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Anabela Mota Ribeiro

Ana Maria e Miguel Caetano (s/ Marcello Caetano)

21.03.22

Uma palavra para o vosso pai? Um lutador, um doutrinador, respondem Ana Maria Caetano e Miguel Caetano. Dois dos quatro filhos de Marcello Caetano (os que sobrevivem), têm leituras diferentes do pai e da história recente. A experiência de filha de Ana Maria não coincide com a de Miguel, e a participação cívica e política de um e de outro é diferente e suscita apreciações diferentes do que foi o Marcelismo ou o Estado Novo.

A entrevista foi combinada com Miguel e aconteceu em casa de Ana Maria, há uma semana. Os dois sentaram-se no mesmo sofá para evocar uma figura marcante do Portugal contemporâneo. Os livros que discutem a biografia, o seu legado enquanto académico ou a actividade política (um dos mais recentes é o de Menezes Leitão, “Marcello Caetano – Um destino”) não cabem aqui. Este é o retrato de dois filhos, a partir de dentro.

  

Marcello Caetano é uma figura da história portuguesa e o vosso pai. O retrato que vão fazer com certeza tem esta clivagem entre a persona pública e a dimensão íntima e familiar. Qual é a primeira recordação que vos ocorre do vosso pai?

Miguel Caetano – Vou começar, sou mais velho. A Ana Maria tinha uma relação com o pai que nenhum dos rapazes tinha. E nós, rapazes, também tínhamos uma relação diferente com o pai. O meu pai era uma pessoa austera. Trabalhava muito, mas procurava ter disponibilidade para nós. As refeições eram um ponto de encontro, de conversa e de transmissão, quer ao almoço quer ao jantar. Chegou a pôr como condição para ser ministro sair do conselho de ministros de maneira a estar às oito e meia em casa.

Ana Maria Caetano – Enquanto Salazar foi primeiro-ministro, chegava um bocadinho tarde para jantar. Impôs logo, quando foi primeiro-ministro, que tinha que chegar a horas, e que o conselho de ministros tinha que acabar a horas.

 

Privilegiava a vida familiar, ou não a descurava apesar das obrigações políticas, é isso?

MC – Não a descurava de maneira nenhuma. A minha mãe tinha uma presença mais constante. Mas quando havia qualquer tema importante, a conversa com o pai era sempre um acontecimento. Era uma pessoa um pouco formal, e um pouco distante com os rapazes.

 

Em que é que se traduzia essa distância e esse formalismo?

MC – Não havia uma intimidade fácil. Transmitia-nos valores, princípios. Brincar com ele, lembro-me pouco. Aparecia na praia, ia vestido. Trabalhava horas sem fim.

AMC – Não tinha momentos de preguiça.

MC – Lembro-me de ele nos ler no Verão. A Dona Redonda e a Sua Gente. Era um livro para crianças.

AMC – Tenho-o ali.

MC – Estávamos a passar um Verão na Beira, ao pé de Gouveia, de férias. Mas geralmente não tinha tempo para isto.

 

Agora a Ana Maria.

AMC – Fui a última de quatro e uma rapariga. O meu pai perdeu a mãe muito cedo, tinha nove anos, e eu tive o lugar da sua mãe. Ele canalizou um afecto especial para a filha. (Isto são construções que vou fazendo.) Tivemos uma relação de grande proximidade, sempre. Era uma pessoa que eu admirava imenso. E que me admirava, o que foi muito importante para mim na vida. Com o pai conversava tudo. E ele conversava tudo comigo.

MC – Mas isso é mais tarde. Quando era pequena dava-lhe um mimo sem fim. Quando queríamos fazer algum pedido: “Ana Maria, vai fazer o pedido, porque a ti o pai diz mais facilmente que sim”.

AMC – Isso era com o carro [riso]. Mas vocês também me protegiam muito.

MC – Era muito marcada da parte do pai a exigência em relação aos rapazes.

AMC – Pois. As mulheres tinham poucos direitos civis, ainda. Eu não teria que ter o curso.

 

O seu pai não esperava isso de si?

AMC – Não. A ideia dele não era que eu fosse para a universidade. Eu tinha que ser boa nos estudos mas eles tinham que ser óptimos. Tenho ideia de uns passeios que fazíamos de automóvel. Íamos todos ao monte, depois toda a gente enjoava, tínhamos que parar o carro. O carro não devia ter espaço para tanta gente e eu ia sentada ao colo dele. Era um privilégio.

 

Falou do sentimento de ser escolhida e da confiança que o seu pai tinha em si. Fale mais da relação próxima que tinham.

