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Anabela Mota Ribeiro

António Alçada Baptista

01.12.20

Um escritor que afirma que a escrita não é a sua razão de viver, mas o inverso. Que apostou numa aventura editorial e perdeu (dinheiro), que é advogado mas a quem a razão não satisfaz, que foi formado nos valores do trabalho mas que se considera de uma preguiça pura. Um escritor que passa por ser um sedutor inveterado, e percebe-se porquê.

À entrada da casa floresce uma viçosa buganvília. Em frente, um dos filhos, mais uma filha e uma nora e uma neta, reviram as sardinhas que tostam sobre as brasas, ao sol. A casa é branca, com as portas e os caixilhos pintados de um azul forte, que vai bem com o céu. A terra chama-se Vila Nova do Coito. A casa de António Alçada Baptista e da sua tribo fica mesmo ali.

Quando nos sentámos para as sardinhas, já sabíamos que a casa fora encontrada em ruínas e recuperada na persistência e na dedicação dos anos. Numa primeira casa mora um filho, numa segunda mora outra e na terceira, a grande casa, propriamente dita, estabelece-se toda a comandita nas férias de verão e nos demais dias que lhes aprouverem. Ao fim, acompanhando-nos ao portão, António confessava: «Ando a ver se ganho coragem para viver cá todos os dias».

É lá que escreve, no remanso das tardes, num escritório só seu e atulhado de coisas que são só suas e que são a sua vida: livros, livros, fotografias, fotografias. Há uma secretária, um velho processador de texto, um cinzeiro pejado de cigarros inacabados e uma cama transformada em divã, ladeada de almofadas.

Vista a casa, sentámo-nos enfim para as sardinhas. Maria José, com quem casou há tantos anos que parecem não ter conta, está ao seu lado. A restante trupe reborda a mesa grande da cozinha. Ele, à cabeceira, levanta-se para os pimentos, as batatas, o vinho. E depois sentou-se, para conversar.

António Alçada Baptista tem um novo livro chamado «O tecido do Outono». Como será fácil de constatar, não precisaríamos de pretextos para pôr a escrita em dia.

 

Há pouco dizia que os seus livros só ficariam até à geração dos seus netos.

Pois. Eu era muito amigo do Alexandre O’Neill. Uma vez estávamos a conversar sobre a razão porque éramos tão amigos, e ele dizia: «É porque a gente não se leva a sério». Tenho consciência de duas coisas. Primeiro, a escrita não é o mais importante. Muitos escritores dizem: «A escrita é a minha razão de viver». Eu digo: «Viver é a minha razão de escrever». A vida interessa-me muito mais que a escrita. Segundo, em cada geração vão três, quatro escritores para a História da Literatura. No tempo do Eça, havia o Teixeira de Vasconcelos, o João Grave, o Abel Botelho, pessoas de quem ninguém fala. Ora, na minha geração já tive o Vitorino Nemésio, o Jorge de Sena, o Vergílio [Ferreira].

 

Não gostaria de pertencer a esse lote?

Não é a minha preocupação. Não trabalho para o futuro.

 

Então escreve porquê, o que é que motiva a sua escrita?

A escrita é um meio de investigação. A Salette Tavares, um tempo antes de morrer, disse numa entrevista: «A minha mão direita sabe muito mais do que eu».

 

Como se a escrita fosse uma sistematização?

É uma descoberta. A minha escrita é muito comunicante. Isso interessa-me. A gente tem de ter uma razão qualquer.

 

Tem?

Tem de ter um destino. Acho que é pela escrita que posso talvez comunicar alguma coisa daquilo que me interessa.

 

Há aqui dois planos: o da sua escrita na relação com os outros, e o da escrita na relação consigo e no que ela representa para si.

Uma vez estava a conversar no Brasil e alguém citou o Sartre, «O Inferno são os outros»; o Millôr Fernandes, que é muito meu amigo, disse: «Sim, sim, mas o céu também». Por mais que nos custe, não somos nada sem os outros.

 

O psicanalista Carlos Amaral Dias tinha um programa de rádio chamado «O Inferno somos nós».

Isso é outro aspecto. As pessoas, à medida que mais se valorizam, mais se angustiam e se queixam. Fui dando conta de uma sociedade que está cada vez mais queixosa e vive cada vez melhor.

 

A lamúria não é um dos sinais mais evidentes deste fim de século?

