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Anabela Mota Ribeiro

Alberto Vaz da Silva

09.08.17

Alberto Vaz da Silva é o grafólogo que diz que a escrita revela o inconsciente. O amigo de João Bénard, Pedro Tamen, Nuno Bragança. Católico progressista. O marido de Helena Vaz da Silva, a quem começou por oferecer Pessoa. Foi advogado a vida toda. Já antes disso olhava as estrelas.

Nasceu em 1936. Não parece uma pessoa nascida em 1936. Mesmo que use palavras como ígneo que não são usadas nos nossos dias. Tem uma natureza ígnea. Quando se parece com uma pessoa nascida em 1936, fala dos Católicos Progressistas e de namorar com chaperon atrás. Fixa uma geração e um tempo da vida portuguesa. Quando é um homem sem calendário fala da paixão pela Grafologia e pela Astronomia, de Roseline Crepy como a segunda mulher da sua vida, de Freud como a terceira mulher da sua vida!, do destino que pôde cumprir quando se reformou da vida de advogado.

Tem uma natureza apaixonada. De fogo, sem ser fogosa. Foi casado quase 50 anos com Helena Vaz da Silva. “Vivemos um percurso muito forte, de experiências muito intensas, sempre fazendo parte um do outro”.

Falámos numa manhã de calor. Não falámos dos cursos de Grafologia que dá no Centro Nacional de Cultura. Falámos de análise grafológica. Os nossos inconscientes estavam em contacto, disse ele. Também me pareceu.

   

Conte-me a sua história de amor com a Helena.

Ah! [suspiro] Encontrámo-nos por acaso. Ao telefone. A Helena tinha o hábito de estudar com uma amiga, e faziam umas partidas. Ligaram e mandaram chamar o menino [riso]. Estava a estudar para um exame, no 7º ano. Havia o meu irmão, que graças a Deus não estava em casa.

 

Porquê graças a Deus?

A Maria Filomena Mónica diz num livro que o meu irmão era o homem mais bonito de Portugal.

Entabulámos logo uma conversa. Falámos de filosofia, de literatura. Ensinei-lhe um bocadinho de História de Arte. Não sabia quem ela era nem tinha o número (ela não disse). Uma vez ficámos a noite inteira ao telefone.

 

Ela conhecia a sua família?

Não, não sabia sequer como me chamava. Depois fui para o Brasil durante vários meses. Tive um prémio inesperado. Um prémio que o governo brasileiro dava aos alunos que acabavam o 7º ano com média mais alta.

 

Quanto tempo durou a relação ao telefone antes do primeiro encontro?

Quase um ano. Encontrámo-nos pela primeira vez no dia 1 de Novembro, dia de Todos os Santos, em que se fazia o peditório para o Instituto Português de Oncologia, de que o avô dela era fundador, Francisco Gentil. Disse-me que estaria a fazer o peditório à porta da Igreja de São Domingos, vestida de encarnado. Devo confessar: já tinha feito umas investigações, sabia quem ela era. Até sabia que nos tínhamos encontrado em casa de um amigo comum, o Fernando de Mascarenhas, no Palácio Fronteira. Cheguei ao pé dela e disse: “Olá”.

 

Começaram logo a namorar?

Houve um interregno. A certa altura fiz a um amigo comum três perguntas muito simples. Era uma menina muito inteligente, que falava alemão, que já não tinha pai. Soube o telefone e telefonei eu. Ela ficou para morrer quando ouviu a minha voz. Depois foram uns cinco anos de namoro, sempre com um chaperon atrás.

 

Quem é que fazia de chaperon?

Matámos várias velhotas nessa nobre missão. Eram caminhadas a subir a Serra de Sintra, a pé. Iam sucumbindo uma após outra.

 

O que é que foi tão sedutor nela?

Tudo. A primeira coisa foi a voz dela ao telefone. Era muito nítida, muito afirmada e bem timbrada. Não era uma voz pastosa. Era uma voz autoritária. A inteligência. A Helena tinha tido estudos, mas as meninas de boas famílias não iam para a universidade. Foi para o Instituto de Serviço Social, aprendeu a coser, a fazer remendos. Suscitava muita desconfiança e inveja, sobretudo por parte dos homens. Nunca ouvi ninguém dizer: “Admiro a Helena por causa da inteligência invulgar dela”.