AMC – Tínhamos daquelas casas com uns corredores enormes, e ele levava-me ao colo pelo corredor. E agora lembrei-me de uma coisa cómica: o meu pai sempre imaginou um casamento para mim. Nesse corredor, ele dava-me o braço, cantarolava a marcha nupcial, e íamos a passo até à casa de jantar. Imaginou sempre levar-me ao altar para me entregar a alguém, mas não conseguiu [risos].

MC – O pai era muito musical. Era uma pessoa com muito ouvido, gostava de óperas. A minha mãe era o contrário.

 

Não se imagina Marcello Caetano a cantar. A partir dessa memória há qualquer coisa que não coincide com a imagem austera.

MC – Ele tinha feito parte do coro da Igreja dos Anjos.

AMC – Cantos gregorianos, cantava.

 

Quando pensa no seu pai político, qual é a primeira imagem?

MC – Quando estava na instrução primária, o meu pai era comissário da Mocidade Portuguesa. Era pequenito, não me dizia grande coisa. Mais tarde foi ministro das Colónias, estava eu no liceu. Curiosamente a pessoa mais importante (no liceu, em relação a nós) era o meu avô, João de Barros. Era professor, reformado, e ia buscar-nos. Se havia qualquer atitude de protecção era porque todos tinham uma relação extraordinária com o Dr. João de Barros. O meu pai nunca ia ao liceu.

AMC – O pai não gostava nada que o avô fosse. Não gostava que os meninos tivessem protecção.

 

Foi só em 1968 que sentiu verdadeiramente a dimensão política do seu pai?

MC – Não, não. Isto mais tarde muda muito. O meu pai foi tendo cada vez mais projecção política tal como eu comecei a ter mais participação cívica. Não digo política, mas começa a haver avaliação de ideias.

 

Confronto de ideias?

MC – Não digo confronto de ideias, porque coincidiram vários períodos da minha actividade cívica com períodos em que o pai não estava muito metido na política. Em 68 deu-se uma grande aproximação, até determinada altura, depois houve um certo bloqueio.

 

Quando é que sente que o seu pai tem importância política?

AMC – Teria nove anos quando foi ministro das Colónias, estava no quarto ano. E perguntaram-me: “O que é que o teu pai faz?”. E respondi de uma maneira assim superior (uma vergonha): “O meu pai é ministro” [risos]. Mas não me senti protegida.

MC – Há uma coisa que é importante marcar. O meu pai era uma pessoa de formação religiosa, que fez uma vida afirmando princípios autoritários. Mas nós fomos para um colégio que era dirigido pelo Dr. João de Deus Ramos. Ele e o meu avô tinham sido maçons. Tinham sido ambos activistas republicanos. E nós fomos educados no colégio destes senhores e não em qualquer outra escola. O meu pai achava óptimo. Nunca nos fez perguntas, o que mostra uma grande confiança dele no meu avô, que era recíproca.

 

Quando é que a política se intromete na vossa vida porque já tem esse peso na vida dele?

AMC – Eu tinha muito convites para embaixadas, essas coisas. A certa altura ele deixou de ser ministro da Presidência e eu disse: “Não fui convidada”. “Pois não, vais aprender que umas vezes és convidada e depois deixas de ser”. E aprendi. Foi importante, foi uma lição muito grande.

MC – Aprendemos isto cedo, embora sem grande consciência. O pai pedia-nos para ajudar quando chegava o Natal, o Ano Novo. As pessoas mandavam cartões de Boas Festas e aquilo era tudo respondido lá em casa, não havia secretariados. Nós já escrevíamos e fazíamos os envelopes. Ele dizia: “Este ano vão ver que é um ano mau... A vida política é assim”. De vez em quando toda a gente nos mandava cartões e depois deixava de mandar.

 

Como é que ele, intimamente, lidava com isso? Com estas oscilações entre ter poder, não ter poder.

MC – Com humor. Nesse tipo de coisas [cartões de Boas Festas] tinha um distanciamento enorme, não dava grande importância.

AMC – Ele confiava na minha mãe de uma maneira extraordinária, contava-lhe tudo o que se passava na política. Quando Salazar o afastou, sofreu bastante. Lembro-me de eles conversarem.

 

As tensões com Salazar: podia comentar em casa como estava zangado, magoado?

MC – Com a mãe sim, mas connosco não. Só muito depois é que passámos a ter conversas políticas abertas.

AMC – Mais tarde comentava as coisas políticas comigo. Com a mãe: às vezes via que estavam a conversar e afastava-me um bocadinho, mas começava por ouvir a conversa. Sabia que estava a contar o que sentia. Foi sempre admirador de Salazar e seguiu Salazar. Mas gostava de ter as suas dissidências. Não em relação a tudo. Penso que como um adolescente em relação aos seus pais, gosta de impor as suas ideias.

