Anamar
Ela já foi Rita Hayworth no S. Luiz, no espectáculo Wild Cabaret. E a Marlene do Tejo, nas noites dos anos 80, em Lisboa. É cantora de repertórios improváveis. Tango, Fado, Música Popular Americana – toda a subversão por detrás. Não por acaso, um dos seus discos chama-se Transfado (2004). Trans-qualquer coisa. Transmutação vai bem com ela. E irreverência. Artista sincrética. Punk por acidente. Viajante por condição. Ana, Anamar desde a Suécia, onde viveu meses e foi vocalista da banda Odd Combo. Para trás a Lisboa da Avenida de Roma, um certo quadro burguês. Ana Almanave no primeiro disco a sério (1987), e A Canção do Mar nunca mais foi a mesma coisa.
Foi a mulher sedutora de Repórter X, de José Nascimento (pai dos seus filhos). Actriz de Joaquim Leitão. A porteira do Frágil. O ícone de um tempo. Uma da “querida pandilha dos anos 80”. Anamar, a pós-moderna.
Pela primeira vez, numa entrevista, disse a idade. Quase 50 anos. Tem um novo projecto, o das micro-esculturas murais Bloomart. A arquitectura de interiores é vivida como uma paixão resgatada. Falámos em casa. A casa que é por fora como ela é por dentro. Algo sumptuosa.
Horas de conversa à noite estão resumidas nas páginas seguintes. Quem foi ela, o que foi um tempo. O dominó que a levou até ao que hoje é.
A voz continua muito grave, talvez mais por causa dos cigarros. O discurso: muito embrulhado, complexo. Nada nela é linear. Mas quem disse que as pessoas e a vida são lineares?
O cabelo é o mesmo, mais Rita do que Marlene. (Lembram-se daquela cena do Gilda em que a Hayworth penteia o cabelo e levanta a cabeça? Estamos sempre à espera que Anamar faça uma coisa assim).
Taróloga eventual. A última vez que alguém a viu – tinham-nos dito – foi a dar consultas no Lux…
Um enigma, rosebud. Entrevistar Anamar é mais do que entrevistar Anamar. É saber de um tempo. Sabendo de uma pessoa singular.
Tem a noção de viver, ou de ter vivido, às avessas?
Não! Porquê?
Porque a sua vida, sobretudo no período rebelde, e nos anos 80, é uma vida que rompe com as convenções e que mostra o avesso.
Nunca tive o conceito do avesso e do direito. Não tenho essa visão do mundo. Romper com convenções, sim. Faz parte; a adolescência deve existir só mesmo para isso, e eu não sou excepção. Vivi sempre o mais às claras possível. À flor da pele.
Porque não havia necessidade de esconder?
Tenho muito pouco juízo de valor em mim. Sobre os outros, tenho vindo a aprender a não julgar, a ser mais inclusiva, a admitir que há uma verdade para todos. Atitude que toda a vida tive em relação a mim. Eu tinha direito a isso!, e não podia ser objecto de julgamento por parte de ninguém. Esse direito, sempre o vivi transparentemente. Isso exclui o julgamento, e o avesso e o direito. Pormenor: houve uma fase da minha vida em que achava as roupas mais bonitas do avesso que do direito.
Em que momento é que isso aconteceu? Dizia respeito a quê?
No final dos anos 70, ia bater no punk. Tinha mais conteúdo vestir um kilt ao contrário do que direito. O kilt do direito, eu vestia-o no colégio. Isso reportava-me para uma visão instituída.
Um dever ser?
Tive o privilégio, da parte dos meus pais, de não ter tido de corresponder a uma moral vigente. Tive-o da parte da família mais convencional, sim. O dever ser, até determinada altura, não fez mossa nenhuma na minha vida. Passou a fazer alguma quando, na expressão da minha individualidade, me confrontei com o facto de ela não ser síncrona com os deveres seres que me rodeavam. E começou todo o processo de teste. Até onde temos liberdade de ser no mundo em que estamos, na vida que vivemos? Esse teste, esse desafio, mantém-se.
Fale do processo que a fez reconhecer a sua individualidade, destacar as diferenças, demarcar o seu espaço, e reclamar para si a liberdade de viver a vida como a queria viver.