 

O que é que já sabia de si quando a conheceu?

Aquilo que sempre soube, sem formulação. Aquilo que sabemos de nós é um núcleo central que não nos preocupamos em definir. Mais tarde, quando estudei Psicologia, percebi que há pessoas que nunca souberam de si, que sempre se sentiram desestruturadas. Eu não sabia de mim, mas era completamente integrado. Não tinha dúvidas sobre nada.

 

Como é que um rapaz com o seu percurso intelectual, cultural e pessoal não tinha dúvidas?

É muito o meu temperamento e o meu carácter. Há uma grande predominância de fogo na minha textura psicológica.

 

Olhando para si achei que podia ser água. Porque tem uma leveza, como água que corre. Porquê fogo?

Porque sou um apaixonado, por temperamento. O apaixonado atira-se facilmente para as coisas com confiança, com certezas. Penso que sou uma pessoa modesta, não gosto de dar nas vistas. No entanto, na minha sombra, sempre fui muito seguro do que fiz. Sabia o que gostava, o que não gostava. Se fazia o que não gostava sabia porquê. Se fazia o que gostava ia até ao sétimo céu. Essa pergunta traz-me uma reflexão: tive muita sorte na vida. Muita coisa me foi dada, como a Helena. As coisas caíram-me em cima da cabeça, ou através de pessoas. No meu último livro, sobre a Sophia de Mello Breyner, pus em epígrafe Saint Martin, filósofo do século XVIII, que esteve na base da alquimia e de grandes conhecimentos esotéricos: “Houve certos seres através dos quais Deus me amou”. Aconteceu-me a vida inteira.

 

Quem foram esses seres através dos quais se sentiu amado por Deus?

Esse grupo de amigos que me aconteceu muito cedo, ainda no liceu.

 

O João Bénard da Costa era amigo do liceu?

Sim. O Pedro Tamen, o António Alçada [Baptista], mais tarde. O Padre Manuel Antunes; conversávamos muito na [sede da revista] Brotéria, ia lá ter com ele. Tínhamos conversas espantosas sobre poesia, arte. Depois houve os grupos de casais, o empenhamento nos movimentos ligados à Igreja. Uma fé. Devia ter começado por aí.

 

Estou a promover uma espécie de associação livre. Por isso não estava a começar pelos eixos principais que se lhe conhecem. O da Grafologia, o da Astronomia, o da fé. Talvez tenha começado por um eixo central, a Helena.

Centralíssimo.

 

Quando é que se sentiu desamado?

Descobri-me desamado várias vezes porque tinha um ideal de amor irrealista. Pensei que o amor humano podia chegar a um máximo de exclusivismo, de proclamação solene, de vivência. Fui descobrindo ao longo da vida que não é assim, que as pessoas são diferentes de mim. É o mal do fogo. O fogo é um bom bocado fixo e um bom bocado exigente. Todos os episódios bíblicos que mais me atraíram tiveram a ver com o fogo. Para mim a vida era a chama ardente, era Iavé, Moisés, era aquela cobra nas mãos de Moisés. O meu principal trabalho foi descobrir a relatividade das coisas.

 

Moderar a chama?

Tamisá-la, modelar a chama. E isso foi a Psicologia que me veio dar. Foi uma aquisição fundamental, através de uma outra mulher fabulosa, a Roseline Crepy, a minha grande revelação em matéria de Grafologia ligada à Psicologia das profundidades. Foi a maneira de encontrar o Freud. Deus amou-me através desse encontro. Quando comecei a perceber a diversidade do mundo, inatingível na sua plenitude, percebi quão limitado e ego-centrado era. E quão lamentável [riso]. A tal fixidez.

 

Gostava de me fixar um pouco no desamor. Somos feitos, mais do que tudo, dos momentos fracturantes? Dos momentos em que descremos do amor que os outros têm por nós.

Os momentos fracturantes são grandes oportunidades de crescimento. Sempre olhei o sofrimento como uma oportunidade. Como uma sorte. Mesmo que algumas sortes tenham sido muito amargas. Mas isso não foram desamores. Nunca me senti desamado, embora tenham acontecido coisas que me fizeram mudar a minha perspectiva sobre o amor.