MC – Eu não interpreto assim.

 

Então como é que interpreta?

MC – O meu pai tinha um projecto de vida diferente do de Salazar. De vida e de tudo. E um projecto diferente para o país, embora com muitas afinidades. E queria afirmá-lo. Era uma pessoa a quem, se se punha um pé em cima, reagia. Também pensava que o regime político naquela altura era o melhor para o país.

AMC – Aí é que está.

MC – Não punha o regime em causa profundamente, mas pensava que havia caminhos diferentes. O meu pai tinha um projecto, que era uma coisa que Salazar tinha pouco.

 

Um das aspectos mais sublinhados quando se estuda o percurso de Marcello Caetano é a descoincidência em relação à história. Diz-se que chegou tarde ao poder, ou num momento que não era o certo. Ele achava que o país não estava preparado para o projecto que tinha desenhado?

MC – Não, não. O Salazar é que não estava. O momento em que o meu pai é ministro da Presidência teria sido o [certo] para dar uma orientação diferente à evolução do Estado Novo, e negociado diferentemente quanto à Guerra do Ultramar, que acabou por ser o condicionamento final.

 

As grandes diferenças em relação a Salazar tinham que ver sobretudo com a guerra de África? Quais eram os planos em que a diferença era mais notória?

MC – Era tudo o que era ser dinâmico e o que não era ser dinâmico. O Salazar achava que o dinamismo era perigoso. As pessoas agitavam-se muito. O meu pai, pelo contrário, achava que as sociedades tinham que ser dinâmicas. Tinham que se modernizar. O segundo Plano de Fomento, feito por ele, é um exemplo disso.

 

Como era o primeiro e o segundo planos?

MC – O primeiro plano era uma lista de obras públicas. O segundo plano é um projecto de desenvolvimento económico e social para o país. Com várias limitações, mas é ele que avança. Como é ele que avança com a televisão. Isso tudo, para o Salazar, eram esquisitices. Desenvolvimento, sim, no sentido das infra-estruturas, barragens, mas nada de concepções articuladas. Muitas coisas, quando é afastado, deixam de andar para a frente. Há outras que ficam, de qualquer maneira.

 

Qual é a sua opinião acerca disto?

AMC – O meu pai tinha projectos de desenvolvimento do país, cultural e socialmente. O Salazar, não sei porquê, parece que não pensava tanto nos pobres, no seu povo. Quem tivesse mais educação era incómodo. Porque põe as coisas em causa. O povo estava mantido assim com menos cultura.

MC – Não queria ser tão negativo para Salazar...

AMC – Sabe como é que o país ficou.

MC – Sei. A ideia de [Salazar] é que a educação das classes populares deveria ir acontecendo à medida que o país se ia desenvolvendo, para que os empregos fossem adequados.

AMC – Mas como o país não se ia desenvolvendo…

MC – Hoje dizemos que isto nunca foi razoável. E à luz do que sabemos hoje com certeza que não foi. Mas era a ideia que ele tinha. Se as pessoas estudam muito e não têm onde aplicar aquilo que estudam, tornam-se pessoas…

 

Insubordinadas, incómodas?

MC – São pessoas desajustadas.

 

Na vossa opinião, as grandes diferenças políticas entre o projecto político do vosso pai e o de Salazar assentam numa ideia de modernização do país. Na economia, na educação... É assim?

AMC – A parte social é muito importante.

MC – Em 68 é por onde ele pega. Educação, desenvolvimento e assistência social.

 

Porque é que isso não lhe fazia medo, como fazia medo a Salazar?

MC – Porque tinha família, talvez. Entre outras coisas. Teve um contacto constante com outras gerações.

AMC – Com os filhos, com os alunos.

MC – Isso levava-o a pensar que o país se desenvolveria se as pessoas tivessem mais habilitações, mais capacidade. Escreveu que uma das coisas que mataram a evolução do Estado Novo foi ter deixado o projecto educacional atrasado. É quando lança a reforma Veiga Simão, que [decorre] desta sua ideia de que é preciso que haja um projecto de educação para o país (que está muito atrasado em relação à Europa).

 

Nas eleições de 1958, se tivesse sido o candidato escolhido, o destino dele e do país teria sido muito diferente?

MC – Isso é o que eu digo.

AMC – Não sei. Nem acho que ele na altura pensasse isso.

 

Não?

AMC – O Miguel acha?

MC – Não quer dizer que ele alguma vez o tivesse dito, mas uma série de análises históricas levam a crer que ele pensava que havia um momento. E que Salazar estava a ficar ultrapassado. Tentou convencer Salazar a ser Presidente da República, e toda a gente diz que esperava que Salazar o convidasse para Presidente do Conselho.

