela pequenina no dia a seguir. A rede, a teia de cumplicidades, é fabricada primeiro pela ética, pelo profissionalismo, depois pela estética. Temos que saber o que é que nos identifica e o que é que temos a ver uns com os outros.
Temos sobre a mesa álbuns de Araki, Gabriel Orozco, Robert Frank, vi em sua casa uma imagem da Diane Arbus. São diferentes universos; mas, apesar da sua heterogeneidade, confluem numa identidade comum? Como é que se relacionam estes autores? O que é o que o faz olhar e perceber «este sim, este sim, este sim, este não, este não, este não»?
É um sistema, vivemos de sistemas integrados. Sabe onde é que descobri o Nobuyoshi Araki? Se olhar para a obra do Robert Frank e para a obra do Araki, não há nada em comum. No entanto, o primeiro livro que vi do Araki, no princípio dos anos 90, foi em casa do Robert Frank. Na desarrumação imensa que é a casa do Robert, latas de cinema no chão..., de repente vejo um livro carmesim, luxuriante, erótico, peça única. «O que é isto, Robert?» E ele disse-me logo: «Acho que deves mostrar o Araki».
E o Gabriel Orozco, que expôs recentemente?
Se tenho a pretensão de tornar esta instituição [CAV, Centro de Artes Visuais] internacional não poderia deixar de, devido à minha relação com a Chantal Crousel, uma das galeristas incontornáveis em França, que trabalha com o Gabriel Orozco...
Toda a cena se desenrola entre x galerias, x museus, x curators e respectivos artistas? Pode fazer uma descrição simples do funcionamento do meio da arte contemporânea?
Obviamente há um sistema. Um sistema de sensibilidades diferentes, assente no rigor e na coerência. A estratégia de uma instituição faz que ela aposte numa linha de projectos. Temos uma exposição neste momento, «Em Jogo»; eu sabia que havia quatro ou cinco artistas a quem tinha de fazer encomendas.
Sabia como?
É esse o nosso trabalho: a observação e a reflexão acerca do trabalho dos artistas que aparecem todos os dias. Depois há uma gestão do objecto que se vai trabalhar entre o comissário e o artista. Lá em baixo, [na exposição] há um cruzamento de obras de grandes artistas internacionais: o Orozco, o Andreas Gursky, o Jeff Koons, o Vik Muniz, e há um conjunto de encomendas, à Adriana Molder, ao Paulo Catrica, ao João Pedro Vale... A construção da exposição faz-se em função do orçamento, do espaço e do trabalho dos artistas. São olhares diferentes, são objectos diferentes, pode gostar-se ou não, compreender-se ou não, mas há uma coerência e trabalho de qualidade.
Insisto na decifração do sistema. Como é que se pode situar a importância de um Gabriel Orozco? Dizendo que tem neste momento uma exposição na Serpentine, que é uma galeria no Hyde Park, em Londres? Posso inferir que é uma galeria importante porque uma artista como a Cindy Sherman expôs lá o ano passado? Trata-se afinal de prestígio? O CAV já teve exposições com um artista consagrado como o Orozco ou com a participação do Jeff Koons. É possível aferir a importância ou reputação de uma instituição ou artista a partir de sinais como estes?
Ela constrói-se exactamente assim. Entre galerias, mercado, criadores, instituições museológicas, projectos de festivais e bienais, por aí adiante. Para se afirmar, primeiro que tudo, é preciso trabalhar.
Especifique a estratégia que adopta.
É-me importante trabalhar com galerias de qualidade. Obviamente, os artistas que trabalham com Marian Goodman ou a Sonnabend vão consagrar, em termos institucionais, esta pequena instituição que existe em Coimbra.
Que garantias exigem galerias de peso internacional, como essas que apontou?
É imprescindível para trabalhar no circuito internacional não falhar nos seguros, nos transportes, ter uma equipa profissional. É uma mais valia ter trabalhado com artistas da mais alta qualidade mundial. Uma instituição que trabalha com o Gabriel Orozco ou, em Portugal, com o Julião Sarmento, não precisa de dizer mais nada. Isso permite, a seguir, alguma segurança para se trabalhar com gente nova. A afirmação de um artista faz-se através da sua obra, se expõe no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ou é representado pela Lisson Gallery – que são a consagração completa. É evidente que o Centro de Artes Visuais não é uma instituição de referência em termos internacionais, mas sê-lo-á, com certeza. Já eram os Encontros de Fotografia, pelo critério, pelo rigor da escolha dos fotógrafos.
O critério da escolha é o vector fundamental? Em si, é definidor da identidade de quem escolhe. Por exemplo, quem escolhe Diane Arbus, não escolhe o Sebastião Salgado. Certo?