Devíamos ter consciência de que somos privilegiados. Já que se fala em globalização; a menina não é mulher no Irão, não vive em Angola no meio da Guerra, não vive na China ou na Coreia do Norte. Tenho bem consciência disto, além das coisas mais próximas: tenho muitos filhos, muitos netos, não tenho uma doença grave. Se me pusesse a lamentar fosse do que fosse, era escandaloso.

 

Estava a pensar no desfasamento entre aquilo que se sabe e se sente. Essas não são as coisas que sabe e independentemente dessas não há outras que sente?

Não lhe vou esconder que tenho as minhas depressões, que são de origem puramente física. Os médicos dizem que as minhas depressões são exógenas. Ou seja, não tenho motivos interiores para estar deprimido; é qualquer coisa química que me falta.

 

Nessas alturas toma substâncias que compensam a ausência?

Tomo, e depois passa. As minhas pequenas depressões foram verdadeiras metamorfoses: passei de lagarta a crisálida através do escuro do túnel. Fui-me libertando através de depressões que fui tendo.

 

A primeira grande depressão foi a dos 40 anos que o atirou para a escrita?

A primeira grande depressão de que tomei consciência – e é possível que tivesse tido algumas antes – foi essa, e daí comecei a escrever.

 

Com esta distância continua a achar que as razões eram todas exógenas?
Continuo. Como dizia o Jorge Amado, «A vida deu-me mais do que pedi e mereci». Dentro do que é ser humano, das suas vicissitudes e circunstâncias, de que é que me posso queixar? Portanto, faz-me muita confusão que as pessoas quanto melhor vivam mais se queixem. Não imagina o que era a pobreza quando era pequeno, os tipos com quem andava na escola, descalços, na Covilhã. Eu era dos poucos calçados. A sociedade nessa época não se queixava tanto como os filhos desses, que têm automóveis e não sei o quê.

 

A inveja não é um dos motores da lamúria? Por se saber e desejar o que o vizinho tem.

Não sei se será o motor. Existe um fundo de ressentimento horrível nas pessoas deste tempo, que nascem muito carenciadas de bens e de afectos. Isso depois tem de se manifestar numa certa inveja, numa necessidade de competir. Felizmente sinto-me fora disso.

 

Nunca competiu?

Não.

 

É espantoso sabendo das pessoas maravilhosas que conheceu e com quem privou. O Borges, por exemplo, não sentiu inveja do Borges?

Nenhuma. O Borges, com quem me dei muito bem, humanamente tinha muita coisa a dizer. Eu não queria a vida, a relação dele com os outros; aquele casamento e o divórcio. Ele casou um bocado de repente.

 

Com a rapariga jovem, no fim da vida?

Não. Quando casou aos 68 anos e esteve um ano e meio casado. Sabe como se separou? De manhã saiu para o trabalho e ela perguntou; «Que queres almoçar?», e ele disse «Cozido». À hora do almoço tocaram à porta e um advogado e dois homens das mudanças vinham buscar-lhe umas coisas com uma ordem de separação. Humanamente, quando fazem uma coisa destas, fico muito impressionado. O Brecht dizia e é verdade, «A grande obra de arte é a nossa vida».

 

Admira menos o Borges por causa desse ou de outros incidentes pessoais? Consegue fazer a destrinça entre o artista e o homem?

Consigo. O Jorge Amado, quando estava bom, valia tanto como a obra dele; humanamente era óptimo.

 

Preferia não ter conhecido o Borges? Não há pessoas que é melhor que permaneçam numa esfera inacessível para que fiquem tal qual as imaginamos e não como realmente são?

Não tenho essa ideia. A complexidade é muito importante no ser humano. Conheci pessoas muito generosas, mas que tinham, enfim, os seus defeitos, as suas fragilidades. Sinto que hoje tenho integradas as minhas fragilidades. O Sousa Tavares perguntou-me porque é que eu não tinha um inimigo. Não tenho porque me dá muito trabalho. Não posso pensar que vou gastar parte da minha energia, que me faz tanta falta, a zangar-me.

 

O que é que faz à raiva e aos maus sentimentos?

Deixo cair, não tenho. A própria discussão não me interessa. Não acredito que da discussão nasça a luz. Nunca aprendi nada a discutir, e sempre aderi ao que as pessoas me dizem com um espírito de afecto e comunhão. O Vitorino Nemésio era um homem com quem só era possível uma relação afectuosa. Essas pessoas é que me marcam.