AMC – Como ele nunca disse nem eu o senti…

 

Hoje, quando se analisa historicamente esse período, parece uma escolha óbvia. Porque é que a escolha foi Craveiro Lopes?

MC – Foi sempre conflituosa, essa situação. No período em que foi ministro da Presidência, 1956, 57, 58, começa a ser visto como alguém diferente. Há um discurso célebre que faz no congresso dos empresários sobre o desenvolvimento do país e as transformações que era preciso fazer. Anuncia várias coisas que levam os outros a pensar: “Se fosse este homem [o candidato], o país ia ter outro caminho”. Tal como sobre as colónias. Toma uma posição diferente daquela que foi tomada pelo Salazar. Circulou um papel..., não era oficial.

AMC – Mas está assinado.

 

Que papel?

MC – A certa altura houve uma reunião do conselho superior do Ultramar. O meu pai faz um parecer de que se devia caminhar mais depressa no sentido da autonomia das províncias ultramarinas.

AMC – Sempre numa ideia de novos Brasis, da Commonwealth.

MC – Era para ver se evitava... A descolonização já estava em marcha em todo o mundo. A Argélia era a última e acabou como acabou.

 

Ele temia, por causa da experiência argelina, dessa ferida que estava visível, que isso pudesse acontecer num curto espaço de tempo em Portugal?

AMC – Não era só ele, era toda a gente.

 

Mas ele estava no centro da decisão.

MC – A relação do meu pai com África é totalmente diferente da relação de Salazar com África. Para Salazar, África era uma abstracção. Era um império português, eram as províncias, mas nunca foi a África. Não conhecia as pessoas. Ouvia contar.

AMC – O nosso pai tinha ido como ministro das Colónias. E antes, muito antes.

MC – Como ministro, esteve lá quase seis meses. Depois voltou constantemente a Angola, Moçambique, Guiné. A grande preocupação dele, até ao fim, era o que ia acontecer aos colonos brancos que lá estavam. O que tinha acontecido nos outros países: os brancos, em geral, foram bastante mal tratados. Daí as tentativas de criar, não regimes sul-africanos (de vez em quando dizem que era isso, independências de domínio branco), mas autonomização das províncias. Tenta mais tarde criar o Estado de Angola, o Estado de Moçambique. Teve sempre a noção de que era preciso dar autonomia para que se pudessem criar condições para que ao países se desenvolvessem com as populações que tinham.

 

Tudo isso que dizem aponta num sentido de democracia? Aponta, não estou a dizer que seja. Como é que o vosso pai falava da democracia? A intenção dele era criar condições para que uma democracia fosse possível e plena?

AMC – O meu pai tinha uma frase: “As ditaduras são por natureza transitórias”. Os países têm uma ditadura, a seguir têm uma democracia. Mas depois ele não era democrata. E mesmo já no exílio ainda me escreve: “A democracia era uma coisa muito bonita, mas a prática é outra”. Duvidava imenso da democracia. Ou achava que era preciso as pessoas estarem mais avançadas culturalmente para serem capazes de democracia. Também não queria ser um ditador no modelo soviético. Não era esse ditador.

 

Ele não se olhava como um ditador...

MC – Era um regime autoritário de direita. Mas, de facto, não se considerava um ditador.

 

A terminologia é importante.

MC – Se for ler os livros de Direito Constitucional, de Ciência Política, ele nunca diz que a democracia é o sistema adequado para todos os países. Muito menos para países em vias de desenvolvimento e com partidos comunistas fortes (um partido comunista que fazia parte de uma Internacional e que, dizia, era um agente de um poder exterior actuando dentro do país). Isso depois justificava a existência de uma polícia política.

 

Justificava a existência da polícia política porque era preciso combater a besta vermelha (assim designada)?

MC – A subversão. Eram dois modelos de sociedade diferentes.

AMC – Achava que no mundo são precisos chefes, polícias. E são.

MC – Mas polícia política é diferente.

AMC – A CIA, não é polícia política, também?

 

Usavam-se então métodos diferentes daqueles que hoje, tanto quanto se sabe, a CIA usa.

MC – E a polícia política, cá, era legal. Nos outros países acabam por acontecer coisas piores. Já não comparo com o que aconteceu na União Soviética, foi muito pior, e também era legal.

AMC – Isso não desculpa. Eu não desculpo que existisse polícia política porque era legal.

MC – Não é isso. Dentro deste conceito que tinha, era legal. Tinha que defender uma sociedade contra outro conceito de sociedade.

 

Tiveram discussões sobre os limites de acção da polícia política, sobre o modelo democrático versus o modelo autoritário de direita?

MC – Mais tarde tive todas essas discussões com ele.