Não posso esquecer que houve dois marcos incríveis na minha infância que alimentaram essa vontade de ser. Uma conversa, em miúda, pequenina, com o meu pai, na qual questionei: “Afinal, quem manda em mim?”. O meu pai disse: “Quem manda em ti és tu. Mas até seres grande e saberes mandar, tenho de te ajudar”. Muito cedo devo ter achado que era grande o suficiente… [risos] A minha mãe deu-me constantemente meios para descobrir outras maneiras de estar na vida – ao nível da arte, da dança. Muito cedo percebi que havia mais do que o by the book. E cresci em Nova Iorque. Houve essa miscigenação de raiz.
Em que período esteve em Nova Iorque? Como é que isso se inscreveu na sua vida?
Fui para lá muito pequenina, regressei com seis anos. Os anos formativos foram vividos em Nova Iorque. A primeira memória que tenho da escola é de um menino chinês, um menino negro, um menino branco a correrem pelos corredores. Essa é a minha matriz. Os anos 80, para mim, não foram a descoberta disso. Tive a bênção de ter isso de berço.
Os anos 80 foram, então, um reencontro com essa memória, com essa diversidade e liberdade?
Essa memória matricial é tão forte que suscitou um confronto com um outro ambiente – que era Portugal nos anos 70. Foi o que aconteceu na adolescência. Comparativamente, era um horizonte muito fechado. Esse choque, melhor ou pior processado, levou-me a um conjunto de provocações, levou-me a acintosamente assumir uma rebeldia.
Cá fora, era um Portugal que tinha vivido a revolução há pouco, que vivia as convulsões do PREC.
Regressei de NY em 65/66. Mas fui para o Colégio Inglês, continuei a viver numa bolha. Entretanto foi o liceu. Entretanto os meus pais separaram-se. Entretanto houve o 25 de Abril. A pressão política que testemunhava longinquamente em casa, porque o meu pai era de esquerda, nunca a vivi na pele. Deixou de haver esse manto com o 25 de Abril. Mas o horizonte continuava fechado. Mas os juízos de valor continuavam rígidos. Mas a vida continuava pouca.
A vida continuava pouca?
Era como eu a sentia. A minha rebeldia: não diria que foi para provocar os outros, e muito menos para provocar quem gostava de mim (os meus pais, os meus avós). Foi esse sentimento de escassez de liberdade, foi o não sentir cumplicidade com o que nos rodeava. E não era a única. Havia tantos outros que acabámos por nos juntar e formar aquilo que hoje, historicamente, se chama o movimento dos anos 80.
Antes disso, viveu, como forma de rebelião, e para respirar um cosmopolitismo que não vivia aqui, o movimento punk.
Sim, mas o movimento punk vivi-o sobretudo lá fora. Uma das maneiras de respirar era sair frequentemente de Portugal. Até aos 20 e tal, entrei e saí constantemente. Para respirar outros ares e para me testar a mim própria.
Tinha a liberdade de sair. Porque tinha um mundo anterior que lhe dizia que era possível procurar isso lá fora? Porque tinha dinheiro para o fazer?
Não obrigatoriamente. Na nossa sede de descoberta e afirmação, contrariamos aqueles que nos passaram princípios, e que às tantas dizem: “Isso não! Acabe lá o curso superior. Não vai para não sei onde. E se vai, eu não pago”. Portanto, tive ajudas, com certeza, mas não posso dizer que saí porque tive dinheiro para o fazer. Essas saídas proporcionaram-me experiências de um radicalismo (ao nível da sobrevivência) que não tinha pensado viver alguma vez na vida.
Um exemplo.
[pausa] Pedir na rua. Miúda. Na sequência de uma dessas saídas. Mas também ser ajudada por desconhecidos que fizeram coisas extraordinárias por mim alguém, como se fossem meu pai, meu irmão, sei lá. Isto para dizer que entre cantar no Palace (uma referência da movida parisiense) e pedir na rua, é o 8 e o 80. Muito da minha adolescência foi o 8 e o 80. Na minha sede de saber até onde a vida crescia, ou quais eram os limites – se é que a vida tem limites – expus-me a esses limites.
Que limites se impôs? Ou não impôs? Que é um modo de perguntar até onde estava disposta a ir.
Havia limites que tinham que ver com os meus valores intrínsecos. Não eram limites físicos, não eram limites religiosos nem morais. Eram valores que decorriam de uma ética interior. Humanista. O que é mais sagrado para mim: a liberdade de ser o melhor de cada um. Isso impunha-me como limite não tolher, não dificultar, não atraiçoar o outro.