É evidente. Não escolho a World Press Photo, nem pensar, por mais que tenha 300 ou 400 mil [espectadores]. Os números são um fenómeno terrível que tem liquidado muitas instituições – são o mais importante para as administrações. Isto é como a telenovela...
Está a dizer que o Word Press Photo é telenovela? No sentido de ser para consumo de massas.
Obviamente. Tem todos os valores: a miséria, a tragédia, a sensibilidade primária, a ilusão da realidade – porque o fotógrafo, como artista, modifica.
Não há nada que redima uma realidade miserável?, não é possível encontrar qualquer beleza numa realidade miserável?
De maneira nenhuma. Aquilo é outro mundo, um mundo que não me interessa. Acho que é perverso, para não dizer obsceno, alguém ter uma máquina fotográfica e fotografar um mutilado que depois vai para o salão, para o espaço da arte. Causa-me uma grande impressão.
O Araki tem fotografias de mulheres amarradas, seminuas, dependuradas em árvores, como se fossem animais.
Não tem só mulheres, tem também gatos. Esse é o quotidiano do Araki.
Mas porque é que isto não é chocante e é chocante a situação de um mutilado de guerra ou de um miúdo etíope?
O Araki tem exactamente o efeito contrário. Do outro lado há a demagogia, a presa fácil, o ceguinho, o aleijado, a violência, a sede. São documentos que funcionam muito bem nos jornais, denunciam a tragédia, a guerra, a fome. Mas, num espaço de exposição, é malicioso!
E qual é a substancial diferença?
O propósito. Não se trata da denúncia do sofrimento, trata-se do número de visitantes que a exposições tem.
Portanto, não gosta desses fotógrafos.
Não é não gostar. É como falar em comer gafanhotos: não faz parte da minha cultura. O Sebastião Salgado é um indivíduo que não tem nada a ver com a minha filosofia de vida. Eu não seria nunca capaz de fotografar uma criança a morrer de sede, plastificar a fotografia e mostrá-la no Terreiro do Paço ou numa Feira qualquer.
Como é que atribui valor a uma peça e não a outra?
Os valores da minha selecção estão assentes numa escala e num sistema que é o meu, que foi construído.
Mas porque é que este artista é bom e o outro não? Como reconhecê-lo? Exemplifico com o Julião Sarmento, que vai expôr no CAV em Outubro, e o Pedro Cabrita Reis, que apresentou aqui o projecto que levou à última Bienal de Veneza.
Cabrita Reis, Julião Sarmento, Jorge Molder, Rui Chafes, [José] Pedro Croft, Michael Biberstein, Helena de Almeida, Ernesto de Sousa: são artistas incontornáveis. Não é só a minha opinião, é a opinião unânime, baseada num dado concreto: a obra.
Recuemos duas décadas. Encontros de Coimbra. Apostou em nomes como os de Paulo Nozolino ou Jorge Molder. Porquê?
Têm uma obra consistente, coerente. Há pouco falava na atitude crítica, na escala de valores: é evidente que é importante conhecer a obra do artista. Num jovem é mais difícil que num consagrado, mas um crítico, um comissário, um director de uma instituição sabe reconhecer, tem um bom sistema de filtragem. Um avaliador da Christies olha para uma peça do século XVII e sabe se aquilo é uma peça boa ou não, única, rara. E estabelece um valor. Há uma métrica, há dados e factos indesmentíveis. Não estou a discutir se se gosta ou não se gosta.
Ou seja, é preciso reconhecer num artista originalidade (voz própria) e coerência na obra que vai desenvolvendo.
E a importância que a obra tem num determinado contexto. Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Paula Rego e Vieira da Silva, e agora Chafes, Croft, Helena Almeida: são os únicos portugueses credenciados internacionalmente.
O que é que torna o facto indesmentível?
Por exemplo, ser representado em termos comerciais por uma galeria prestigiada em todo mundo. Se a obra não for importante, nenhuma galeria aceita um artista português ou quem quer que seja. A transversalidade da obra do Julião, a utilização de diferentes suportes, a experimentação, o desenvolvimento, pode gostar-se menos desta fase ou daquela, como em qualquer escritor, mas é inegável que tem uma obra.
O que é que faz que a arte contemporânea seja tão valiosa?
Esse é o mito eterno da beleza.
Na exposição «Em Jogo» está uma bola de futebol do Jeff Koons...
Isso é outra história. A concepção decorativa da arte alterou-se. Há alguns anos imensos artistas construiram objectos de arte à volta do vazio e do lixo.
O que se compra, então, é uma ideia? Compra-se o universo íntimo e criativo de um autor expresso num determinado objecto?
Não se esqueça da atitude ideológica e de intervenção. Há uma forte componente política e de combate, seja feminista, seja ecológica, por aí adiante. O valor de mercado, a cotação, tem que ver com vários aspectos: se é uma obra única, qual o suporte utilizado... A premissa indiscutível é a obra do artista, a qualidade do seu currículo.
