Ana Pérez-Quiroga
No começo, é a casa?
Sim! Em paralelo com a vida. Nasci em Julho, pertenço ao signo de câncer, que está ligado a uma ideia de casa. Talvez isso explique alguma coisa. Sou muito social, gosto de estar na rua, sair, andar. Mas é com grande alegria que fico em casa dias e dias seguidos. O meu tempo máximo sem sair de casa, e não estando doente, é de 11 dias. Aconteceu no ano em que terminei a tese do mestrado, em 2007. Este ano, em que termino outra tese, preparo-me para bater este record.
Que objectos, vivências, pessoas melhor traduzem a ideia de casa?
Livros, revistas, muita informação da internet e da rádio, amigos e, indubitavelmente, a minha família. Gosto de reunir amigos à volta da mesa, partilhando a vida, num acto também performático. O meu quotidiano gira muito à volta das amizades. A família tem uma extrema importância, tendo sido sempre o grande pilar. Apesar de ter uma família pequena e os meus irmãos viverem em cidades diferentes (um em Viseu e outra em Oslo), existe um apoio e amor incondicional. A minha mãe, com quem falo todos os dias e várias vezes ao dia, apesar de vivermos na mesma cidade, foi sempre o meu suporte e é, sem dúvida, a pessoa mais importante da minha vida.
Qual é a primeira memória que tem associada a casa e ao estar em casa?
É uma lembrança de infância. Eu ocupava o tempo livre a construir arquitecturas (casas) pelos cantos da sala, que envolviam objectos e tecidos. Sempre usei os tecidos, até nas minhas brincadeiras. Hoje constato que esta memória está presente nas composições que crio na casa onde habito, como se de “naturezas mortas” (género pictórico) se tratasse.
Explique como é que um doutoramento, uma casa e uma vida se conjugam umbilicalmente.
Esta casa onde habito é o tema da tese. Tornei-a, e aos objectos que a compõe, numa instalação artística. No que toca à vivência na instalação-arte, os objectos serão funcionais e relativos a uma vida doméstica “normal”. São integrados num todo, numa dinâmica constante, tornando-se numa fusão entre a casa, a tese e a vida.
Na sua prática artística, a casa afirmou-se desde sempre como reduto primordial, ou foi-se impondo como território mítico?
Penso que a casa se foi afirmando como um território fundamental de onde parto e onde chego. A ideia de habitação e das coisas incorpora a mitologia que se desenvolve a partir do conceito de domesticidade. As viagens que faço integram também este tema da casa. Tento construir um habitat por onde passo, adquirindo objectos consoante o lugar onde estou. Em Paris, por exemplo, procurei criar um ambiente doméstico na residência artística. E personalizei alguns dos objectos que adquiri, como um tamborete/banco de esplanada tipicamente francês.
Os tecidos e as palavras são ferramentas para trabalhar os conceitos que a obcecam. Antes de mais, é assim, obsessão é uma palavra boa?
“Obsessão” é sem dúvida uma palavra que me pode definir. Como muitos artistas, sou obcecada pelo meu trabalho da mesma forma que não separo a arte e a vida. Os tecidos: sempre tive um enorme fascínio por este material. Este fascínio deve-se não só à plasticidade dos tecidos, mas também à cor e aos padrões. E são facilmente transportáveis! Leves. São um suporte extraordinário para trabalhar, contrariamente ao papel que se amachuca e onde os vincos permanecem sem possibilidade de os remover.
E porquê as palavras, que aparecem em néons e não só?
Quando eu olho para as letras desenhadas, vejo uma beleza nelas, per se. E, quando juntas em palavras, e depois em frases, adquirem um significado que é importante para dizer o que penso sobre o que me rodeia e que se reveste de uma ironia subtil.
Os néons trazem outra vibração.
Os néons permitem tornar a frase num acontecimento estético. O fenómeno da luz é tão impactante que me faz gostar de trabalhar com este material. A minha prática artística também passa por bordar frases sobre tecido. Habitualmente uso tecidos que não são primeiramente vocacionados para servir de suporte... Concretamente: panos para limpar o chão.
Que outros materiais e objectos são importantes para contar a sua história, as suas histórias?