Pedir na rua: viveu-o como sendo uma coisa vexatória?
Era a sobrevivência de adolescentes numa cidade estrangeira. A experimentar o que era a vida, e se nos virávamos sozinho. Fomos pedir na rua. Why not? Quem és tu para não fazer isso?, princesa? Não foi: coitada de mim, eis-me a pedir na neve, sozinha, numa rua de Paris. Não era a Menina dos Fósforos. Confesso que me custou imenso isso. Nunca tinha estado daquele lado. Está-se sujeito a emoções como o desprezo, a ironia, a crítica. Tudo isso nos olhares. Um acto simples como pedir na rua pode suscitar emoções violentas.
De Paris seguiu para a Suécia, onde viveu uns meses, tanto quanto reza a biografia. Foi assim?
Se me perguntar pela sequência cronológica, não vai ser fácil... Sim, de Paris fui para a Suécia. Mas depois de regressar a Portugal, fui novamente para Paris. Entretanto tinha ido para Londres. Esse episódio – pedir na rua – foi da primeira vez, tinha 17, 18 anos. Interrompi o Conservatório para ir.
Havia algum medo? Era superior a isso, mais do que o desejo, a necessidade de sair?
De o desejo ser superior ao medo: em última análise, sim, porque eu ia. Tinha receios, tinha. De não me safar. Não tinha receio de ser atacada, roubada, de não dominar a língua, de não conseguir trabalhar. Tinha receio de não ter a estrutura psíquica, a maturidade nos momentos críticos, perante o desconhecido. Eu tinha uma lucidez que me permitia aferir a existência de riscos. Mais importante: era a necessidade de respirar. Até à altura da minha vida em que descobri, ou fui descobrindo, que respirar, ou se respira por dentro ou não vale a pena sair e andar à procura.
No Portugal dos anos 70, o discurso era dominado pelo político, estava-se colectivamente. Culturalmente, era um cenário engajado. O seu movimento, e o punk no qual se insere, são outra coisa.
O pouco que vivi do movimento punk nem foi cá. O movimento punk existiu. Os Minas e Armadilhas, os Faíscas, o Pedro Ayres [Magalhães], o Zé Pedro [dos Xutos e Pontapés]… Rapidamente se passou para o New Wave. Os Heróis do Mar já são New Wave. De onde eu vinha era do ambiente do jazz, das artes plásticas. Os centros eram os cafés. Alguém estudava para Medicina, alguém lia os Cahiers du Cinéma, alguém trazia um disco dos Clash. Tudo muito enquadrado. Uma certa intelligentsia reminiscente de uma França qualquer, ali condensada em três gatos pingados. O punk, que lá fora era violento, foi aqui assimilado mais do ponto de vista cultural do que social. À boa maneira portuguesa: suavemente.
Era um fenómeno muito localizado? Quem eram os que compunham o grupo?
A grande maioria de nós tinha um nível cultural médio/alto, exigências como tal. Punk puro e duro, não sei de nada em Portugal. Sei que nos ligou. Não sei se foi o punk, não sei se foi a New Wave – os rótulos são um mistério. O que nos ligou foi a necessidade de que a vida fosse mais ampla. Esse movimento, que não era o dominante, era o de pessoas que queriam mais ar, mais vida, mais possibilidade, mais tolerância perante a diferença, mais descobertas de outras formas de estar no mundo. Pouco ligados a um movimento colectivo mais político, mais engagé. Todos tínhamos uma noção messiânica de que também era importante trazer essa lufada de ar fresco. O “tudo é possível” para um ambiente estreito, como era o ambiente da altura. Não me identifico se disser: o movimento punk de que fez parte. Identifico-me se disser: o movimento dos almados.
O que são almados?
É uma expressão que o Agostinho da Silva (que é um ser que admiro profundamente) usava. Almados são as pessoas que têm a alma na boca. Que não queriam viver à margem dela. Alma essa que estava sequiosa de possibilidades. A forma como cada um escolheu descobrir essas possibilidades não se revelou sempre construtiva.
O que é que a música e os poetas fizeram por si nessa fase? Como é que a fizeram querer sair, estilhaçar-se contra o mundo.