 

Depois da revolução, já nos últimos anos?

MC – Desde o período da reitoria [crise académica de 1961/62, quando Marcello era reitor] até 1970, 71.

 

Tinha abertura com ele para discutir isto?

MC – Nesse período tivemos muita abertura. Depois, quando foi a reeleição do Almirante [Américo] Thomaz, tivemos algum afastamento. Havia uma divergência de opinião sobre o que isso significava. Não era lá pelo Almirante Thomaz, que me era indiferente. O que significava era o fechar do regime outra vez. Eu podia perceber as razões, mas aquilo não ia levar a lado nenhum.

AMC – Também não sei, se ele fosse Presidente da República, e se tivesse outro Presidente do Conselho…

MC – Não sabemos. A política: não fazendo nada sabemos que não vai resultar. Fazendo alguma coisa, se calhar ainda resulta pior.

 

Como é que ele lidava com a sua divergência de opinião?

MC – No princípio, nos anos da juventude, da infância, não havia divergências. Mas havia da parte dele uma atitude de que nós, filhos, éramos responsáveis. E isso também era formalizado.

 

Responsáveis pelo vosso destino individual?

MC – Exacto.

AMC – Em casa era democrata [risos].

MC – Bom, não exageremos [risos].

AMC – Ah, eu acho que sim. Deu-nos uma liberdade de escolha e de pensamento. Fantástico. Não havia muitos pais que fizessem isso.

MC – Dava. Mas de vez em quando parava a conversa.

AMC – Podia parar a conversa, mas nós continuávamos a fazer o que queríamos.

MC – Ela continuava a fazer o que queria.

AMC – E você, não? Então você não fez a sua escolha política, na calma? O pai sempre achou que devia haver um chefe. Os povos precisam de chefes. Porque somos imaturos e precisamos de um pai.

MC – E [um povo] precisa de doutrinação. É verdade que as sociedades sem regras e sem normas não podem existir. Não vamos discutir quais é que são boas ou más. Isso aconteceu com todos os meus irmãos. Entrávamos na faculdade, chamava-nos e dizia: “Entraste na faculdade, está aqui a chave de casa, não te vou controlar as horas”. E não controlava.

AMC – E podiam fumar.

MC – Não, não.

AMC – Nem na faculdade podiam fumar?

MC – Nunca gostou que fumássemos. Não fumávamos em casa porque ele tinha asma. Quando já estava na faculdade, no segundo ano, convidaram-me para fazer parte da direcção da associação académica. Ia haver eleições e já havia mais do que uma lista. Umas mais à esquerda, outras mais à direita. Não havia nenhuma esquerda-esquerda, mas o centro-esquerda tinha alguns elementos conotados com o Partido Comunista, os compagnon de route. Convidaram-me para uma lista, e disse: “Não sei se o pai vê alguma problema em eu entrar nas eleições”. “Tu é que sabes, és responsável. Se achas que em consciência o deves fazer, fazes”.

 

E depois pedia contas?, tentava controlar?

MC – Nunca me veio pedir satisfações fosse do que fosse. Estive quatro anos na Associação Académica, em várias direcções. Uma delas não foi aprovada pela polícia política porque o nosso candidato à presidência tinha uma má ficha. Nós demitimo-nos em solidariedade para com ele.

 

Quem era esse candidato?

MC – O Rui Cabeçadas. Depois esteve em Argel e seguiu uma carreira política. Nunca o meu pai me fez qualquer reparo. Uma vez eu fazia parte da organização de um campeonato, que não o da Mocidade, o que dava reuniões no Técnico. Uma pessoa muito amiga lá de casa, o Baltazar Rebelo de Sousa, que era secretário de Estado da Educação, e que tinha toda a confiança connosco, chamou-me ao ministério e disse: “Sabemos muito bem que se reúnem no Técnico. Devias ter cuidado. Um dia pode haver qualquer coisa e é muito desagradável”. “Tenha paciência, não vejo que esteja a fazer nada de mal. O que estamos a fazer é positivo. Vamos continuar a fazer reuniões”. O meu pai sabia com certeza disto.

AMC – Ah, isto era tudo muito bem controlado! Estou a brincar. O Baltazar era um filho do meu pai. “Vai lá ver o que é que o pequeno está a fazer”.

 

Para ele não se esticar demasiado.

MC – Nunca me falou de nada. Nesse aspecto não posso dizer que me reprimia.

 

Fale-me das conversas políticas que tinham quando já era crescida e assumiu o papel de primeira-dama.

AMC – Voltando atrás. Estava a ouvir o Miguel e a pensar como fui apolitizada. Identifiquei-me imenso com a minha mãe. A nossa mãe era filha do poeta João de Barros, que era republicano e democrata.