 

Essa opção é-lhe natural ou e uma construção que escolheu para si?

Fui muito assim. As razões porque fui assim, é que me interrogo muito. Este meu feitio não sei se começou pelo medo que tinha dos outros. Era um menino muito tímido e medroso. Quando não somos capazes de conquistar, seduzimos. Começo a pensar se a minha relação com o mundo não veio de certos defeitos que se transformaram em virtudes.

 

Como essa suposta fraqueza ou vulnerabilidade.

Isso foi uma coisa que integrei, com grande gosto. A razão porque às vezes me exponho muito, e porque fui educado na moral do super-homem. Os grandes heróis que aprendi na escola foram o Afonso de Albuquerque, o Napoleão, o Alexandre. Não me dei conta que paralelamente havia pessoas fabulosas com aquilo que chamo valores culturais femininos. O S. Francisco de Assis, O Gandhi, tanta gente. O meu tempo, como ainda este tempo, foi muito marcado pelo poder.

 

No seu tempo a acepção do poder era diferente. Hoje a conquista é muito mais desenfreada, mas parte também das mulheres.

A coisa mais importante que vivi foi a entrada da mulher na História. Como é que ela entrou? Em grande parte, por uma tentativa de masculinização, isto é, conquista de poder. A Françoise Giroud disse que só haverá igualdade entre homem e mulher quando mulheres medíocres ocuparem cargos de responsabilidade. Por outro lado, este equívoco da mulher e da política; a política é hoje urna coisa tão pobre e redutora que a mulher não se sujeita a ter esse universo. Há um universo muito mais interessante e poderoso, que é o universo feminino.

 

O universo dos afectos?

Pois evidente, esse.

 

Que é também o seu universo.

Hoje tenho consciência disso, Comecei por cair na armadilha da razão, que não consigo pôr de parte. Está sempre presente um bocadinho de razão a estragar-me a vida. E depois comecei a ver que havia coisas muito mais importantes, A relação que tenho com os meus filhos, por exemplo.

 

Foi com certeza um pai diferente dos primeiros e dos últimos filhos.

Aos 30 anos deu-se uma grande modificação na minha vida. Até aí, fazia o que via fazer. Tinha a cultura da minha tribo, percebe?, (que aliás nos introduz na humanidade). Se não pomos em questão a cultura da tribo, o mundo não progride. O que aconteceu comigo foi que quando me comecei a interrogar já tinha seis filhos. Casei aos 23 e aos 30 tinha seis filhos.

 

Como escolheu a sua mulher?

Como acontecia naquele tempo: a gente encontrava-se, conhecia-se. Mas havia sempre uma barreira que era feita pelos costumes e que nos impedia de ir ao fundo de nós, de saber o que somos. Felizmente casei com uma mulher da minha educação, foi muito importante por causa da convivência que íamos ter.

 

Que círculos frequentava? Como é que as pessoas da sua tribo se conheciam e se davam?

Quando tinha a sua idade eram 2000 pessoas em Lisboa que compravam os livros, que iam aos concertos, que apreciavam o cinema. Tudo se passava entre 2000 pessoas condenadas a conhecerem-se. Mesmo a nível mundial, íamos ao Brasil e perguntávamos «Tu conheces o fulano?»: em França também, «Conheces um português?», Uns tempos depois do 25 de Abril, começou a haver turismo político. Uma vez apareceu-me um tipo óptimo, professor na Universidade de Turim, que, mais tarde soube pelos jornais, era nada mais nada menos, que o homem das Brigadas Revolucionárias

 

O mundo era pequeno e você conheceu pessoas extraordinárias.

Conheci o Lanza Del Vasto, por exemplo, que foi discípulo do Gandhi. Sendo uma pessoa extraordinária, já estou tão habituado a mim que não me trocava por ninguém. Não é porque seja melhor ou pior, é porque sou eu, e o mais importante é a minha história. O pavor que tenho da massificação é esse: a massificação destrói a história pessoal, que é uma coisa onde está baseada a filosofia e a religião do Ocidente.

 

Tem uma visão fatalista do virar do milénio?

Não. Tenho a consciência de que o tempo é artificial. Estou muito longe das aspirações da maioria das pessoas. Quando éramos novos tudo começava pela conquista do poder. O poder era o grande instrumento. Isso acabou; foi o grande contributo do Hitler e do Estaline, o descrédito do poder.