 

Relativizar, perceber o sentido das proporções requer maturidade.

[Requer a] abertura da consciência, a compreensão dos outros. A compreensão daquilo que sabemos sobre o que é a vida. Sempre que tive a tentação de me sentir desamado, de me sentir posto em causa, percebi que estava a entrar no domínio da auto-compaixão, que é daquelas coisas que é essencial ultrapassar. O sentido das proporções fica completamente obnubilado pela auto-compaixão.

 

Já falou do seu irmão, que era mais bonito.

Era e é.

 

Podemos falar da sua infância?

Podemos. Foi uma infância numa grande casa. Sempre vivi com avós, e até com bisavós. A minha bisavó materna foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Pagava-me 20 tostões para espreitar debaixo da cama dela e ver se estava alguém escondido.

 

Fazia isso para o entreter?

Não, porque tinha medo. Era uma pessoa inteligentíssima.

 

Como é que se chamava?
Adelaide. A minha mãe também era Adelaide. E a minha avó paterna também. O meu irmão sempre foi uma relação muito importante. Fazíamos uma diferença de seis anos, sou mais novo. Tínhamos mundos completamente diferentes. Ele tinha um mundo social, de sucesso, desportista, meninas muito bonitas à volta. O homem do mundo. Eu era um sensível, introvertido, sempre agarrado aos livros. Houve uma altura em que se ria dos meus livros, e ria-se de eu ouvir Mozart e Bethoven.

 

Era um menino velho?

Não. Sentia-me bem com o que gostava. Promovia em casa representações teatrais. Era bastante satírico, sobretudo em relação à minha avó materna, que tinha uma grande preferência pelo meu irmão e que me fazia a vida negra. O importante é que pagavam a entrada. Com esse dinheiro comprava os meus discos e os meus livros. Estamos a falar de nove, dez anos.

 

O fundamental não era o seu pai e a sua mãe? Escreveu num papel, numa entrevista que encontrei: “O mais importante numa pessoa é a relação com a sua mãe e com o seu pai até aos seis anos de idade”.

Isso é evidente, mas é anterior ao que estou a descrever. É desde a concepção, passando pelo nascimento, às várias fases do desenvolvimento infantil. Mas disso não tenho memória. Vivíamos no Estoril, passava os dias na praia, tinha uma relação com o sol, com o mar. Uma alegria física, um pouco como a do Camus na Argélia.

 

Mas o Camus era filho de uma lavadeira. Isso muda tudo, ou não?

Muda.

 

Até a descontracção com que se está ao sol.

Sim. Não há nada mais angustiante do que ir para a praia, ver o sol, ou sequer tomar um banho de mar, e estar mortalmente triste, ou quando se tem luto na alma. Voltando à minha infância: fui uma criança feliz, mas, de alguma maneira, sempre fui prisioneiro. É uma conclusão de há pouco tempo. Nunca vivi 100 por cento o que sou. Sempre o destino me armou alguma dificuldade, me deitou a rede por cima.

Foi muito importante a relação com a minha mãe, mais longínqua com o meu pai. Muito conflituosa com essa minha avó materna, que era uma figura predominante.

 

O seu irmão gostava de si, ou não achou graça ao facto de aparecer, seis anos depois, uma criança na família?

Hoje tenho a certeza de que gostava, e gosta de mim. Nunca o olhei como pequeno. Quando se é pequeno, o irmão, seis anos mais velho, dispõe de nós. Ele tinha um certo prazer em ver os meus limites. Eu era um intelectual miúdo que o irritava por ser tão diferente. Mas quando nos encontrávamos no Tamariz, gostava de dizer aos amigos: “Aquele puto é o meu irmão”. E eu também tinha orgulho nele.

Era mais parecido com o meu pai, que era muito secreto, introvertido. A minha mãe era muito mais apaixonada; herdei o fogo da minha mãe.

 

E escolheu uma mulher também assim.

Escolhi uma mulher ígnea.