MC – E que foi ministro da primeira República.

AMC – Por quem ela tinha uma admiração fabulosa. E depois, com o meu pai, seguiu-lhe os passos. Foi paixão. Nunca foi contra ele, pelo contrário. Uma vez o pai estaria doente e ela propôs-se fazer o discurso que ele tinha para fazer. Estava ao lado do seu marido.

MC – A família do meu avô não era católica. E a minha mãe converteu-se, não através do meu pai, mas de uma amiga. O religioso e o político têm muito a ver.

 

Têm?

AMC – Não diria.

MC – Para mim, teve.

 

Para o seu pai, tinha? Eram duas dimensões indissociáveis?

AMC – Eram duas dimensões diferentes. Podiam ser separadas. É evidente que uma pessoa com formação religiosa, tudo o que faz tem esse cunho. Mas não sei até que ponto o pai pensava na política à base de uma religião. E não sei até que ponto, por causa da religião, a mãe se aproximou do pai, da política do pai. Vejo mais que era por paixão. Ela admirava tanto o marido que o apoiava. Isto é como eu senti.

 

Porque é que se identificou com ela?

AMC – Identifiquei-me com ela porque viveu no meio de uma barreira. O pai [dela] de um lado, o marido do outro. A mãe nunca falava de política. Não nos expunha as suas ideias. Percebíamos que estava com o pai, mas também percebíamos que tinha uma admiração imensa pelo pai dela.

MC – E nós também, pelo avô. Toda a nossa vida foi feita dentro dessa relação.

AMC – Fiquei um bocadinho nesta de não escolher bem. Não sabia bem se seguiria o meu pai ou se seguiria a democracia do João Barros. A democracia para mim era o meu avô e o meu pai a conversarem todas as quartas-feiras.

MC – Essa é a imagem que a Ana Maria mais gosta de transmitir.

 

Isso é uma construção de agora ou naquela altura achava: “A democracia é isto”?

AMC – Não, foi sempre.

MC – Não dizíamos que era a democracia. Não usávamos esse conceito.

 

Quando é que passaram a usar a palavra democracia?

MC – Não sei. A relação do meu avô e do meu pai era extraordinária. Conversavam sobre pessoas conhecidas, o mundo internacional, livros e revistas. E isso durante a nossa infância e adolescência. Achávamos possível que pessoas que sabíamos que tinham perspectivas diferentes sobre a evolução do mundo fossem muito amigas e se dessem muito bem. Quando começámos a perceber que nem toda a gente se comportava assim, tivemos um choque.

AMC – Eu achava que a democracia era: as pessoas tinham as suas ideias, o grupo expunha as suas ideias, e depois chegava-se a um consenso final que era o mais equilibrado. Quando começou a democracia, era isso que sonhava. Depois apercebi-me da realidade, como o meu pai. É muito bonita a democracia, mas a realidade é diferente. Eu não tinha muita consciência política. Eles foram para a universidade, eu não fui. Andei a fazer uns cursozinhos para menina que ia casar. Depois a minha mãe adoece e fico em casa. E completamente ausente do mundo. Fui para a Escola Superior de Alcoitão com 26 anos, depois de a minha mãe estabilizar.

 

Vivia numa redoma?

AMC – Vivia.

MC – Não é bem, a Ana Maria tinha relação com amigos.

AMC – Dançava com os meninos que eram do Partido Comunista [risos]. Mas não tinha bem a noção disso. Mais tarde: “Ah, vocês eram do Partido Comunista?”

 

Já podem dizer quem eram os vossos amigos comunistas de então?

AMC – O José Fonseca e Costa. Ele diz que andou com vocês.

MC – Sim, no café do Saldanha, o Monte Branco. Houve muitas pessoas da minha geração que se aproximaram do Partido Comunista como única forma organizada [de resistência], mas não quer dizer que fossem, em termos doutrinários, comunistas.

AMC – O Pedro Ramos de Almeida. Era muito amigo do meu irmão.

 

Voltemos às conversas políticas que foi tendo com o seu pai depois de 68.

AMC – Até a minha mãe morrer, o meu pai ia sempre ao fim do dia contar-lhe a vida toda. Depois fiquei com o meu pai. Vocês iam jantar uma vez por semana, dar opiniões. Lembro-me de a PIDE nessa altura ter sido mais branda. Fez uma operação cosmética de nome.

MC – Fez uma legislação em que obrigava, teoricamente, a que estivesse um juiz presente nos interrogatórios.

AMC – Foram os meus irmãos que…

MC – Não, o pai já pensava isso.

AMC – Vocês ajudaram.

MC – Ele estava interessadíssimo em saber o que a nossa geração pensava.