 

Porque foi exercido de forma totalitária e execrável.

A gente hoje vê que é muito mais importante a participação que o poder. Aquilo a que chamam democracia é mais uma forma de participação. O que tornou Portugal diferente não foram os deputados (claro que isso era essencial); o que tem sido o motor da alteração do país é a revolução autárquica.

 

Ou seja, o que se passa na nossa terra e na nossa casa para lá do país.

É bom que a gente não viva de abstracções. Foi a coisa mais grave do meu tempo; a direita, a esquerda, tudo, viviam fora da realidade. A realidade era a mesma, as aspirações eram as mesmas. Antes do 25 de Abril vivíamos todos da mesma maneira. Só que os da esquerda assinávamos o Nouvel Observateur, os jornais franceses, líamos o Sartre. E os outros não. Mas cada um de nós, na mesma, procurava ter o seu automóvel e o seu frigorífico. O Freud dizia que o esquizofrénico cada vez mais terá de se contentar com palavras na medida em que está cada vez mais separado das coisas.

 

Vivemos de conceitos.

Pessoas que resolviam problemas através de frases. A seguir ao 25 de Abril, as pessoas, para resolverem o problema dos seus privilégios, diziam: «Eu fiz a minha opção de classe». Quer dizer, a palavra, como símbolo, funcionou muito. O Borges, no prefácio da «Rosa Profunda», diz: «A palavra teria começado por ser aquele símbolo mágico que a usura do tempo iria desgastar. Cabe aos poetas recuperar o valor das palavras». Recuperar o valor da palavra humana.

 

É por relativizar os conceitos de esquerda e de direita que teve amigos tão diferenciados como Marcello Caetano e Mário Soares?

Sim, sim. Também é preciso ver a natureza do diálogo que tinha com eles. Nunca abdiquei de mim próprio quando falava com o Marcello Caetano ou com um tipo do Partido Comunista. Para mim, a liberdade é o valor que nos resta. A liberdade, a tolerância, os afectos.

 

Ora justamente: a palavra liberdade não provocava uma alteração na sua relação com Marcello Caetano?

Quando foi o 25 de Abril, tinha uma posição vincadamente anti-comunista, e algumas pessoas minhas amigas que eram do Partido, quando falavam do Cunhal diziam: «É que tu não o conheces!, se o conhecesses ... », Eu respondia: «Vocês não me digam isso que era o que me diziam do Salazar». Conheci a Marcello Caetano porque foi meu professor de Direito Administrativo, e criei urna boa relação com ele.

Uma boa relação como? De certeza que o Marcello Caetano não criava relações de amizade com todos os seus alunos.

Eu nem era um aluno excepcional. As pessoas podiam dar-se; há pessoas melhores que outras para a gente conversar.

 

Quando foi seu professor ele tinha já responsabilidade política?

Estava já ligado ao Regime. O que achava graça nas conversas com ele, é que ele estava convencido que era um tipo liberal.

 

Mas ele acreditava realmente?

Isso é outra coisa. Eu é que via que ele não acreditava na liberdade. Uma coisa que era muito importante: eles não acreditavam na pessoa humana.

 

No seu livre arbítrio?

Os tipos da direita e da esquerda não acreditavam nas pessoas, no fundo. Há uma desconfiança global. Ainda não conseguimos aceitar o outro; o diferente foi sempre um grande problema no mundo. O diferente ou nos fascina ou nos aterroriza. Uma das coisas a que dou importância na «Peregrinação» do Fernão Mendes Pinto é a capacidade que teve de se deslumbrar com o diferente.

 

A sua relação com Marcello Caetano e com Mário Soares é quase mitificada como a da pessoa que consegue fazer a ponte entre a esquerda e a direita.

Dou-me com o Mário Soares. Primeiro devo-lhe muito como português; a liberdade em Portugal tem uma grande dívida para com ele. Mas não é essa a razão. Conhecemo-nos desde novos, andámos metidos nas políticas. De facto, o tipo tem uma intuição política invulgar. Não imagina o que foi difícil aos católicos entrarem na política. Mas como me disse uma vez um filho meu, «à geração do pai, o que lhes valeu foi o Salazar, porque ao menos tinham razões para lutar por qualquer coisa». A frase do Ortega y Gasset sobre Portugal é extraordinária. Em 43 perguntaram-lhe o que ele achava de Salazar, ele disse: «Bom para governar oito milhões de moribundos». Por mais que custe, é verdade. Isto da Oposição, eram meia dúzia de pessoas.