 

Usa palavras que não são deste tempo. (Ígneo no dicionário: que é do fogo ou a ele se assemelha; ardente.) Ígneo é uma palavra que Goethe usa para descrever o Etna: coluna ígnea.

Adoro vulcões. Uso palavras que estão na minha alma. Ígneo é uma palavra central em mim.

 

A religião, a sua fé, sendo um enorme conforto, alguma vez foi também uma rede que se intromete entre si e o seu destino?

A fé nunca foi conforto nenhum para mim. Foi uma essência. Não consigo encontrar palavras senão através de um episódio. É uma das minhas memórias de infância, o maior espanto da minha vida. Talvez olhando o céu (sempre tive uma atracção enorme pelo céu à noite, e também pela religião, a minha avó levava-me muito à igreja; adorava os paramentos, os cânticos gregorianos, os frescos), alguém me disse que havia pessoas que duvidavam da existência de Deus. E eu perguntei: “Mas duvidam como, não olham à volta?”.

 

Estava a ligar Deus a uma certa ordem cósmica.

Sim, sempre liguei. Por isso é que digo que Deus não é uma consolação minha. É um dado de facto que sempre senti à minha volta como a essência da ordem das coisas.

Perguntou-me se alguma vez Deus fez parte dos obstáculos. Algumas vezes pensei que opções na minha vida poderiam perturbar a minha relação com Deus, com essa ordem. Ir atrás de tudo o que me atraía, abandonar a minha família, desaparecer para as ilhas do mar do Sul.

 

Está a falar de sexo e irresponsabilidade.

Sim. O sexo foi uma pequeníssima parte disso. Era também uma atracção pelos horizontes. Sempre me atraiu o Gauguin, o Van Gogh, a Polinésia. Outro aspecto paradoxal: sou muito fixo, nunca teria precisado de viajar para conhecer o mundo. Podia ter vivido a minha vida toda com os meus livros, os meus discos, num sítio ideal que encontrasse. Mas a minha vida foi o contrário, passei-a a andar de um lado para o outro com a Helena, com os projectos da Helena. E gostei imenso de ter viajado. Excepto África. Tenho a sensação de que se puser um pé em África é o fim dos meus dias. Coisa estranha.

 

Não é o seu elemento. Ainda que tantas vezes África seja associada ao fogo.

Eu sei. Mas devo ter sofrido horrivelmente em África. Posso perguntar em que dia nasceu?

 

Gosto de dizer que nasci no mesmo dia do Brás Cubas, o personagem inventado pelo Machado de Assis. No dia 20 de Outubro.

Tinha a certeza que era Escorpião.

 

Não, ainda sou Balança.

Quem é Balança de 20 de Outubro está muito perto do Escorpião.

 

Fica chocado se lhe disser que não tenho ideia alguma do que é ser Escorpião ou Balança?

Escorpião é um signo de água, é ir até ao fundo dos maiores segredos.

 

Por que é que só agora sentiu a urgência de saber onde é que pertenço? Não viu a minha caligrafia senão fugazmente, não conhece o meu mapa astrológico.

O essencial num contacto como este em que estamos, de entrevista, como é a relação terapêutica, como são as relações exclusivas a dois, é o encontro dos inconscientes. O seu inconsciente é uma máquina de alta potência que põe a funcionar quando entrevista uma pessoa.

 

Estou a perguntar se me fez uma pergunta porque sentiu necessidade de uma pausa.

Senti que os nossos inconscientes estavam em contacto.

 

Habitualmente o entrevistado não faz perguntas ao entrevistador. E acho que não é só porque essas são as regras da entrevista.

Acredito. Mas não se esqueça que sou terapeuta. Funciono com uma terapia de tipo psicanalítico, e estou habituado a estar no seu lugar. Contudo, não estou de todo a encará-la como uma paciente.

 

Mas eu estou a encará-lo como um paciente.

Há muito tempo que lhe estou a fazer perguntas mudas. Não de um modo perverso, mas tentando entender a fundo as suas perguntas.

 

Fale-me de um tempo que viveu, de uma geração a que pertence e que está a desaparecer. O que é que na sua vida foi grandemente marcado pela sua condição social, pelo grupo que integrou e pelo que o país era então?