AMC – E houve uma abertura. Os vossos amigos vinham da prisão e diziam que não havia torturas. Vinham contar que estava mais pacífica, a prisão. Até que houve uma altura em que voltaram a dizer: “Já há outra vez tortura”. Nessa altura o pai já não tinha muito poder sobre a PIDE.

 

Então quem é que mandava?

MC – Havia vários poderes.

AMC – E havia o problema de África e dos comunistas.

 

Mas se ele não tinha poder, quem é que tinha poder sobre a PIDE?

AMC – Era o director-geral da PIDE.

MC – Eu não penso assim. A PIDE tinha criado uma organização com grande autonomia, havia vários poderes cruzados. Começaram a ter maior autonomia porque a guerra de África e a reacção das universidades [lhes dava espaço para isso]. Vê-se no livro da Zita Seabra. Ela conta que no Partido Comunista disseram: “Esta é uma boa altura para acentuarmos as possibilidades de intervenção. Vamos fazer greves, provocações”. Isso criava um ambiente terrível para os que estavam a combater em África.

AMC – Isso tem a ver com a censura. O pai não proibia a censura para não pôr em causa os militares que iam para África.

MC – Tentou uma abertura que levou a que os vários conflitos que estavam abafados viessem para cima com mais força. Aí foi obrigado a fazer concessões. Os militares consideravam que a PIDE no Ultramar era fundamental porque era um sistema de informação importante. Cá consideravam que deviam reprimir, que a retaguarda devia estar sossegada. A retaguarda estar a pôr em causa os esforços dos que estão a combater?, não pode ser.

 

Sentiu-se, nesses últimos anos, encurralado? Passava essa ideia?

MC – A partir de 72, 73, sim.

AMC – Sim. O [Américo] Thomaz era uma facção diferente.

 

Tinha de lutar contra essa ala mais extremada?

MC – Com certeza. E [contra] os militares que se metem no meio. Começa a haver vários grupos em movimento. Sentiu-se entalado de vários lados. A certa altura começa a pôr o problema da sua substituição.

AMC – Pôs o seu lugar à disposição.

MC – Duas vezes.

AMC – O Spínola e o Costa Gomes, estava em casa quando foram lá. E eles não quiseram.

MC – “Vocês têm uma solução, eu vou pôr o lugar à disposição do Sr. Presidente da República. Agora, eu, por um lado, o chefe do Estado Maior pelo outro, é que não vamos a lado nenhum.”

 

Nunca pensou seriamente voltar para a universidade e, justamente porque se sentia mais e mais encurralado, sair? Sei que quando foi o golpe das Caldas alguém próximo lhe disse: “Volte para a universidade que é o seu lugar”.

MC – Ele pôs o lugar à disposição e quis demitir-se.

 

Isso é diferente de se demitir ou de sair.

AMC – Podia ter fechado a porta, mas não se faz. Era o comandante, afunda-se com o barco.

MC – O Thomaz ter-lhe-á dito: “Agora que chegámos a este ponto, nem um nem outro vai sair. E não lhe dou a demissão.” Se o meu pai tivesse outra maneira de ser podia dizer: “Vou-me embora, fique o senhor”. Mas isso não era a maneira de ser dele. Voltar para a universidade: não estava em causa.

AMC – Foi professor no Brasil [depois de 74 e até à sua morte].

 

A universidade: não falámos suficientemente dessa dimensão. Ele olhava-se mais do que tudo como um professor ou como um político?

MC – Como uma pessoa [risos].

AMC – Era um professor. Era paternalista, professoral.

 

Apesar dos anos e anos de política, continuava a olhar-se…

AMC – Mas ele na política também era professor.

MC – Era um doutrinador, fosse na política, fosse na universidade.

 

Ou na televisão, no Conversas em Família.

MC – Aí está, era a maneira de comunicar. Mesmo em rapaz, entra nas guerras todas para doutrinar. Para transmitir valores.

AMC – Gostava de ter a última palavra nas discussões. Tínhamos conversas com ele, ele explicava e pronto. Se não tivesse maneira de rebater, era a explicação dele que prevalecia.

Depois de a minha mãe morrer, pôs-me no lugar de confidente. Acabei por ouvir tudo o que se passava na política. Lembro-me de achar inconcebível a guerra de África. Havia gente que ia para África morrer, e tinha uma vida dificílima enquanto lá estava. E nós, na metrópole, vivíamos como se nada se passasse. Como é que podíamos viver sem nos lembrarmos disso? Tive imensos afilhados de guerra, escrevíamos imensas cartas. Conversava com o meu pai sobre isso. Podia dizer tudo o que pensasse. Ele também era contra a guerra, como qualquer pessoa normal. Queria solucionar África de uma forma diplomática.