 

Fazia parte de tertúlias de cafés e de reuniões secretas?

Sim, entrava nesses grupos. Uma vez íamos fazer uma revolução, combinámos uma reunião. Fui com o Jorge de Sena e mais uns políticos, entre os quais o Sousa Tavares. Lembro-me perfeitamente, eu estava ali por dever; sabia que aquilo não ia dar nada, e não deu.

 

Qual era o seu papel no grupo?

A única coisa que fazia e as únicas atitudes que tomei foi para, de manhã, fazer a barba e olhar-me ao espelho sem me envergonhar de mim mesmo. Foi só isso. Sabia e sentia que vivia num estatuto sem liberdade, que as coisas que escrevíamos eram cortadas pela censura, que o Alexandre O'Neill quando quis ir a Paris a Pide não o deixou ir. Para quem tem uma consciência de liberdade, é inaceitável. A minha formação católica, apesar de a Igreja estar muito ligada ao Regime, também teve importância nisso, o Evangelho é um texto de liberdade.

 

Como fazia a gestão doméstica nesses tempos?

Aos meus filhos dei-lhes a maior liberdade. Acho que fui um pai presente, embora com interesses por fora, política e literatura e não sei quê. Tenho a impressão de que não falhei com os meus filhos.

 

Porque é que teve tantos filhos?

Porque a gente naquela altura tinha.

 

Tinha a ver com a ausência dos anticoncepcionais?

Anticoncepcionais havia muito pouco. Por outro lado, não desgosto de ter muitos filhos. Eles foram aparecendo. Faz parte da irresponsabilidade com que vivo. Problemas de dinheiro, não vivo obcecado com isso.

 

Tinha dinheiro para ter sete filhos?

Acabei por ter. Embora tenha perdido todo o meu dinheiro com a experiência da Livraria Moraes. Hoje acho que foi uma boa coisa, que curei as minhas culpabilidades. O despojamento é importante.

 

É mais difícil quando se tem e depois se perde.

Sempre tive um carro barato. O meu único luxo, que é esta casa, veio porque se vendeu um terreno da minha mãe na Covilhã e tive algum dinheiro. De resto, nunca tive assim muito.

 

Que memórias é que ainda tem da Covilhã?

As da infância. Nós estamos sempre a nascer, como os rios, não é? Outro dia numa conferência na Universidade da Covilhã, lembrei que quando estava na Faculdade éramos 13. Hoje a Universidade da Covilhã tem 4000 alunos. Já é uma outra terra. Mas o meu imaginário de infância está todo ligado à Covilhã.

 

Foi um imaginário povoado de mulheres?

Sim, tiveram muita importância na minha vida. Eram as avós, as tias, as criadas velhas. Os pais eram a autoridade; não havia ternura da mãe e do pai.

 

A sua mãe não o encheu de mimos?

Não. O meu pai, que era uma pessoa de grande qualidade humana, tinha essa impossibilidade. Os pais não afagavam um filho.

 

É uma imagem marcadamente masculina. As mães sempre foram mais doces.

A minha mãe era um bocado autoritária. Mas as tias solteiras e as criadas velhas, a única vez que tinham um corpo nu era o de uma criança. Havia ali uma onda de ternura que foi muito importante. Também não sei se isto não serão construções da minha memória. A minha memória acabou por ser muito selectiva.

 

O que quer isso dizer?

Tive castigos, reacções duras (dos meus pais). Esqueci tudo isso.

 

Foi interno para o Colégio de Santo Tirso de castigo?

Íamos todos. Tinha nove anos. No colégio tinha um prefeito que era um sádico.

Não foi talhado para ser padre? Nas famílias da província havia sempre um tio padre.

Nem tanto. Os padres normalmente nunca eram das melhores famílias. A única maneira de promoção era ir para a seminário e fazer-se padre. Depois havia excepções, vocações. Os nossos pais, por mais católicos que fossem, não ficavam muito contentes por ver um filho ir para padre.

 

O que é que os seus pais queriam que fosse?

Tirei Direito. Na altura só se podia tirar Direito ou Medicina. O meu irmão tirou Arquitectura. Ninguém se formava em Económicas, em Letras.

 

As Letras destinavam-se às poucas meninas que tiravam cursos superiores. Teve vontade de as estudar?