Foi um longo capítulo da história da minha vida. Começou nos anos 50, quando fui conhecendo estes meus amigos, que vieram a integrar o grupo dos Católicos Progressistas. Foram muito importantes como estímulo intelectual. Originais.

 

Pode especificar algumas originalidades?

O Nuno Bragança vivia no seu meio muito fechado, ainda em casa dos pais. Tinha uma inteligência de um tal brilho, uma tal revolta, um tal talento de escritor, que funcionou como um deslumbramento permanente. O Luís Sousa Costa era uma inteligência arrasadora, músico extraordinário, o melhor amigo do Mateus Cardoso Peres, superior dos dominicanos, figura também central no nosso grupo. A Helena também teve um grande fascínio pela inteligência do Nuno. O Nuno tem um lado revolucionário.

 

Apesar de os Católicos Progressistas serem uma forma de revolução no seio da comunidade católica lisboeta, eram todos bem nascidos, de famílias conservadoras. Incapazes de fazer uma revolução por completo? De rasgar com tudo?

Não. Fizemos um projecto de vida em comum, o chamado Pacto. O João Bénard, o Duarte Nuno Simões, o Pedro Tamen, o Padre Manuel Antunes. O projecto era arranjar uma grande quinta com várias casas com coisas comuns (como uma cooperativa de ensino). Isto, em pleno salazarismo, era revolucionário.

O Nuno Bragança mandou as nossas sugestões ao Nuno Teotónio Pereira, que era quem ia fazer os projectos.

 

Que sugestões deram ao arquitecto?

Há um ano o Teotónio Pereira mandou-me a carta do Nuno Bragança em que este pedia àquele “orçamento para as instalações que conciliassem o máximo de pobreza possível com o mínimo de necessidades civilizadas a que por infelicidade de nascimento seria utópico pretender renunciar de chofre.” Este “infelicidade de nascimento” é extraordinário.

 

O Pacto foi em que anos?

Começou em 1961, durou até 1966. E deu origem ao O Tempo e o Modo, que era a nossa maneira de actuar na sociedade e de lutar contra o regime, apesar dos horrores da censura e de a maior parte dos artigos serem cortados. No Centro Cultural de Cinema, um cineclube católico, os programas eram revolucionários. Éramos vaiados pela massa associativa.

 

Viveram realmente nessa quinta?

Nunca vivemos. Procurou-se a quinta, encontrou-se a quinta, fizeram-se estudos. O cooperativismo estava na moda, mas não era fácil pôr de pé.

 

Comecei por perguntar se não eram capazes da revolução completa. Isso era a vossa revolução possível, por “infelicidade do nascimento”? Em 1961/62, foi a revolta dos estudantes, foi a guerra de África.

Não é tão simples quanto isso. Houve uma reunião especial para saber se íamos abrir aos não-católicos, e chegou-se à conclusão que sim. É quando entra o Mário Soares, o Jorge Sampaio, o Sottomayor Cardia. A acção política clandestina passou a ser também um dado. A Helena e eu casámos em 1959, em 1960 já tínhamos o processo-crime por causa da carta ao Salazar sobre as torturas da PIDE, o que ia ocasionando ser despedido logo no ano a seguir a casar. A minha sogra falava-me de maneira pouco  simpática. O Nuno escreveu em nossa casa, uma casa recatada, onde nunca seria procurado, alguns dos seus papéis políticos mais importantes, [e o romance] A Noite e o Riso.

 

Esta casa onde estamos?

Não. Uma casa mais pequena, onde depois viveram o Nuno Portas e a Helena Sacadura Cabral.

No Nuno Bragança a revolta era máxima. Até aos 12 anos a mãe não o deixava pôr um pé na rua para não se constipar; passou disso directamente para a noite do Cais do Sodré e para o boxe.

 

Quando é que foi além dos seus limites? A Astronomia e a Grafologia (com as quais se encontrou cedo, mas de um modo sistemático e quase exclusivo apenas na segunda fase da sua vida) foram uma forma de ir além dos seus limites?

Não. Toda a gente me disse para ir para Direito, e fui. No curso de Letras teria sido mais feliz. Fui advogado de um banco, de uma empresa. Fui mais além dos meus limites sendo advogado, para ganhar a vida, cumprindo a minha obrigação de pai de quatro filhos, do que fazendo coisas que eram muito mais da minha natureza.