Em 2005 os Encontros de Fotografia completam em 25 anos. Foram expostas milhares e milhares de fotografias. O que é que acontece a todo esse espólio? As fotografias são cedidas, algumas são compradas, entram no mercado de alguma maneira, transitam para outro espaço expositivo noutro ponto do planeta?
Depende. Se são peças com numeração, (um número de exemplares restrito), que já está vendido, terá que ser o coleccionador ou instituição a emprestá-la. No entanto, quando falamos em Arte Contemporânea, o quadro da fotografia é diferente na medida em que há séries exclusivamente produzidas para exposições, sem valor comercial. Se são exemplares vendidos, fazem-se seguros consoante o seu valor. Para dar um pequeno exemplo, as fotografias do Andreas Gursky custam 30 mil contos, 150 mil euros e mais.
Tem uma na exposição. Foi cedida?
Cedida pelo próprio Andreas Gursky, segundo seguros absolutamente rigorosos, com transporte e embalagem que não lhe passam pela cabeça. As embalagens destas peças são muitas vezes mais caras que os seguros e o transporte tem de ser feito por profissionais do sector. Como a bola de bronze do Jeff Koons. Era uma peça nuclear, alusiva ao futebol [tema da exposição]. Penso que existem quatro exemplares e o valor é exorbitante. É uma felicidade imensa que galerias e artistas com esta qualidade emprestem obras ao Centro de Artes Visuais. Enriquece o olhar da exposição e prestigia internacionalmente. Os jovens artistas podem dizer amanhã que participaram numa exposição comissariada por A ou B com os artistas A, B e C. Lá esta a tal legitimação.
Voltemos ao espólio. Como recapitular e conhecer o essencial destes 25 anos de Encontros?
Há três fases claras, como se pode confirmar nos catálogos, livros e património. A primeira é uma fase de sobrevivência e afirmação de um festival que cita referências internacionais – a mais evidente é o Festival de Arles, central na difusão da fotografia na Europa e no mundo nos anos 80. Nos primeiros anos os Encontros de Fotografia viveram de um grande voluntarismo dos seus fundadores, (ligados ao Centro de Estudos de Fotografia da Associação Académica, enquanto organismo autónomo), num estado de debilidade extrema. Quando estavam a agonizar, e coincidentemente com a minha ruptura com o cinema, tomei a coordenação do festival. Percebi rapidamente que importava definir um critério e não estar dependente do adido cultural ou da embaixada A ou B, dos seus gostos ou da fotografia oficial. Procurei não descurar as vanguardas, (o Ernesto de Sousa e a Helena Almeida, na altura), divulgar obras que eu entendia nucleares e apostar na nova fotografia portuguesa. A pedagogia da fotografia em Portugal era extremamente frágil, como ainda hoje é, apesar da grande homenagem que faço ao Ar.Co.
Quando é que se pode dizer de um criador que ele é fotógrafo ou artista plástico? A Cindy Sherman usa preferencialmente o suporte fotográfico, mas ninguém se refere a ela como sendo uma fotógrafa. O Jorge Molder ou a Helena Almeida, são artistas plásticos ou fotógrafos?
Há alguma ambiguidade. Os especialistas quando teorizam sobre a obra da Cindy Sherman dizem que não é uma fotógrafa no conceito académico, tradicional, que é uma artista. Pode dizer-se que a Helena Almeida é fotógrafa porque utiliza o suporte fotográfico; mas ela utiliza muito mais do que isso, ela utiliza a fotografia para expressar e sintetizar diferentes disciplinas. A fotografia reside fundamentalmente num objecto único. Tem a ver com a atitude do fotógrafo através da sua máquina fotográfica em papel. Convencionou-se chamar-lhe straight photography. Mas o Robert Frank, por exemplo, aborrece-se e responde com agressividade quando lhe chamam artista.
O seu percurso começa no cinema, onde foi, por exemplo, assistente de Manoel de Oliveira. Transita para a fotografia, faz exposições com alguma importância, mas o que o afirma neste universo é sobretudo o seu lado de agente cultural.
Numa análise muito pragmática: o que é que adiantava ser fotógrafo se a fotografia não existia em Portugal? A fotografia tinha um corpus reduzidíssimo: era o Victor Palla, o Gerard Castello-Lopes, o Sena da Silva, o Jorge Molder, o Paulo Nozolino. Nos anos 80 existia uma pequena galeria em Lisboa, aberta devido à paixão e voluntarismo do António Sena, e uma galeria aqui na Associação Académica, de cinco metros por três. A difusão, as galerias, a edição, não existiam. O Jorge Molder trabalhava nas prisões. O Paulo Nozolino emigrou, o Jorge Guerra emigrou, o Gerard Castello-Lopes era rico. A fotografia não existia em Portugal. Só há dois anos se concluiu o trabalho de um fotógrafo lapidar na fotografia portuguesa que é o Carlos Relvas.