Tinha, mas nunca pensei em tirar um curso de Letras. Talvez não tivesse coragem para formular isso. Quer dizer, tinha de ir para Direito ou para Medicina. Como não era capaz de ir para Medicina, porque nunca me entendi com a matemática nem com a química, fui para Direito com o qual não tenho rigorosamente nada que ver. E advoguei e ganhei dinheiro a advogar.

 

Foi o começo da sua vida? Foi assim que sustentou os seus filhos?

Aos 28, 29 fui de um irresponsabilidade total. Com o meu desejo de salvação do mundo, resolvi deixar de advogar e comprei uma editora para editar os livros de que gostava e que julgava que todas as pessoas estavam ansiosas que aparecessem Mas como só havia 200 ou 300 pessoas que compravam, acabei por gastar todo o dinheiro que tinha. Foi uma aventura que ainda durou seis anos, ainda deu para perder muito dinheiro.

 

É assim que olha para a aventura? Foi uma parte importante de si que se realizou ali.

Foi uma boa experiência, e, como digo, resolvi o problema dos meus privilégios. Fiquei curado das grandes culpabilidades que tinha em relação ao mundo.

 

Por ir para a escola calçado?

Sim, as culpabilidades dos filhos da burguesia.

 

Quando lhe perguntei se alguma vez esteve no caminho do sacerdócio, pensava também no seu sentido de dádiva e na relação com a transcendência, que é um tema essencial em si.

A razão não me satisfaz. Sou um ser inacabado e a ausência do mistério é um vazio que não posso preencher.

 

Nem com substâncias químicas. Desculpe, custa-me a acreditar que as suas depressões sejam todas exógenas.

Eles é que dizem.

 

Fez psicanálise? Tem na estante o Jung todo.

Não fiz nem gosto. Uma coisa é ler o Jung, outra é acreditar na psicanálise. O Jung era, sobretudo, um grande pensador. Uma das coisas que tenho contra a psicanálise é o facto de ser um factor de normalização, quando realmente precisamos é de fazer uma opção.

 

Na psicanálise também há um processo de relativização.

O facto de ter escrito e de haver sempre um lado autobiográfico... Como disse um amigo meu quando escrevi a «Peregrinação Interior», além dos direitos de autor, poupei o psicanalista. Acho que naturalmente me analisei e me exponho muito. Exactamente porque não tenho uma imagem de mim próprio que tenha de defender.

 

Todos temos coisas de que temos vergonha e que preferimos que os outros não saibam.

Os casos do amor e tudo isso, às pessoas com quem tenho intimidade, conto. Não os exponho porque acho que é um exibicionismo que não interessa.

 

Pode esclarecer se o que escreve é um retrato fiel de si ou um retrato ficcionado de si?

Há uma coisa em que sou um mau romancista: é na impossibilidade de escrever coisas que não tenha conseguido viver. Por outro lado também descrevo coisas da minha experiência imaginada. Se conheço alguém e imagino ter um romance com esse alguém, descrevo-o e não quer dizer que se tenha passado. No «Tia Susana, (meu amor)» toda a gente me perguntava quem era a Tia Susana. Aí senti, de facto, a frase do Flaubert, «Madame Bovary c'est moi».

 

O livro novo chama-se «O Tecido do Outono», uma fase que está a viver.

Chega-se a certa altura e muda-se. Eu até acho que mudei tarde. Até aos 67, 68 anos sentia-me na minha juventude.

 

Tinha a ver com pujança física?

E com a relação com o mundo. Vê-se no «Riso de Deus», que é uma visão optimista e gloriosa da vida.

 

É feliz?

Sou. Sou sobretudo sereno, que é o que procuro; felicidade, felicidade, não é possível.

 

Como é que deixou de se sentir jovem?

Foi depois de uma depressão. O feminino continua a ser extremamente importante, mas a natureza da minha relação com as mulheres não é a mesma de antigamente. Havia sempre um elemento de desejo; hoje a minha relação é muito mais tranquila.

 

Sente uma nostalgia desse tempo em que predominava o desejo?

Nunca predominou; era uma componente forte, sim. Devo dizer que não tenho nostalgia nenhuma.

 

Há uma passagem deste livro em que os personagens falam da transcendência, nus, depois do desejo saciado, Parece que em si o prazer do corpo é indissociável do prazer da discussão.