Algo que me alimentava (além de escrever, desenhar, dançar, ler, essas coisas): a paixão pela mitologia. Devorava livros de heróis gregos. Não lia livros de quadradinhos, não lia Os Cinco, nada. O universo mítico foi o meu berço, em termos culturais e arquetípicos. Poetas, filmes, livros, estética: tudo tinha um sinal que hoje identifico como sendo bigger than life. Coisas que me obrigassem a transcender-me para as sentir. Coisas que me interpelassem para sentir mais além. Ao nível musical, as minhas grandes referências são as vozes. Que me arrepiam, que trazem o mundo nelas. Cabe aí o Leonard Cohen, mais do que a Joan Baez. Em vez dos Clash, eu preferia a Siouxsie & The Banshees nos anos 80. Em vez dos Beatles, eu preferia os The Doors, por causa da voz do Jim Morrison. Em vez de Pet Shop Boys, David Sylvian.
Uma figura da mitologia e um mito.
Atenas. O mito que me enfeitiça é a possibilidade de, dentro, vivermos mundos sublimes. Isso habita-me, é a minha casa. Essa utopia foi alimentada por essas visões e leituras. Se não a mantiver vida, uma parte de nós morre. E a vida volta a ser pouca.
Eu queria descobrir, eu queria construir, eu não queria rebentar com nada. Eu queria descobrir o que é que de genuíno trazia para esta vida.
É um modo de perguntar: quem sou eu, o que é valho, qual é a minha singularidade, qual é a minha cicatriz?
Que cicatriz é que deixo – é-me pouco relevante. É-me relevante abrir caminhos. Quem era eu antes de partir? Era alguém à procura do seu espaço, à descoberta do que tinha para fazer aqui. Era alguém que queria mais. Aquela que voltou não foi forçosamente alguém que encontrou mais. Foi alguém que se expôs às franjas limítrofes do que era aceitável, e que com isso ganhou experiência, vida, possibilidades. Nem sempre boas, mas que contribuíram para a pessoa que sou hoje, também.
Era determinante perceber qual era a sua forma de expressão? Uma coisa é ir, ter ousadia – pura experiência. Outra, é saber o que é que justifica esse movimento e como traduzi-lo.
O Rumi, um poeta sufi marcante para mim, hedonista e inspirado, escreveu sobre a liberdade de as pessoas se expressarem a paripasso de acordo com aquilo que são. De não ter que ser toda a vida cantora, toda a vida actriz, toda a vida arquitecta [de interiores]. Uma possibilidade multidisciplinar e de multi-expressão. Havia em mim a preocupação de saber como é que eu expressaria com qualidade aquilo que queria expressar. Sempre soube que jamais iria expressar uma única coisa.
Nunca pensou que teria uma profissão definida, mais ou menos rígida. Como o seu pai, que é médico.
Não. Dar-me-ia autorização para ser as coisas que quisesse ser. Desde que as fosse com qualidade, consistência e verdade. Com presunção, decidi cedo que ninguém me dava autorização para coisa nenhuma. Eu dava-me autorização – ponto. Sabia que queria criar nas artes do espectáculo. E queria ser arquitecta e tinha uma proximidade com as artes plásticas. Estive em ateliers da Cecília Menano, fiz cursos na [galeria] Quadro e na 111, e não sei o quê na [escola] António Arroio. Ao mesmo tempo que dançava. O território da auto-expressão, que implica exposição pública – ser cantora, actriz – era importante. Até porque sou um animal de palco, continuo a ser. Ao mesmo tempo, sabia que tinha um lado reservado, conceptual, cioso da sua privacidade, sensível à criação do Belo no anonimato.
Porque é que se sente tão confortável em palco? Porque está bem com o seu corpo? Estar no palco implica uma enorme desinibição?
É muito comum os animais de palco não serem pessoas desinibidas. O palco tem uma técnica, e depois é a chave que entra na fechadura. Ou as pessoas, naquele ambiente, se transcendem ou não. Há pessoas que no palco são capazes de uma série de possibilidades de que são incapazes na vida do dia a dia. Foi uma das fricções da minha vida pública. O que se passava no palco, enquanto performer, ficava-me colado à pele.
Uma indistinção do espaço público e privado? Não para si, mas para os outros.
Para mim também. Resta saber se a pessoa tem perfil para lidar com isso. E eu não tinha. Houve alturas em que a exposição pública foi uma agressão. Aquilo era um trabalho. Ser cantora, ser actriz, trazer para o palco uma certa modernidade e ousadia, era um trabalho. Pretendia que, ao sair do palco, a minha vida fosse a minha vida. Eu não queria estar sempre nas luzes da ribalta, eu precisava de resguardo. Basicamente sou uma solitária. Não sou histriónica.