 

Pelo que é que teve de lutar?

Por tudo. Sempre tive a noção de que a vida é uma luta permanente.

 

Ao mesmo tempo, no começo da entrevista disse que tudo lhe foi dado.

A essência da vida é uma luta. Tudo me foi dado mas não de mão beijada. Foi dado com a condição de lutar. Nunca me sentei sibariticamente numa rede. Odeio essas coisas, cadeiras de baloiço, redes. Sempre gostei destas cadeiras [onde estamos sentados].

 

De ferro. Algo desconfortáveis.

E que me dão a noção…

 

De estar alerta.

Estar alerta é uma das condições da minha vida. Super alerta. A maior parte das pessoas tem a noção do gozar a vida de maneira relaxada. Há coisas incompreensíveis – descansar. Descansar é mudar de tarefa, ou ir para uma coisa ainda mais cansativa, mas diferente.

 

Na segunda fase da vida, que acontece com a ida da Helena para o Parlamento Europeu, é quando pode ser mais inteiramente quem é, cumprindo o seu destino. É curioso que só depois disso se tenha dado o encontro fulminante com a Roseline Crepy.

Já se tinha dado muitos anos antes, mas por escrito.

 

Um livro dela caiu-lhe literalmente sobre a cabeça na Buchholz, quando procurava livros sobre Grafologia. Escreveu-lhe e ela respondeu.

Pensei que jamais a encontraria. A Helena fez-me um repto: “Só aceito se vieres também”. Foi ouro sobre azul. Podia reformar-me.

 

Não estamos nada à espera que depois de nos reformarmos uma outra vida comece mesmo.

Mas é que eu estava à espera disso!, vibrantemente. Não gostava da vida que tinha como advogado, embora fosse o chefe do contencioso da segunda maior empresa do país. Podia ter sido terrivelmente infeliz, não tinha nada que fazer em Bruxelas. Podia ter sido traumático – o trauma de que fala toda a gente que passa à reforma.

 

Outro trauma é o de ser o marido da Helena.

Nunca foi trauma nenhum para mim. Nunca tive complexo nenhum e nunca fui a reboque de nada. Só fiz o que quis, só ia quando queria. Logo a seguir telefonei à Roseline Crepy, e passava as semanas em Lille, [onde ela vivia].

 

Posso perguntar se foi uma paixão?

De alguma maneira, foi. Só que eu tinha 59 anos, e ela tinha 89 [riso].

 

Nem todas as paixões têm de ser carnais.

Não. Um tempo depois ela disse-me logo aquele provérbio francês: le ridicule tue, o ridículo mata. Foi uma relação espantosa.

 

Foi uma das mulheres da sua vida, como a sua avó, a sua bisavó?

Claro que sim. Foi a segunda mulher da minha vida. A minha avó era um ente espiritual, não era uma mulher. (Quando estava na tropa vinha para casa dela e fizemos as pazes. Lembro-me de uma costureira a quem fazia a vida negra. Era protestante. Toda a gente a chamava Sr. D. Emília, eu tratava-a por Emília, para a atazanar, e tentava ter discussões religiosas com ela.

 

Que snobe.

Porquê? Dessa não estava à espera.

 

Porque o fundo disso é uma snobeira. É pequeno, é atazanado pela sua avó, e porque pode atazanar um elemento que socialmente é vulnerável, exerce pressão sobre ele.

Isso não é snobeira, é psicanálise. Estou de acordo. Nunca tinha pensado nisso. Pode ter sido uma projecção da minha raiva com a minha avó.)

 

Retomando a Roseline. A Astronomia, sendo uma ciência diferente da Grafologia, tem pontos de contacto com esta. Há uma interpretação de sinais e de símbolos e uma tentativa de construir uma ordem e de fazer uma decifração. Como aos gregos, interessa-lhe a observação do voo das aves como forma de ler o destino e adivinhar o futuro?