Sacrificou a sua obra e investiu todo o seu arrojo e know how nos Encontros. Em nome de quê? O que é que o faz correr?
Eu tenho um grande prazer em produzir. De outro modo não tinha feito os dois livros com o Daniel Blaufuks, o «London Diaries» e o «San Petersburgo»; não tinha feito o «Quatre Mouvements de la Peur» com o Julião Sarmento. Essa também é a minha obra. Há de facto imensos riscos, mas gosto de correr riscos. Há riscos que são especialmente cansativos, na medida em que são sempre os mesmos...
E que têm que ver com dinheiro. De onde é que vem dinheiro para isto tudo?
Através de um protocolo que data de 2001/2002 foi feito um investimento pelo Estado e pela Autarquia no sentido de uma organização do património e desenvolvimento dos Encontros de Fotografia. Foi projectado um equipamento específico para os Encontros, (que não tinham casa). Definiu-se um programa de sustentação financeira, com a participação a 60% do Ministério da Cultura e a 40% da Autarquia. Funcionou relativamente bem no ano passado, este ano está a funcionar muito mal.
Ou seja, o equilibrio é periclitante. A instituição não tem força para funcionar autonomamente.
Não é possível. Se se desequilibra em 40%, então é um desastre. Quando se trabalha com instituições nacionais, internacionais ou artistas e se estabelecem contratos, é forçoso cumpri-los. Quando se ultrapassam meses e meses, a credibilidade vai ao fundo. Todo o investimento que foi feito, com tanto rigor, com tanta emoção, correndo tantos riscos, fica em perigo. Desde que a instituição está viva, sistematicamente, eu, Albano Silva Pereira, para cumprir com esses compromissos, tive que recorrer a empréstimos bancários. Como deve imaginar, eles não são elásticos... A situação torna-se mais difícil, e há um cansaço tremendo, uma desilusão tremenda.
Isto é a sua vida.
É a minha vida, a minha família. Passo mais tempo aqui do que com o meu filho.
E a afluência do público? Quando venho às inaugurações, encontro os artistas plásticos consagrados e emergentes, os críticos conceituados, toda a fauna que frequenta o meio. Mas quem é que vem cá todos os dias ver, por exemplo, a Jemima Stehli?
No ano passado o Centro de Artes Visuais teve cerca de 27, 30 mil visitantes. A primeira exposição teve números extraordinários, cerca de 11 mil pessoas; penso que estavam convencidas de que vinham ver os Encontros de Fotografia. Essa vertente é extremamente importante para mim, não quero fazer arte para espaços vazios e para elites. Há que desenvolver o trabalho com as escolas e formar novos públicos. A única coisa que tem funcionado em termos de mecenato é a comunicação social, particularmente com o Público, e há anos atrás com o DNa e outros.
Qual é a importância da arte na sua vida, para que serve?
Eu comecei com 20 anos a fazer cinema. Tenho 54 anos e em 34 não fiz outra coisa. Arrisquei tudo o que se possa imaginar. Sem rede. Talvez seja um tonto. Qualquer outro director, qualquer outra equipa já teria fechado as portas. Mas tenho um grande orgulho no meu trabalho. O património é de tal modo rico que não há nenhum espaço em Coimbra para mostrá-lo. Nem os três espaços de exposição do CCB, calculo, chegariam para expor a colecção dos Encontros de Fotografia. Vamos ser objectivos: nunca tive verbas de aquisição. É devido ao meu relacionamento com os artistas e com os fotógrafos que o espólio se consolidou. Os fotógrafos não são obrigados, quando se faz a encomenda, a deixar as obras. E se olhar para as publicações, há de facto alguma vaidade, algum prazer.
É muito passional.
Claro que sim, mas também racional. Quando está em causa a sobrevivência de uma instituição e de um projecto, o que é que se pode fazer, como é que se age? Eu nunca falhei com nenhum compromisso, e isso não é só passional. Um elemento decisivo na facilidade e no privilégio no trabalho, quer na esfera internacional quer na esfera nacional, está na confiança e no respeito que as instituições e os artistas têm por mim.
O gozo maior tem que ver com o fazer?
Fazer, produzir, concretizar. Este património vai ficar para a posteridade. Há amigos que dizem: «Tens estas sobras todas, por que é que não as tens em casa?». Eu não roubo a família, não roubo os filhos. Isto é o testemunho, o coração da história desta instituição. O que mais anseio é mostrar esta colecção de uma forma digna, porque conta a história da fotografia em Portugal e dos Encontros de Fotografia. É uma tese de contemporaneidade, rigor, ética. E essa ninguém ma rouba.
Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias em 2004