Temos que encontrar uma fórmula de as pessoas se amarem em que o corpo não possa ser posto de parte. No penúltimo capítulo, em que ele tem aquela namorada...

 

Jovem.

Sim, Quis dizer que isso não é impossível.

 

Aconteceu-lhe?

Oh, há coisas possíveis. Vivemos numa cultura em que o homem de uma certa idade é posto de fora dos jogos do corpo e do prazer. Realmente o que é importante é que sejamos capazes de olhar para o nosso Outono e de saber que é uma nova etapa. Há problemas chatos: um tipo ter atenção à tensão arterial, um tipo às vezes ter tonturas. A coisa que temo não é a morte, é a senilidade.

 

Diz no livro que o que mais teme é o ridículo e não se dar conta do ridículo.

O meu pai morreu cedo, aos 70, e conservou a sua lucidez; a minha mãe morreu aos 80 também lúcida. Mas tive um tio que a partir dos 80 quando estava em Lisboa julgava que estava na Covilhã, levantava-se às duas da manhã para ir para a quinta. Ainda agora estive com um grande amigo meu na Baía que está a antítese do que foi. Porque é que não o deixaram morrer quando aos 83 anos teve uma coisa no coração? Que é que interessa estar a viver assim?

 

Consegue transpor isso para si?

Não sei. O Kostler, a certa altura, estava com o Parkinson muito adiantado: tinha 74 anos e matou-se. Mas isto são teorias, não sei como vou viver uma coisa dessas.

 

Mesmo para o suicídio é preciso lucidez.

Em Inglaterra há um clube em que as pessoas se amparam e entusiasmam para fazer isso. A coisa que mais me aflige é deixar de ser eu. Tenho uma relação com a minha história pessoal muito forte: é o que fui, o que fiz, o que sou, percebe? Custa-me imaginar que vou viver com uma sombra de mim próprio, com pequenas referências de mim, Não sei, não julgue que é coisa que me preocupe assim...

 

Não pensa muito na morte, nem quando os da sua geração vão desaparecendo?

Tem graça que tenho tido uma conformação muito grande. Morreu o Zé Rabaça, que era um tipo com quem tinha uma relação muito forte; mas morreu lúcido. O David [Mourão Ferreira], o Zé Cardoso Pires. O que noto é que foi um tempo que acabou. Quando estou a falar consigo, que e uma menina muito pequena, sinto que há uma nova sociedade.

 

Eu tenho a idade da sua filha mais nova. Como está com ela, como está com esta nova sociedade?

Lindamente. Às vezes rio-me, outras vezes não me faz assim muita impressão. Ela tem uma relação extraordinariamente afectuosa comigo. De maneira que tenho a impressão de que não é aí que se vê. Onde vejo, por exemplo, é na cultura, A literatura de hoje não me diz muito. Ia a Paris e os pintores eram o Picasso, o Chagall, estavam lá todos. Os escritores o Malraux, o Camus, o Sartre, o Graham Greene, o Huxley.

 

Que coisas lê agora?

Leio esses tipos.

 

Na nova geração de escritores portugueses que coisas tem lido?

Leio os livros das minhas amigas. Li o da Margarida [Rebelo Pinto] e gostei, e gosto muito da prosa da Luís Beltrão. Porque me entretêm, me divertem. A leitura ou me diverte ou não me interessa; e a escrita, ou é um prazer ou não me interessa.

 

É assim que passa o tempo, a ler e a escrever?

Também não. Sou de uma preguiça pura. Fui educado no trabalho como valor. Na minha «Peregrinação Interior» escrevi que o trabalho não é um valor; trata-se de uma relação entre a nossa energia e a nossa subsistência, mas que o Protestantismo tinha criado a ética do trabalho e aquelas coisas. Uma vez fui à televisão com o Agostinho da Silva; o jornalista tinha lido o meu texto, virou-se para o Agostinho da Silva e perguntou: «O senhor está de acordo com isto?». E ele respondeu: «É claro que estou. Fala-se muito da Sida, o trabalho mata muito mais que a Sida».

 

Passou então a vida a trabalhar sem acreditar no trabalho.

Tive a sorte de ter trabalhos de que gostei muito. Adorei ser presidente do Instituto Nacional do Livro. Depois fui para a Fundação Oriente e gostei imenso daquilo. Fui administrador até aos 65 anos, depois reformei-me e tornei-me consultor.