Temia ser olhada como uma pessoa diletante? Por não se fixar, justamente, numa coisa apenas.
Diletante, nunca me passou pela cabeça. [Vivemos] num ambiente em que a especialização é confundida com prestígio, em que o valor da permanência num determinado rumo é superior ao das maravilhas da descoberta. Eu não correspondo a isso. Mas nunca quis corresponder. É tão distante de mim, da minha realidade, que não me toca. É como insultar-me e dizer-me que sou verde.
O que é que a tocava, no que as pessoas diziam?
Toca-nos tudo aquilo com que nos identificamos. Tocava-me que a Anamar fosse mais um ícone do que uma pessoa. Houve um impacto criado por uma figura que as pessoas identificavam comigo, que era eu, basicamente. Quase parece que essa figura ganhou vida para além de mim... E se cristalizou numa certa imagem referencial, que não era eu, mas a função que estava a desempenhar.
Um exemplo.
A porteira do Frágil. Tinha um briefing para ter uma atitude. Muito desagradável para quem não entrava, porreiríssima para quem lá estava dentro. Isso significa que na cabeça de algumas pessoas, eu era aquela porta fechada. Mais ou menos snob, mais ou menos provocatória, era um grande não. Há pessoas que me dizem: “Eu não podia contigo, porque tu barraste-me a porta de entrada no Frágil”. Isso existe! Tal como existe a Anamar cantora, com a sua provocação sensual, com a ousadia de pegar em fados não tendo uma voz de canário.
Como é que construiu o personagem Anamar?
Essa postura que construí, como defesa e distanciamento em relação ao que era vigente e ao meio fadista, também era uma função. Porque é que não podemos tocar no fado e cantá-lo como o Tom Waits o faria? Rasgá-lo como a Siouxsie rasgava. Porque é que não podemos pegar no glamour da Hanna Schygulla e pô-lo aqui no meio? Porque é que não podemos criar algo novo, sincrético de referências internacionais, contemporâneas? Porque é que não podemos pôr os corações do Minho, de 12 centímetros, nas orelhas, e cantar com uma bateria atrás? Havia uma certa dureza, uma certa solidão orgulhosa, uma certa provocação que ajudaram a criar essa imagem da Anamar. E um certo despudor no modo como me marimbava para esse julgamento.
Na definição desses personagens (a porteira, a cantora), esteve sozinha?
Que me lembre, criei um personagem na vida: a Anamar Lusa. A porteira do Frágil é uma função e foi uma imagem criada com o Manuel Reis. Mesmo na Anamar há inputs de tantas pessoas, tantas vivências… Mas não, não há um conselheiro, um mentor. De que modo é que eu, Ana, me relaciono com o personagem que foi criado na cabeça das pessoas? Nos anos subsequentes, deu para perceber que, fazendo eu o que fizesse, esse personagem era mais poderoso. Há uma impotência quase total para desmontar o mito. Foi a coisa menos sábia de se fazer. É como querer controlar o filme na cabeça dos outros – impossível. A única coisa que se me apresentou como inteligente e válida foi: como é que me relaciono com esse mito, como é que lido com ele, como é que o trabalho que vou fazendo interage com esse mito.
A verdade é que toda a vida quis ser bigger than life, quis ser esse personagem.
Eu quero viver plenamente a vida, e isso é viver bigger than life. Estou-me nas tintas para os personagens. Os mitos são estáticos. Há coisas que têm um impacto extraordinário, mas que são datadas. (Como se eu pusesse uma cassette do meu concerto no Rock Rendez Vous no vídeo...) São para ficar lá. Lá, têm um papel de referência. Esses mitos que se nos colam à pele, descontextualizados, são vazios. Posso actualizar-me a cada instante. Sou íntima de mim mesma, posso testemunhar isso. Mas as outras pessoas não.
Quando pensa na movida dos anos 80, pensa numa coisa extraordinária que aconteceu a uma geração?
Foi um privilégio ter vivido essa movida dos anos 80. Tal como acho que é um privilégio viver agora. Há uma movida de início de século XXI que não é tão estrilada, não é tanto de expressão exterior, mas que tem um poder… O território da cultura, do entretenimento, é dos mais influentes ao nível das mentalidades, dos comportamentos, das atitudes, do que cada um respira.