Não. Isso são formas primitivas, pré-xamânicas (e os xamanes adoro). Gosto muito do voo das aves como coisa estética, que revela uma certa ordem. Quando vejo um bando de andorinhas ou de outras aves, adoro ver como vão trocando de lugar, as formas que vão fazendo. E tento perceber porquê. Não tento ser adivinhatório. Não tenho nenhuma pretensão adivinhatória.

 

Queria ir ter aí. Se lhe interessa a interpretação ou se lhe interessa também a adivinhação.

Na Grafologia, que é um veículo para os outros, as minhas terapias são chamadas de terapias de inspiração psicanalítica. O método é muito semelhante ao da Psicanálise, mas parto da escrita. Estou farto de dizer aos psicanalistas: se percebessem o que é a Grafologia poupavam anos de trabalho, não só a si próprios, como muitos tostões na bolsa dos pacientes.

 

Porquê?

Porque lhes dava um conhecimento que lhes permitiria começar muito mais além. A única coisa que me interessa são os outros. Compreendê-los a fundo. Compreender a raiz dos problemas e ajudá-los, através das associações livres, como na Psicanálise, a chegar a uma reconstituição da sua estrutura básica e do seu progresso. E de os restituir àquilo que são.

Não lhe quero mentir. Pergunta-me se me interessa a adivinhação; cheguei à conclusão, pela vida, que isso acontece dentro de mim, sem que eu procure. Mas não proclamo nem adianto.

 

Isso a que chega é uma espécie de conclusão lógica a partir de premissas que estão enunciadas?

Nunca é lógico. A lógica aí faz uma triste figura. É aquela estranheza inquietante de que falava o Freud, e é através dela que as verdades se descobrem. O Freud, antes de escrever o Totem e o Tabu, foi para Roma e esteve três semanas, dias inteiros, de pé, diante da estátua do Moisés, do Miguel Ângelo. Foi através disso que chegou à essência do seu Moisés. Na Psicanálise a lógica nunca entra.

 

Há uma coisa que Freud disse a Schnitzler, a propósito da sua peça de teatro A Menina Elsa. “Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – a partir de uma fina auto-observação – tudo o que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”

Ele tinha um respeito extraordinário por tudo o que eram dons psicológicos. E tinha uma espantosa atracção pela arte.

 

Como é que foi lidando ao longo da sua vida com o descrédito dos cientistas em relação aos métodos que utiliza para praticar a Psicanálise?

Não me chame psicanalista. É um método de inspiração psicanalítica. Sou grafólogo e pratico a grafo-terapia. Lidei lendo tudo o que os cientistas publicam. Agora os físicos descobriram o novo inconsciente, arrumaram de vez com o Freud. O Freud continua a ser a terceira mulher da minha vida [riso]. Ele próprio não teve a noção do seu génio.

 

Em que momentos a sua letra mudou de modo notório?

Até ao encontro com a Roseline Crepy. Havia muitos lados vaidosos, egocêntricos, mundanos, na minha escrita. Com ela fiz uma psicanálise. Foi implacável comigo. Cheguei a fazer o percurso de Lille a Bruxelas aos palavrões, contra ela. (Perguntei à Helena se se importava com este novo percurso. Ela respondeu monossilabicamente: “Não”. Não tínhamos o hábito de prolongar as conversas com palavras a mais. Tinha feito a minha escolha. Esse “não” queria dizer tudo, era pujante de significado).

 

A sua letra mudou quando perdeu a Helena, quando perdeu um filho?

Não. A minha letra mudou depois do meu trabalho com a Roseline. Uma das coisas que apostrofava é que perdia demasiado tempo com trivialidades.

 

Como é que as mortes o afectaram? E se o afectaram muito seriamente, como é que não apareceram na caligrafia?

As mortes afectaram-me terrivelmente, sobretudo o processo da doença que conduziu às mortes, nos três casos, a Helena, o filho e o neto. Depois começou a acontecer uma coisa espantosa: perceber que a morte traz um peso e uma dimensão às pessoas que passaram por ela. Passei a perceber a Helena, o meu filho e o meu neto face a face. Há uma coisa que São Paulo diz: “Nesta vida vemos Deus como que através do espelho, mas haverá um dia em que O veremos de frente, face a face”.