MC – Atribuía muita importância à envolvente internacional.

AMC – Ele gostava de pensar que aos poucos os nativos podiam fazer parte dos governos.

 

Era sempre tudo “aos poucos”.

AMC – Não houve tempo. Eu punha em causa a censura, a PIDE, e ele ia-me explicando: “Não podemos permitir que os comunistas possam fazer um trabalho de subversão”. Fiz muito como a minha mãe, ficava pelo que ele me explicava. O Miguel foi sempre interveniente, eu nunca fui.

 

Nos anos em que foi presidente do conselho, a quem é que agradou?

AMC – Não agradava a ninguém. Estava tudo contra ele.

MC – Isso é no final.

AMC – Sim, o final foi trágico. Ele tinha aquele grupo que o seguia, e esses apoiaram-nos sempre.

 

Era importante para ele ser querido?, precisava disso?

AMC – Então não? Qualquer pessoa precisa.

MC – Era muito independente, mas gostava de saber que as pessoas estavam de acordo com ele. Fazia reuniões, já no governo, com os secretários de Estado, só para que pudessem dizer o que pensavam.

AMC – Era uma dimensão democrata em que as pessoas tinham que estar de acordo com ele [risos]! Eu faço o mesmo.

 

É democrata?

MC – Não [referindo-se à irmã, tom algo brincalhão].

AMC – Imaginava ser. Imagino que sou.

MC – Como directora do colégio, é muito autoritária.

AMC – Pergunto sempre a opinião à malta toda. Ainda hoje tive uma reunião em que disfarcei a votação e resolvi eu.

 

Pergunto também pela vossa confiança na democracia. Hoje, passados 40 anos sobre a revolução, são democratas?

AMC – Este é o modelo que temos que seguir.

 

A democracia é o melhor de todos os sistemas com excepção de todos os outros?

MC – Já não vou nessa. Não existe isso de democracia. Existem sistemas democráticos, uns são melhores que outros. Temos aí a prova disso. Posso dizer isso com a consciência tranquila porque andei metido em todas as bulhas para que isto funcionasse melhor. Olho para estes aparelhos políticos e para o que se está a passar agora e tenho alguma vergonha do meu país. Isto é democracia? É uma forma de democracia. É um sistema com que se criaram aparelhos políticos. As pessoas que lá estão não tiveram vida social nem profissional, e são promovidos a dirigir o meu país por pertencerem a umas organizações partidárias desde a juventude...

AMC – Eh, lá, falta pôr o nome.

MC – Todos eles. Posso pôr nome em qualquer um. Passos, Seguro.

AMC – Vamos pensar que o que está democratizado é a roubalheira [riso].

MC – A corrupção faz parte de todos os sistemas, sejam fechados ou abertos. Há vários sistemas democráticos, este não é o melhor.

 

Passaram muitos anos. Quando é que começaram a compreender completamente o vosso pai?

AMC – Sempre o compreendi. Com uma admiração imensa. Pelo jovem que aos 15 anos já escrevia em todos os jornais Que dava lições para pagar os estudos. Ainda hoje admiro esse rapaz, muito sozinho porque a mãe morreu…

MC – Tinha pai.

 

A orfandade foi uma grande marca.

MC – Foi muito mau. Mas nunca falou nisso. A Ana Maria esteve mais perto.

AMC – Sei que sofreu imenso.

 

O Miguel teve sempre a impressão de o compreender?

MC – Não. Umas vezes compreendia melhor, outras, compreendia pior. Mas nestes últimos 40 anos tenho procurado perceber porque é que ele foi assim.

 

Ocupa-se da organização do espólio. É contactado por muitos investigadores.

MC – Li muita coisa, muita correspondência. Isso foi-me permitindo perceber melhor uma série de coisas quanto à personalidade do meu pai, escolhas e decisões. Assim como os condicionamentos. Cada um de nós tem uma formação que não é totalmente elástica, a não ser quando não temos personalidade. A personalidade era bem definida e a formação de base explicava muita coisa.

AMC – Eu tive um percurso na vida que teve a ver com a psicanálise. O meu pai interessou-se imenso quando fui trabalhar para o Centro de Saúde Mental Infantil de Lisboa com o João dos Santos. Tenho uma carta dele depois do exílio a dizer: “Compreendo que as pessoas precisem de psicanálise e que seja importante para o seu equilíbrio. Eu consegui ter um equilíbrio sem precisar de psicanálise”.

 

Uma palavra para o vosso pai.

AMC – [prontamente] Um lutador.

MC – [pausa] Doutrinador. No fundo era isso que ele gostava de ser.

 

 

Publicado originalmente no Jornal de Negócios em 2014