É possível pensar os anos 80 sem sex, drugs and rock and roll?
Sex, drugs and rock and roll foi mais anos 60, não foi? [riso]
A música era outra. Mas é possível falar daqueles anos sem falar disto?
É possível, mas é uma generalidade. Eu nunca vivi esse chavão todo. Vivi partes. A pandilha, a querida pandilha dos anos 80, o Pedro Cabrita Reis, o Julião Sarmento, o Manuel Reis, o Pedro Ayres, tantos, tantos. Houve uma condensação de carisma per capita, ali, muito forte. Cada um viveu isso à sua maneira. A herança dos anos 80 em cada um de nós é actualizada de maneira diferente. Mas fica ali uma referência brutal, parada no tempo. Isso é giro.
Esses que fomos?
Sim. Mas é só giro. Não tem presença significativa além de “esses que fomos”. Como outros, noutras épocas, abrimos umas portas. Os dos anos 90 já tinham essas abertas e abriram outras. Não tenho uma perspectiva geracional da vida. E encaro as coisas como um dominó. Aquele dominó fez sentido nos anos 80. O que estou a fazer agora é Anamar hoje. Tem graça falar da história, não mais do que graça.
O que é que o tarot tem a ver com isto? Lançava as cartas do tarot no Lux.
Há encontros na vida que são essenciais e estruturantes para fazermos um caminho de auto-descoberta. Recebi como presente de aniversário da minha mãe, aos 20 anos, uma consulta de astrologia. (A minha mãe é outra figura muito importante na minha vida) A astrologia é uma ferramenta de conhecimento extraordinária. Houve uma altura em que pratiquei profissionalmente, dei consultas, estudei afincadamente. A seguir à astrologia, veio o aprofundamento da linguagem do tarot. Foi nos anos 90. Não sou taróloga, não pratico profissionalmente. É uma linguagem facilitadora, como há outras. Como a própria Psicologia. O entendimento da dimensão invisível, que é a mais essencial na existência humana, é um objecto de estudo e de paixão muito grande para mim.
Dava consultas para ganhar dinheiro? Não se falou ainda da importância do dinheiro na sua vida. Se ele foi determinante. Se tolheu caminhos, se deu a possibilidade de fazer coisas.
Seja por uma ascendência de esquerda, seja por [provir de] uma família com algum dinheiro, seja por eu própria menosprezar a sua importância, até muito tarde achava que o dinheiro era mau, vil. Nunca estive comprometida com qualquer corrente política existente. Brincava dizendo que era monarco-anarquista. Mas partia dessa premissa: a de o dinheiro e o poder serem inimigos da liberdade e da solidariedade e das outras coisas todas que eram boas. Até aos 20 e muitos anos, mais até, tive uma relação disfuncional com essas duas energias – poder e dinheiro. Em si não são boas nem más, depende de como são usadas. Tive momentos de muito dinheiro e momentos de pouco dinheiro. E momentos de grande poder de intervenção e presença e momentos de total powerless, impotência. Houve uma aprendizagem, altos e baixos.
Havia um mínimo que estava adquirido. Uma rede, uma retaguarda. Isso fazia toda a diferença?
Estaria a ser ingrata se dissesse que não tinha retaguarda. Mas vivia como se não tivesse. Até por uma questão de orgulho. Então a miúda é rebelde e vem agora pedir batatinhas?, nem pensar! Mais do que o orgulho: era uma questão de validação pessoal. Eu tinha de ser capaz. De me responsabilizar pelo pacote todo. Sou uma self-made-woman, com uma estrutura de apoio (família, amigos, virtuosos acasos); mas há um sentimento de total responsabilização pelo bom e pelo mau que me acontece. Quando se tem filhos a questão do dinheiro coloca-se, a questão de um determinado nível de vida coloca-se. De gémeos, separada do pai e com uma realidade de artista que é flutuante. O Alcântara Café, o Frágil (a dada altura) [onde era relações públicas], tinham muito que ver com isto: que base económica existia para proporcionar um bem estar a mim e aos meus.
Que idade têm os seus filhos?
Vão fazer 21 daqui a bocadinho.
Por que nome responde hoje? Anamar é a cantora e actriz, a personagem dos anos 80. Mas se vai ao café, ao banco, à escola dos filhos, é quem?