É vital o uso da fotografia. Levo anos a documentar o dia a dia, fotografo os amigos, as exposições, a vida cultural em geral, mas também a cidade, as cidades em que vivo. Reuni tudo num projecto que se chama Self-Portrait of a Female Artist as Part of Society / Auto-Retrato da Artista enquanto Parte da Sociedade, que está ligado às minhas contas do Instagram, Blog e Twitter. Deste grande arquivo de imagens, vou fazer uns livros de viagem para a exposição na Villa Savoye (desenhada pelo Le Corbusier) perto de Paris em Junho (2016).
O que é que vai mostrar, especificamente?
A viagem que fiz em 2014 à Índia, a Chandigarh. Reuni cerca de 600 fotografias que focam a vida nesta cidade.
Retomando o tema dos objectos que contam a sua história...
Na verdade, todos os objectos são importantes, porque foram escolhidos por mim. O projecto Breviário do Quotidiano # 8 é paradigmático. É um projecto que tem como objectivo tornar a minha casa e os seus objectos numa instalação-arte, o que pressupõe a interacção com o espectador. Estes objectos comuns fazem parte do meu quotidiano e, à partida, não têm um valor económico elevado; foram, antes, seleccionados pelo seu valor estético. A forma como eu os coloco no espaço-casa constrói novos discursos estéticos.
Quais são as palavras nucleares?
Palavras nucleares: fusão arte/vida, quotidiano, comum ou banal, casa, domesticidade, habitat, viagem, estética, fazer listas, performance/happening/acção, momento presente.
Essas palavras radicam numa mitologia popular (orelhas de burro, por exemplo), na literatura, em artistas plásticos?
Utilizo muito o saber popular mas de forma crítica. Tento desconstruí-lo, numa tentativa de revelar a sua origem, de o pôr a cru. A linguagem está repleta de preconceitos, especialmente em relação à mulher. É classista e separatista e, sem dúvida, racial. A minha expectativa é que eu possa ser eficaz ao desmistificá-la, através da ironia. Na instalação “Antes morta que burra”, em que recorro às orelhas de burro, as frases que utilizo são idiomáticas; o garante do sentido é dado pela utilização da palavra burro. Frases como “um olho no burro e outro no cigano”, não podiam ser mais racistas!
Que lugar ocupa o desenho, o risco, a pulsão infantil de riscar no seu trabalho?
Não venho do desenho enquanto disciplina clássica. O que faço manifesta-se de forma diferente, rotineira e obsessiva, numa pulsão para criar listas diárias de tarefas a que chamei TO DO. Nelas escrevo como se de desenho se tratasse. Neste caso, a escrita é um desenho/esquema mental.
Quem é que é da sua família? Refiro-me à artística e não só. O que quiser dizer.
Tive a sorte de pertencer a uma geração artística que desde o início se evidenciou. A partir de uma exposição colectiva “Disseminações”, em 2000, na Culturgest, com curadoria de Pedro Lapa, na época director do Museu do Chiado. O João Pedro Vale, o Vasco Araújo e eu frequentávamos juntos o curso de Escultura da Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Nós e o Nuno Alexandre Ferreira, que não era da nossa Faculdade, éramos inseparáveis. Mais tarde, o grupo alargou-se à Marta Wengorovius e ao Rodrigo Oliveira.
Mas claro que a minha família artística é mais alargada. Duchamp é sem dúvida de onde parto, ao lado de Méret Oppenheim, Jac Leirner, Lourdes Castro, Helena Almeida, Félix Gonzalez-Torres.
E de outras disciplinas?
Cineastas como a Sofia Coppola e escritores de eleição como a Patricia Highsmith ou Edmund de Waal (que também é um ceramista famoso). Na música: Prince, Patty Smith e David Bowie, só para mencionar os que me ocorrem imediatamente.
Como é o projecto Breviário, de que já falou um pouco?
Desde 1998 que trabalho o tema “Quotidiano”, a que juntei uma outra ideia: “Breviário”. Este tema parte da minha ideia de fusão arte/vida. O que me interessa é a atenção dada ao momento presente, e por isso muitos dos meus trabalhos são reflexo de acontecimentos num determinado presente. A ideia do Breviário do Quotidiano é, grosso modo, juntar o que ocorre diariamente (“Quotidiano”) com a ideia de “Breviário” (a partir do seu significado de leitura habitual e predilecta, retirando-lhe a interpretação religiosa).