 

Sente-se satisfeito da vida que teve?

Estou satisfeito, de uma maneira geral, da minha relação com o próximo (das pessoas com quem me dei e me dou). Não desgosto dos meus livros, acho que são testemunho de uma mentalidade e de uma época, e parece-me que fui o único que seguiu esse caminho.

 

As suas marcas são a transcendência e a mulher.

O amor e a transcendência. Por mais que faca, não consigo sair daqui. Os meus livros, não me envergonho deles, mas também mão acho que sejam assim uma coisa espectacular. Não tenho ambições literárias. O importante é que as pessoas que estão perto tenham uma boa imagem de mim, que não as magoe, não as fira.

 

Os seus filhos são todos da mesma mulher?

São. Talvez porque não acredite no casamento. Se fosse a casar com todas as mulheres que amei não tinha feito outra coisa. Uma coisa é o amor, outra é o casamento. O Denis de Rougemont diz, e com razão, que a crise do casamento começou quando os casamentos começaram a ser feitos por amor.

 

O seu foi um casamento por amor ou foi o tempo que esculpiu o amor?

Naquele tempo não havia casamentos por amor. Não pude definir bem, quando casei, o amor com a minha mulher. Foi uma coisa que só veio depois. Tive sorte porque somos duas pessoas educadas e civilizadas. O que tento dizer neste livro é que há necessidade de uma nova formulação da relação homem-mulher.

 

Só consegue desejar o que é belo?

Aquilo que é belo interiormente.

 

Está bem. Todas as fotografias afixadas são de mulheres belas.

De quem fui amigo.

 

Desejou feias?

Também. Tenho relações óptimas com mulheres feias. A grande vantagem da mulher sobre o homem é que ela já é capaz de amar um homem feio. Porque o vê por dentro. Tenho a impressão que as mulheres com uma certa maturidade interior, embora achem piada a um tipo bonito, não sei se são capazes de viver ou casar com um tipo só por ele ser bonito.

 

Tem uma fama avassaladora de sedutor.

Não é uma forma de sedução. Reparei que trato bem as mulheres. O meu universo e os meus interesses são femininos. No outro dia, num jantar, estava um administrador de um banco à minha frente e uma escritora portuguesa ao meu lado. Estávamos muito bem, ela a falar do neto e dos livros. E ele, coitadinho, de vez em quando interrompia-nos para contar histórias do Viagra sem piada nenhuma. E vi a grande diferença que há entre um homem e uma mulher. Não quer dizer que não haja homens com aquilo a que chamo valores femininos.

De que é que fala com os homens?

Falo pouco.

 

Há quem deixe carros e contas bancárias aos filhos. Qual acha que é a sua herança?

Deixo esta casa, não deixo conta bancária. Espero deixar-lhes uma boa imagem de mim, que me recordem sempre com saudade e com amor. Não quero que ninguém tenha de mim uma má recordação. Não é para isso que fomos feitos. O projecto humano é qualquer coisa de que temos só ainda uma intuição. Ainda não descobrimos como se amam as pessoas. A grande questão é pensar nas subtilezas do amor; como se ama uma mulher, por exemplo. Quando a gente tem menos desejo é um bom exercício. O desejo é muito bom mas baralha muito as relações. A paixão é uma psicose e ela vem dos interditos ao desejo.

 

É naturalmente polígamo?

Acho que sim. O amor de uma mulher é uma obra de arte, é um quadro único.

 

Nunca tem a noção da posse?

Ai isso não. Não tenho ciúmes. Nunca fui capaz de amar alguém sem respeitar a sua liberdade. Eu não sou de ninguém, ninguém é de mim. Se me perguntar porquê, não sei; está na minha maneira de ser. Uma das coisas que destrói a relação é a propriedade. Mesmo que a gente sofra.

 

Quais são as suas dores? Fala de tudo com tão grande 1eveza.

Procuro a serenidade. Não poderia saber, sei lá, se tivesse a morte de um filho ou de uma pessoa muito próxima, como iria reagir. Perante mim próprio, quero ver se consigo ter urna vida serena. Depende também da noção que se tem da importância e desimportância de nós próprios.

 

Como dizia com o O'Neill, não se leva muito a sério.

Porque talvez seja exactamente a maneira de nos levarmos a sério.

 

 

Publicado originalmente no DNa do Diário de Notícias, em 1999

António Alçada Baptista morreu em 2008