Estranha e paradoxalmente, foi como se em vez da morte me trazer uma sombra, um esquecimento, me tivesse tirado os véus. Trouxe-me as pessoas na sua essência. Até onde sou capaz, vejo-as integrais, coisa que em vida não conseguia ver. A morte foi uma riqueza. O Buda diz que existe uma omnipotência que rege tudo; é como se fosse um tear de que as lançadeiras são o sofrimento e a morte; a trama é a vida e o amor.

 

Como é que é a sua letra?

É banalíssima.

 

Como é que é banal se não é uma pessoa banal?

Sou uma pessoa banalíssima.

 

Parece que lhe estou a pedir um auto-retrato.

Claro que está. A minha letra reflecte o meu temperamento solar, reflecte o meu carácter ígneo. É um bocado apaixonada demais para o meu gosto. Verifiquei um dia com apreensão que as pernas das minhas letras às vezes trespassam um bocadinho as entrelinhas – que é um sinal de paixão, mas que não deve acontecer; perturba a claridade de espírito.

 

Uma vez que não analisou a minha letra…

Uma análise grafológica a sério exige um exame minucioso de horas, letra a letra, traço a traço, vírgula a vírgula. É uma coisa exaustiva. A Roseline Crepy só fazia análises grafológicas. Confiou-me todos os dossiers. Escrevia tudo, desde como é que a pessoa andava, como é que vinha vestida, como era a voz.

 

Queria perguntar-lhe se depois de uma conversa com uma pessoa, depois desta conversa, consegue ter uma surpresa enorme quando vê a letra de quem tem à frente.

Consigo. As pessoas mandam-me os documentos, faço o exame, marcam a consulta, que é sempre oral, e sei tudo sobre a pessoa. Dá para perceber desde a concepção até à fase de desenvolvimento infantil, a liquidação do Édipo, aos seis, sete anos. E aí a pessoa tem a vida determinada. Dá para perceber o que foi ou não foi a vida até este momento. E dá para fazer algumas prospecções de futuro – não são adivinhações.

Quando vejo uma pessoa e falo assim com ela há muita coisa que não realizei. A escrita é sempre mais rica. Sei idade, sei se é homem ou mulher. E quantas vezes me sai o oposto... O nervoso extremo pode aparentar uma calma absoluta, um apaixonado pode ter um ar quase apático, ou não saber que o é. Um amorfo pode parecer uma pessoa activa. Enormes ilusões. Tem que se ser extremamente alerta, prudente, modesto.

 

Por coincidência, antes de começarmos a gravar, perguntei-lhe o que é que significa a letra “f”, e disse-me que é a letra mais reveladora, mais importante.

É a mais sintetizadora. É sempre a primeira coisa de que se vai à procura, o “f” minúsculo. O “f” escolar tem um traço inicial, depois vai para cima (o espírito, a imaginação). Depois passa por uma linha (o real, a vida de todos os dias, a actividade). Vai para baixo (os instintos). Volta para cima (mostra como é que a pessoa dominou ou domina os instintos e volta aos outros). Outra vez a linha, agora para a direita. Percorre os quatro espaços da escrita, os quatro pontos cardeais. E também o passado, o presente e o futuro.

Há pessoas que escrevem “f” a mais. O inconsciente tem esta coisa espantosa de empregar despropositadamente uma determinada letra. Quando há “f” a mais é mau sinal: significa que a pessoa ainda não se encontrou. Quer desesperadamente encontrar-se, mas está a lutar contra moinhos de vento. Quando não há “f” é uma tragédia: a pessoa desistiu de si.

 

Todas as letras têm um significado. Vamos a outra: “R”.

Há quatro alfabetos. O alfabeto das minúsculas escolares, o alfabeto das minúsculas tipográficas, o alfabeto das maiúsculas escolares e o das maiúsculas tipográficas. Está a ver a complexidade. O “r” minúsculo, em primeira linha corresponde à precisão, ao jeito de mãos. É das letras mais difíceis de fazer. Tem também um significado sexual e moral. Depois há o lado da pressão, que é o maior mistério da Grafologia. É a força que o instrumento faz sobre o papel, é a própria essência da pessoa. Isso é quase impossível de ensinar. É a vida toda.

 

 

Publicado originalmente no Público em 2012