Esta conjugação de conceitos foi super difícil de traduzir para inglês, porque só é compreendida inteiramente pelas línguas latinas. Em inglês, foi traduzido para An Archive of Daily Life.
O que faz, então?
O que faço é compilar plasticamente acontecimentos presentes, como se de um livro se tratasse. Estes projectos são contínuos, estão sempre num processo de acumulação.
O primeiro Breviário do Quotidiano # 1, 1998 – 2016, começou por um conjunto de cinco mantas de avião (furtadas em diversas viagens e companhias aéreas); hoje conta com dezoito.
Em relação ao Breviário do Quotidiano # 2, 1998 – 2016, é um conjunto vasto de objectos banais furtados em locais ou acontecimentos que o protocolo artístico pressupõe: locais públicos, um acontecimento referente à arte (por exemplo, uma conversa, uma exposição). Esses objectos são souvenirs desses mesmos acontecimentos. Neste momento, o BQ#2 é composto por quatrocentos e oitenta e oito objectos.
O Breviário do Quotidiano mais recente, # 8, é o projecto da casa que podem visitar no site www.anaperezquirogahome.com. O conceito génese deste projecto é uma performatividade entre os objectos e quem interage com os mesmos.
Como é que a vida entre Lisboa e Xangai se fez? E porquê?
A primeira vez que fui ao Oriente, fui a Xangai, fiquei três meses, em 2008. Foi tão forte a emoção de estar rodeada de uma cultura tão diferente da minha que fiquei para todo o sempre apaixonada. Volto todos os anos e fico entre um mês e até três meses. Tenho amigos chineses, sobretudo uma grande amiga, e ocidentais, que foram ficando, o que é raro, porque é uma população que está sempre a alterar-se (ir e vir).
Como é que isto se reflectiu em quem é e no que faz?
Sinto que mudei a forma como reajo ao mundo. Se, por um lado, estou mais pragmática devido ao carácter prático e muito orientado para o dinheiro da cultura chinesa, por outro, caminho para uma maior introspecção e cuidado com o próximo. No campo artístico, o meu trabalho ganhou uma autonomia face a uma qualquer corrente artística dominante. Tenho uma felicidade imensa em pensar e produzir os meus trabalhos em Xangai, porque não sinto condicionantes exteriores.
Em 2015, ganhei uma Bolsa da Fundação Oriente, de três meses, na China. Para desenvolver um projecto relacionado com pintura sobre tecido. Escolhi uma aldeia nas montanhas da província de GuiZhou com grande concentração da etnia Miao. Fiquei na aldeia Tashi, que é habitada apenas por trinta e seis famílias. Fui recebida pela família Wu, permaneci dez dias. A pintura batik, feita pelos Miao, é uma técnica de desenho milenar; o desenho é feito com cera de abelha quente sobre tecido de algodão, e posteriormente tingido com tinta indigo por imersão.
O roubo de objectos, a que já aludiu: o que é que não se pode roubar? O que é que não lhe podem roubar?
Uma pergunta que refere a palavra roubo, como esta, faz-me sempre rir, porque o que sinto é um misto de provocação e embaraço ao tentar explicar como é construído este projecto artístico on going. É difícil explicar este protocolo artístico a pessoas do norte da Europa ou que tenham culturas muito diferentes da nossa. Os valores a que sujeitamos o espaço social, públicos, i.e., todos os espaços que não são privados, são de alguma forma tratados como “terra de ninguém”. Não temos uma cultura que nos faz apanhar os papéis/ lixo que está na rua, ainda hoje há quem cuspa e deite pastilhas para o chão.
E nos espaços públicos? E nos particulares?
Os espaços semiprivados (cafés, restaurantes, hotéis) são entendidos como uma zona híbrida, logo passível de se poder trazer connosco um souvenir. Nunca tiro nada em casas particulares! Nunca tiro nada de valor e que seja insubstituível! Nunca roubo nada a ninguém!
Entrevista realizada por escrito e propositadamente para este blog, em Maio de 2016.
O trabalho artístico de Ana Pérez-Quiroga está disponível nas seguintes plataformas digitais:
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