À conta de uma vontade de anonimato, e da necessidade um tempo de resguardo – que terminou; de outro modo não estaríamos aqui a conversar – sinto-me agora num tempo em que a exposição ou não-exposição fazem parte da minha vida. Foi um tempo que coincidiu com uma opção de fundo em termos profissionais; entendi abraçar a minha paixão primeira, que era a arquitectura. Estive a estudar e a trabalhar em arquitectura e design de interiores, coisa que ainda faço. Já se passa há mais de uma década. Decidi usar o meu nome de família. Concomitantemente saiu o disco Transfado, houve concertos. Digamos que na minha profissão secreta, aquela que não estava sujeita a exposição, dava pelo nome Ana de Brito. Era frequente as pessoas confrontarem-me… “A sua cara não me é estranha”. E terminei com isso. Assumi o Anamar.
De momento está envolvida no projecto Bloomart. Porque é que decidiu fazer estas peças, micro-esculturas que parecem jóias?
É um projecto criado por mim e pela Telma Teixeira da Silva. São esculturas murais que encerram um tesouro lá dentro. Anéis. É uma obra de arte que tem várias camadas de criação (podia ter tintas, texturas, diversos materiais). Tem; e inclui uma obra realizada por outrem; são anéis com história, adquiridos por todo o mundo. O anel é um símbolo de ligação, um elo.
É a ideia da cadeia?
É a ideia do sem fim, da relação, da união, da celebração, do objecto mágico. [Os anéis] foram escolhidos pela história que encerram ou por serem um objecto único, referencial. Foi criado um acervo ao longo dos anos. Incluindo-os numa obra de arte, foi-lhes dada uma nova vida.
A forma esférica, a textura, apontam quase taxativamente para o “rosebud” de Orson Welles, para a decifração inaugural, a quintessência.
Isso está na génese da criação destas obras. São filmes, estas Bloomart, reportando sempre ao inaugural e ao essencial. Há uma banda sonora própria para elas, há uma plasticidade para elas. Há metais exactos para passar determinada energia. Há uma presença cromática com determinado efeito. É possível entrar dentro daquela obra de arte e interagir com ela. Em breve vamos fazer uma exposição das peças, num sítio de referência. Mas de momento não posso acrescentar detalhes mais concretos.
Chamavam-lhe Marlene do Tejo. Marlene, a mais misteriosa das actrizes.
Marlene do Tejo… Dama da Noite… Essas coisas. Não sou nada disso. Sou brincalhona, espontânea. Sou uma tipa mental, brinco muito com as ideias, as imagens, e danço e exponho-me. Não me passa pela cabeça fazer uma franja e um penteado não sei o quê para ficar com um ar misterioso. Ou olhar penetrantemente para um objecto para ficar não sei que mais. Não me passa pela cabeça a gestão do claro-escuro.
Tudo seria diferente na sua vida se não fosse bonita?
Mais do que bonita, acho que sou uma mulher feia-bonita (o meu segundo LP chamava-se Feia Bonita). Não tenho uma beleza tipo estampa, é bela todos os dias – nada disso. Há um carisma qualquer que me envolve. Uma energia. Admito que seja responsável por esse conjunto de títulos e medalhas [riso]. Honestamente, não faço por isso. Há outra componente que pode alimentar esse lado misterioso ou sensual: sou uma esteta por natureza, a começar por mim. Gosto de me sentir bem com a roupa que visto, adoro botas; gosto de me sentir bem com o meu corpo. Essa relação sensual começa e acaba comigo. (Excepto em cima de um palco.) Não é para ter um impacto no exterior que me penteio. Ando quase sempre desmaquilhada.
Que idade tem?
49. Há uma juventude que, no meu caso, será eterna. Juventude cá dentro. Free spirit. Neste momento sinto-me sem idade. Sinto-me mais livre dentro de mim agora do que quando tinha 20 anos. Mais capaz de ser eu própria. Porque me habita uma paz que era impossível sentir com aquela sofreguidão. O que veio substituir uma vontade de experienciar e puxar ao limite as possibilidades da existência foi uma alegria imensa. Passamos a ser donos de nós próprios. Ter um veículo físico que permita viver isso plenamente, por dentro e por fora, é importante. O confronto com a acção do tempo: é mais determinante para as mulheres que foram consideradas bonitas, ou ícones. Como é que isso se processa? Não sei. Estou a aprender.
Publicado originalmente no Público em 2010